A política comercial na segunda administração de Donald Trump está a transformar o sistema económico internacional. Sabe-se que, mesmo quando era apenas um magnata do imobiliário, Trump sempre demonstrou simpatia pelas ideias protecionistas. A guerra comercial com a China no seu primeiro mandato foi a primeira prova de que estava disposto a colocá-las em prática, mas foi na sequência do “Dia da Libertação”, no passado dia 2 de abril, que o tema atingiu outras proporções.
Para um melhor entendimento deste imbróglio tarifário, cujo cálculo, segundo Fareed Zakaria, «está mais próximo do vudu do que da economia», importa olhar para os seus conselheiros económicos. Deste leque, destaca-se Peter Navarro, um economista formado na Universidade de Harvard e autor de uma vasta obra no campo da política comercial. O acérrimo defensor do protecionismo tem feito várias declarações públicas sobre a estratégia económica da administração, as quais têm sido alvo de críticas. E a mais dura – ofensiva, até – veio de dentro: Elon Musk, um dos membros mais influentes no círculo íntimo de Trump, disse que Navarro «é mais burro que um saco de tijolos». Mas quem é, afinal, esta figura?
Contratado pela Amazon
Segundo o seu perfil oficial, disponível no website da Casa Branca, Navarro concluiu o doutoramento em economia em Harvard e é «professor emérito de economia e políticas públicas na Universidade da Califórnia, Irvine». Durante a primeira campanha presidencial de Trump, prestou serviços de consultoria ao candidato republicano, integrando o executivo como Diretor do Conselho Nacional de Comércio – uma posição criada por Donald Trump após ter vencido as eleições contra Hillary Clinton. Em abril de 2017, aquando da criação do Gabinete de Política Comercial e de Manufatura (OTMP), cujo objetivo, segundo a Casa Branca, é «defender e servir os trabalhadores americanos e os produtores nacionais», Navarro assumiu o mais alto cargo deste novo braço do governo americano, posição que reconquistou com o regresso de Trump à Sala Oval, mesmo depois de ter cumprido quatro meses de prisão, entre março e julho do ano passado, por ter desrespeitado uma intimação do Congresso.
Mas como chegou Navarro ao núcleo duro de Trump, sendo uma das suas principais influências na área da política comercial? Segundo uma peça da Vanity Fair de 2017, foi de forma pouca ortodoxa. «A certa altura, durante a campanha [de 2016], quando Trump quis falar mais substancialmente sobre a China, deu a [Jared] Kushner um resumo das suas opiniões e pediu-lhe que fizesse alguma investigação», lê-se no artigo da VF. «Kushner simplesmente foi à Amazon, onde ficou impressionado com o título de um livro, Death by China, do qual Navarro era co-autor. Telefonou a frio para Navarro, um conhecido falcão do défice comercial, que aceitou juntar-se à equipa como conselheiro económico».
Inspiração misteriosa
Como se lê no seu perfil, Navarro «é autor de vários livros sobre economia, análise de mercados financeiros e macroeconomia, incluindo Death by China (…)». E é precisamente na revisão da sua literatura económica que se encontra algo caricato e, por sinal, pouco comum em ciência. Navarro cita por duas vezes um especialista, de seu nome Ron Vara. Por exemplo, no “Death by China”, que lhe valeu o acesso ao executivo americano, onde alerta para a ameaça colocada pelos chineses aos Estados Unidos, atribui a Vara duas frases. Problema: Ron Vara não existe. É simplesmente um anagrama do seu próprio apelido, tal como foi revelado num artigo publicado pela The Chronicle of Higher Education em 2019.
Sem defesa “para além das tarifas”
Passando de 2016 e das suas inspirações académicas para 2025 e para o “Dia da Liberação”, Peter Navarro tem sido uma presença frequente nos canais de televisão americanos, naturalmente interessados em entrevistar o apelidado “guerreiro comercial” ou “czar das tarifas” do 47.º presidente americano.
No passado domingo, em declarações à NBC, Navarro garantiu que «tudo está a desenrolar-se» como esperado» quando confrontado com a questão de Trump ter anunciado uma pausas nas tarifas e ter decretado algumas exceções na guerra comercial travada com a China. «Há décadas que o mundo nos engana», continuou, ecoando o pensamento de Trump. Todavia, alguns indicadores tendem a contrariar este argumento. Por exemplo, segundo dados da Statista, o PIB dos EUA, nominal e real, tem vindo a aumentar de forma constante desde o fim da II Guerra Mundial– o real passou de 2,5 biliões de dólares em 1945 para cerca de 22 biliões em 2022 –, um indicador que revela que os anos da Ordem Internacional Liberal não foram assim tão prejudiciais.
Para além disto, quando o PIB per capita do estado americano mais pobre, o Mississippi, (51355 dólares) é superior ao de economias mais poderosas do mundo – Reino Unido (49464 dólares), França (44691 dólares) ou Japão (33767 dólares) –, de acordo com o Banco Mundial e a FRED, parece desajustado argumentar que os Estados Unidos foram «roubados» ou «enganados» num mundo pautado pela interdependência económica. A própria jornalista adicionou que «após o anúncio das políticas do Presidente, assistimos a uma queda dos mercados, o mercado obrigacionista foi abalado, a confiança dos consumidores caiu a pique e os receios de inflação atingiram o nível mais elevado desde 1981». Ainda assim, Navarro garante que os EUA não têm «outra defesa para além das tarifas».
O cisma
A questão das tarifas veio agitar as águas da relação Musk-Trump. Durante os debates acesos que surgiram na ressaca do “Dia da Libertação”, o dono da Tesla publicou um vídeo de Milton Friedman, onde este argumenta a favor do livre comércio. Já Navarro chegou a dizer: «Na Casa Branca todos sabemos (e o povo americano também) que Elon é um fabricante de automóveis. Mas ele não é um fabricante de automóveis – ele monta automóveis». Musk respondeu com o insulto já citado no início do texto, e garantiu que «por qualquer definição que se dê, a Tesla é o fabricante de automóveis mais integrado verticalmente na América, com a maior percentagem de conteúdo americano».