Não é cabala, mas é uma espécie de mão invisível


É a mão que bloqueia as mudanças e as transformações para melhor ou a construção de respostas aos problemas estruturais desde Abril de 1974, a mesma que faz com muitos deixem o país à procura de previsibilidade.


Na semana em que comemoramos mais um aniversário da Revolução dos Cravos, do resgate democrático de uma ditadura, sem direitos, de que alguns parecem ter saudades, mesmo que nunca a tenham vivido, nem conseguissem sobreviver com o registo que têm em democracia, persistem os sinais de degradação democrática e do estado de direito, sem que exista nenhum clamor relevante de indignação e de ação corretiva de derivas perigosas. Tal como no poema de Bertold Brecht, enquanto é com os outros, não há problema, mas quando for connosco, já será tarde. A vertigem do choro sob o leite derramado, presente nas disfunções do funcionamento do estado e das suas instituições, na afirmação de um deslaço social evidente e na implantação de “ismos” negativos, autóctones ou mimetizados de outras latitudes e academias de exercício político, advém da falta de atenção e reação aos sinais persistentes de perturbação dos pilares cívicos, comunitários e democráticos. Os democratas falharam porque não responderam aos primeiros sinais e à sua persistência, não podem admitir a consagração de um quadro sem regras, critérios, filtros e limites, em que tudo é permitido, mesmo que além do aceitável para o funcionamento das instituições e da sociedade.

Em pleno processo eleitoral, a procuradoria geral da República resolveu abrir e anunciar publicamente um processo de “averiguações preventivas”, fundado em denúncias anónimas, sobre a aquisição de imóveis por um dos principais candidatos a primeiro-ministro, matéria que alegadamente já tinha sido objeto de investigação da mesma instituição, através do DCIAP do Porto, em 2024, com arquivamento do procedimento.

Se o país funcionasse e os principais protagonistas se preocupassem com as disfunções, este tipo de averiguações preventivas eram realizadas pela Entidade para a Transparência, criada na órbita do Tribunal Constitucional, para fiscalizar, investigar, solicitar esclarecimentos e comunicar situações de suspeita ao ministério público a partir da entrega da declaração única de rendimentos, património e interesses dos titulares de cargos políticos e altos cargos públicos, sem alarido público ou mediático.

Se houvesse senso, num quadro cada vez mais feudal, impregnado de justiça na praça pública, de conluio entre o sistema judicial e os media, de falta de rigor na abordagem das situações, misturando conceitos e procedimentos, e de evidentes arbítrios totalmente contrários a um estado de direito democrático, não se permitiam as desmultiplicações de derivas negativas cívicas, comunitárias e democráticas, sempre sem responsáveis, com os fins a justificarem todos os meios e com uma aparente complacência dos democratas para cederem sempre em mais no pedigree para a classe, nos meios e nos arbítrios das esferas de liberdade, sem salvaguardar a equidade, o rigor e o equilíbrio. Não está em causa a separação de poderes, mas a intromissão arbitrária destes poderes em esferas alheias e com métodos que não são aceitáveis em democracia, um pouco na ordem inversa do que Donald Trump está a fazer nos Estados Unidos da América com o que resta de um sistema judicial comprometido com a defesa dos direitos, liberdades e garantias. Não se trata de domesticar o sistema para que não seja empecilho ao exercício do poder ou às prevaricações, só que atue no quadro de um normal estado de direito democrático, atento ao tempo, aos julgamentos sumários, aos conluios com os media e às circunstâncias.

Não é cabala, porque a disfunção é cada vez mais previsível, miserável e destrutiva, para repristinar latitudes de bufaria de outros tempos, para responder à pressão social, para caldear o ambiente político, para afagar as agendas mediáticas, para dar consequência à inveja e a outros estados de alma vigentes na relação com terceiros. É mais uma expressão miserável de uma espécie de mão invisível que insiste em expressões sustentadas de afirmação de interesses particulares, de burocracias, de injustiças, de falta de respostas e de manutenção de equilíbrios bons para alguns umbigos, mas desastrosos para os cidadãos, a sociedade, os territórios e o país como um todo. É a mão que dá jeito à instalação e aos instalados, aos que sempre estiveram, sempre tiveram e sempre quererão estar, por si e por alguns, porque sim, quase por direito divino. É a mão que bloqueia as mudanças e as transformações para melhor ou a construção de respostas aos problemas estruturais desde Abril de 1974, a mesma que faz com muitos deixem o país à procura de previsibilidade, retribuição e realização e que deve fazer com que não nos resignemos perante as disfunções, as distorções e os ataques às vivências democráticas. É preciso agir, sob pena de como dizia Brecht “Agora estão a levar-me a mim. Mas já é tarde. Como eu não me importei com ninguém. Ninguém se importa comigo”.

