Anselmo Borges. “Deus não quer sacrifícios”

Anselmo Borges. “Deus não quer sacrifícios”


A Páscoa é uma época de esperança e não de sacrifícios. Anselmo Borges diz que a Igreja poderá evitar o suicídio se acabar com o celibato obrigatório dos padres, bem como a discriminação das mulheres.


É professor de Filosofia da Universidade de Coimbra, e também professor convidado para um curso sobre Antropologia e Ética num doutoramento na Faculdade Medicina na Universidade do Porto, em Psiquiatria e Saúde Mental. Já é jubilado, mas não recusa os pedidos da Universidade do Porto. O padre Anselmo Borges, da Sociedade Missionária Portuguesa – licenciado em Teologia pela Universidade Gregoriana, Roma, tem o Diplôme d’études approfondies (DEA) em Ciências Sociais pela École des Hautes Études en Sciences Sociales, Paris, segundo a biografia oficial – está a ver se “ergue” um novo livro e não se furta a dizer o que pensa da Igreja. Já fez uma celebração de casamento de duas lésbicas, fora da igreja, porque confia nas pessoas, que não andam a fazer publicidade às suas opções sexuais, e que, entretanto, até tiveram uma criança que foi batizada por si, na igreja. Vai, por vezes, a Lisboa e numa das últimas idas foi comprar revistas francesas que versavam sobre inteligência artificial. O dono da tabacaria Mónaco confessou-lhe que tinha guardado uma entrevista que Anselmo Borges deu ao i, em 2019, onde afirmava que “se a Igreja continuar a exigir o celibato obrigatório e a discriminar as mulheres, evidentemente que só acelera o seu suicídio”. Declarações que reafirma: “É uma vergonha, a discriminação das mulheres é contra os direitos humanos. Deus não pode ser contra os direitos humanos. E o celibato obrigatório leva a verdadeiros desastres. Até o S. Pedro era casado, pelo menos tinha uma sogra. A Igreja não pode impor como lei, aquilo que Jesus entregou à liberdade. E infelizmente tenho razão. Para onde é que vai a Igreja na Europa?”. A propósito da Páscoa aqui fica a entrevista a um dos padres mais mediáticos e polémicos.

Qual é o significado da Páscoa cristã? Os judeus não celebravam já a Páscoa?
A palavra Páscoa vem do hebraico pasach, que significa passagem. Em primeiro lugar, na Bíblia, é a passagem da opressão no Egito à liberdade, à libertação a caminho da Terra Prometida. É sempre uma libertação na perspetiva cristã, a passagem de Jesus, da morte à vida. Jesus anunciou que Deus é bom, Pai/Mãe. Esta é que foi a mensagem de Jesus, o Evangelho. A palavra evangelho significa exatamente boa notícia e felicitante. Deus é bom Pai/Mãe, e por isso todos os homens e mulheres são filhos de Deus e, consequentemente, são irmãos. É evidente que esta notícia boa, felicitante, não convinha nem aos sacerdotes do templo, que viviam de uma religião que oprimia, porque vivia dos sacrifícios rituais e Jesus dizia-lhes: ‘Oiçam esta palavra, que é a palavra do profeta, Deus não quer sacrifícios, Deus quer justiça e misericórdia. Evidentemente que esta mensagem de Jesus, de que Deus é bom, Pai/Mãe, somos todos filhos de Deus, consequentemente, irmãos, não convinha ao Império Romano, porque os impérios não existem para a fraternidade, existem para a exploração. E, portanto, juntaram-se. Jerusalém e Roma, os interesses do templo e do representante do Império Romano, julgaram Jesus, e condenaram-no à morte na cruz. Depois, lentamente – os discípulos fugiram, claro –, os discípulos voltaram a reunir-se. Foram fazendo a experiência de que o Deus que Jesus anunciava é infinitamente bom, infinitamente misericordioso e poderoso e Jesus deu a vida pelo Deus bom, a favor da humanidade. Deus não podia deixá-lo na morte e lentamente tomaram consciência de que Jesus, na morte, não encontrou o nada, mas sim a plenitude da vida. E foi essa mensagem que eles foram depois anunciar, a mensagem pascal. Isto é: Deus é bom, Pai/Mãe, e nem na morte nos abandona, na morte não encontramos o nada, mas é a plenitude da vida, e repare que São Paulo começou por perseguir os cristãos, mas depois, quando se apercebeu de que este Jesus anunciou este Deus, e que ele, não o deixou na morte mas o ressuscitou – Jesus está vivo, ele fez pelo menos 20 mil quilómetros, na altura era terrível não havia aviões [{Risos]. Fez 20 mil quilómetros e continuou a trabalhar para anunciar esta boa nova, dizendo que: ‘Tenho esta grande nova para vos anunciar de que este Deus ressuscitou Jesus e não nos deixa na morte. Por isso, a mensagem na Páscoa é essencialmente de esperança. Mas não é uma esperança apenas para o além, ela tem de ser realizada já, doa a quem doer. Evidentemente, nos tempos que nós vivemos, parece que o mundo virou um manicómio, com guerras de uma violência brutal, e evidentemente que isto é contra a Páscoa.