25 de Abril, sempre. Fascismo, nunca mais.

NOTAS FINAIS

FRANCISCO, UM PAPA QUE NÃO MARCOU O SUFICIENTE. Num tempo sem referências, foi-o além da dimensão espiritual e institucional. Mesmo para quem há muito perdeu o compromisso com a instituição, não gerava indiferença, pela superação, pelos raios de progressismo num contexto conservador, pela esperança que gerava num mundo de incerteza, de falta de humanismo e pragmatismo dos interesses. Foi um pontificado demasiado breve, mas intenso, apesar dos condicionalismos, que deixou marcas aquém do que o mundo precisa, na humildade, na tolerância e na capacidade em ouvir o outro, o diferente. Imagina-se o constrangimento, havendo lucidez, em ter de despender minutos das últimas horas de vida que lhe restavam, com o espécime vice-presidente dos Estados Unidos da América J.D.Vince, estereótipo de muitos católicos frequentadores de igrejas que são o terror nos quotidianos. Maior tolerância é impossível com quem concretiza desumanidades em barda. Obrigado, Papa Francisco!

IMAGINE-SE O QUE FARIAM OS POPULISTAS COM A DUPLICAÇÃO DO ORÇAMENTO DE CAMPANHA DO CHEGA. Para quem se diz fora do sistema e vive à conta das ineficiências e disfunções do dito, é curioso constatar o “despesismo de dinheiros públicos” do Chega. Sim, parte do orçamento é certamente o acumulado de subvenções do estado. O Chega prevê gastar 1,6 milhões de euros, mais do dobro dos 700 mil euros orçamentados em 2024. A democracia tem custos, mas imagine-se o que não diriam os populistas e as conversas de café, reais ou digitais, se fosse um dos partidos ditos tradicionais.

Não é cabala, mas é uma espécie de mão invisível


É a mão que bloqueia as mudanças e as transformações para melhor ou a construção de respostas aos problemas estruturais desde Abril de 1974, a mesma que faz com muitos deixem o país à procura de previsibilidade.


Na semana em que comemoramos mais um aniversário da Revolução dos Cravos, do resgate democrático de uma ditadura, sem direitos, de que alguns parecem ter saudades, mesmo que nunca a tenham vivido, nem conseguissem sobreviver com o registo que têm em democracia, persistem os sinais de degradação democrática e do estado de direito, sem que exista nenhum clamor relevante de indignação e de ação corretiva de derivas perigosas. Tal como no poema de Bertold Brecht, enquanto é com os outros, não há problema, mas quando for connosco, já será tarde. A vertigem do choro sob o leite derramado, presente nas disfunções do funcionamento do estado e das suas instituições, na afirmação de um deslaço social evidente e na implantação de “ismos” negativos, autóctones ou mimetizados de outras latitudes e academias de exercício político, advém da falta de atenção e reação aos sinais persistentes de perturbação dos pilares cívicos, comunitários e democráticos. Os democratas falharam porque não responderam aos primeiros sinais e à sua persistência, não podem admitir a consagração de um quadro sem regras, critérios, filtros e limites, em que tudo é permitido, mesmo que além do aceitável para o funcionamento das instituições e da sociedade.

Em pleno processo eleitoral, a procuradoria geral da República resolveu abrir e anunciar publicamente um processo de “averiguações preventivas”, fundado em denúncias anónimas, sobre a aquisição de imóveis por um dos principais candidatos a primeiro-ministro, matéria que alegadamente já tinha sido objeto de investigação da mesma instituição, através do DCIAP do Porto, em 2024, com arquivamento do procedimento.

Se o país funcionasse e os principais protagonistas se preocupassem com as disfunções, este tipo de averiguações preventivas eram realizadas pela Entidade para a Transparência, criada na órbita do Tribunal Constitucional, para fiscalizar, investigar, solicitar esclarecimentos e comunicar situações de suspeita ao ministério público a partir da entrega da declaração única de rendimentos, património e interesses dos titulares de cargos políticos e altos cargos públicos, sem alarido público ou mediático.