Mas os judeus não comemoravam já a Páscoa?
É aquilo que estou a dizer. A Páscoa até é uma palavra hebraica, pasach, que significa exatamente passagem. A passagem do Egito, a libertação do Egito, onde viviam oprimidos para a liberdade. Páscoa significa exatamente a passagem da opressão, de toda a opressão, de qualquer tipo de opressão para a liberdade.

No caso dos judeus é a passagem do Egito para a Terra Prometida?
Sim, mas Jesus veio dizer que é a passagem da morte à vida, de toda a opressão para a liberdade, para a fraternidade, para a verdadeira liberdade, para a fraternidade, e para a plenitude da vida, na vida eterna, para lá da morte. Jesus era judeu, mas vai para lá dessa Páscoa hebraica.

Como é festejar a Páscoa em tempo de guerra e de incertezas no mundo?
Estes tempos de guerra são exatamente a anti-Páscoa. É preciso denunciar a guerra, denunciar a violência, e estamos, como declarou o Papa Francisco, no Jubileu da Esperança, a caminho exatamente da Páscoa verdadeira.

Mas quando olha, por exemplo, para estes conflitos no Médio Oriente, onde supostamente, fica a Terra Prometida…
Oiça, mesmo aqueles que deviam proclamar, realizar, viver a verdadeira Páscoa, muitas vezes são os opressores. O que está a acontecer no Médio Oriente… Evidentemente que é preciso condenar a violência do 7 de outubro de 2023, aquilo tem de ser condenado sem hesitações, mas o que os judeus estão a fazer é intolerável e inadmissível. Evidentemente que há muito tempo devia ser claro que, ali concretamente, não haverá paz enquanto não houver dois Estados: o Estado judaico e o Estado palestiniano, e eu iria mais longe, com um estatuto especial internacional, de soberania, se quiser, da ONU sobre Jerusalém. Para o diálogo entre as três religiões monoteístas: o judaísmo, o cristianismo e o islão, em ordem à paz global.

Supostamente é o que está na lei…
Sim, isso foi apoiado pela ONU e, na altura, até pela União Soviética. Depois sabemos o que foi acontecendo, mas é preciso ‘fazer’ Páscoa ali no Médio Oriente. Sem os dois Estados não haverá paz e sem paz não se celebra a Páscoa.

A situação na Ucrânia também não está melhor…
Evidentemente, ainda por cima são cristãos, uns e outros. Como é possível? É preciso reconhecer o direito internacional, concretamente na Ucrânia a Rússia transgrediu o direito internacional. A Rússia é invasora, e, portanto, tem de ser condenada. Kirill, o patriarca de Moscovo, não pode abençoar os tanques de guerra, dar-lhes a bênção, prometendo a salvação aos combatentes. Tem de haver uma Páscoa política, reconhecendo o direito internacional.