Se houvesse senso, num quadro cada vez mais feudal, impregnado de justiça na praça pública, de conluio entre o sistema judicial e os media, de falta de rigor na abordagem das situações, misturando conceitos e procedimentos, e de evidentes arbítrios totalmente contrários a um estado de direito democrático, não se permitiam as desmultiplicações de derivas negativas cívicas, comunitárias e democráticas, sempre sem responsáveis, com os fins a justificarem todos os meios e com uma aparente complacência dos democratas para cederem sempre em mais no pedigree para a classe, nos meios e nos arbítrios das esferas de liberdade, sem salvaguardar a equidade, o rigor e o equilíbrio. Não está em causa a separação de poderes, mas a intromissão arbitrária destes poderes em esferas alheias e com métodos que não são aceitáveis em democracia, um pouco na ordem inversa do que Donald Trump está a fazer nos Estados Unidos da América com o que resta de um sistema judicial comprometido com a defesa dos direitos, liberdades e garantias. Não se trata de domesticar o sistema para que não seja empecilho ao exercício do poder ou às prevaricações, só que atue no quadro de um normal estado de direito democrático, atento ao tempo, aos julgamentos sumários, aos conluios com os media e às circunstâncias.

Não é cabala, porque a disfunção é cada vez mais previsível, miserável e destrutiva, para repristinar latitudes de bufaria de outros tempos, para responder à pressão social, para caldear o ambiente político, para afagar as agendas mediáticas, para dar consequência à inveja e a outros estados de alma vigentes na relação com terceiros. É mais uma expressão miserável de uma espécie de mão invisível que insiste em expressões sustentadas de afirmação de interesses particulares, de burocracias, de injustiças, de falta de respostas e de manutenção de equilíbrios bons para alguns umbigos, mas desastrosos para os cidadãos, a sociedade, os territórios e o país como um todo. É a mão que dá jeito à instalação e aos instalados, aos que sempre estiveram, sempre tiveram e sempre quererão estar, por si e por alguns, porque sim, quase por direito divino. É a mão que bloqueia as mudanças e as transformações para melhor ou a construção de respostas aos problemas estruturais desde Abril de 1974, a mesma que faz com muitos deixem o país à procura de previsibilidade, retribuição e realização e que deve fazer com que não nos resignemos perante as disfunções, as distorções e os ataques às vivências democráticas. É preciso agir, sob pena de como dizia Brecht “Agora estão a levar-me a mim. Mas já é tarde. Como eu não me importei com ninguém. Ninguém se importa comigo”.

25 de Abril, sempre. Fascismo, nunca mais.

NOTAS FINAIS

FRANCISCO, UM PAPA QUE NÃO MARCOU O SUFICIENTE. Num tempo sem referências, foi-o além da dimensão espiritual e institucional. Mesmo para quem há muito perdeu o compromisso com a instituição, não gerava indiferença, pela superação, pelos raios de progressismo num contexto conservador, pela esperança que gerava num mundo de incerteza, de falta de humanismo e pragmatismo dos interesses. Foi um pontificado demasiado breve, mas intenso, apesar dos condicionalismos, que deixou marcas aquém do que o mundo precisa, na humildade, na tolerância e na capacidade em ouvir o outro, o diferente. Imagina-se o constrangimento, havendo lucidez, em ter de despender minutos das últimas horas de vida que lhe restavam, com o espécime vice-presidente dos Estados Unidos da América J.D.Vince, estereótipo de muitos católicos frequentadores de igrejas que são o terror nos quotidianos. Maior tolerância é impossível com quem concretiza desumanidades em barda. Obrigado, Papa Francisco!

IMAGINE-SE O QUE FARIAM OS POPULISTAS COM A DUPLICAÇÃO DO ORÇAMENTO DE CAMPANHA DO CHEGA. Para quem se diz fora do sistema e vive à conta das ineficiências e disfunções do dito, é curioso constatar o “despesismo de dinheiros públicos” do Chega. Sim, parte do orçamento é certamente o acumulado de subvenções do estado. O Chega prevê gastar 1,6 milhões de euros, mais do dobro dos 700 mil euros orçamentados em 2024. A democracia tem custos, mas imagine-se o que não diriam os populistas e as conversas de café, reais ou digitais, se fosse um dos partidos ditos tradicionais.