Mudando um pouco de assunto, porque se usa a palavra paixão para designar algo que na realidade é uma agonia e um sofrimento atroz?
No caso, a paixão não tem a ver propriamente com o sofrimento atroz, tem a ver com o amor, a paixão do amor. Jesus remava com a sua mensagem contra os interesses do templo e do Império, mas não retrocedeu, continuou, exatamente para ser fiel à mensagem que o movia do Deus Pai, do Deus bom, Pai/Mãe de todos. Isso é que é a paixão enquanto amor pela humanidade. É preciso acabar com aquela ideia que, infelizmente, às vezes ainda se ensina na catequese, de que Jesus foi mandado ao mundo para pagar a dívida infinita da humanidade para com Deus. A humanidade por causa do pecado dos primeiros pais, havia uma dívida infinita para com Deus, e então Deus mandou o Filho para ser crucificado e desse modo, aplacar a ira de Deus, pagar a dívida infinita da humanidade para com Deus e, desse modo, Deus então reconciliar-se outra vez com a humanidade. Este é um Deus bárbaro, em relação ao qual eu pessoalmente sou ateu. Jesus não veio enviado por Deus que irado precisava de que o filho morresse na cruz para pagar a dívida infinita da humanidade para com Deus e, desse modo, se reconciliar com a humanidade. Não, em relação a esse Deus eu pessoalmente sou ateu, porque é um Deus pior do que nós e é o contrário do Evangelho, como dizia Nietzsche: ‘Esse seria o disangelho, isto é uma notícia desgraçada. Que Deus é esse que para aplacar a sua ira precisava da morte do filho? É preciso acabar com essa interpretação de que Deus precisava do sacrifício expiatório do filho. Não, Jesus não é vítima de Deus. Jesus é vítima dos homens, concretamente daqueles que não aceitavam esta mensagem de Jesus, como já expliquei. Nem o templo, que vivia de uma religião que explorava, nem o Império que não queria evidentemente as conclusões desta mensagem. Não esquecer que Jesus anuncia o Deus bom e com essa mensagem entra em conflito quer com o templo, quer com Roma. Exatamente porque o templo não está interessado nessa mensagem. Jesus diz ao sumo sacerdote: ‘Ide aprender, Deus não quer sacrifícios, Deus quer justiça e misericórdia, porque Ele é bom’. E isso ia contra os interesses do Império Romano. Porque Ele é bom.

Como vê este Papa? A sua opção de simplicidade, proximidade e pobreza, aproxima-se mais do exemplo de Jesus. Ou não?
Oiça, este Papa… nós vimos agora quanto as pessoas gostam dele, até às vezes mais fora da Igreja do que dentro da Igreja, desgraçadamente [sorrisos]. Nesta doença dele, a gente vê quanto ele é amado, estimado, o quanto ele é uma figura influente até do ponto de vista político ou moral. Talvez seja a figura política moral mais influente no mundo, a favor da paz, dos mais pobres, a favor da natureza. Não podemos continuar a agredir a natureza, a aprofundar a crise climática. O Papa Francisco é a favor de uma nova política em relação à dívida dos países mais pobres… Por tudo isso se percebe como ele é tão amado e estimado, exatamente por ser um cristão. Não é cristão porque foi batizado, mas sim porque nele vemos como foi Jesus. O que Jesus dizia e fazia. Ele é um cristão por palavras e ações.

Acha que faz algum sentido continuar com o jejum? Algumas não comem carne, mas depois comem lagosta…
Por amor de Deus. Isso é agredir a religião. O Evangelho diz que Deus é amor. E usa a palavra ágape em grego, que é amor incondicional. Deus é amor incondicional, mas também diz que Deus é Logos, Deus é razão, Deus é inteligência. A verdadeira existência, se quiser, humana e cristã é aquela que não assenta apenas na inteligência, porque a inteligência sozinha pode ser cruel, mas também não assenta pura e simplesmente na bondade sozinha, porque a bondade sozinha às vezes pode ser lorpa. A verdadeira existência humana e, concretamente, a verdadeira existência cristã é aquela que vive do cruzamento da bondade e da inteligência, do amor e da razão. E, por exemplo, essa coisa de jejum, não comer carne, mas depois vai comer marisco, isso faz a religião cair no ridículo

Acha que o jejum faz sentido?
Sabe que hoje do ponto de vista da Medicina há quem pugne pelo jejum, dizendo que isso faz bem à saúde. Não por motivos religiosos. O melhor jejum é ajudar alguém que passe fome, que passa mal. Isso é que é verdadeiro jejum.