Era o mais novo do ‘boom’, em alguns aspetos o mais brioso, também o mais traiçoeiro, aquele que mais desconfiança tinha em relação ao talento se o objetivo era produzir uma obra literária que ombreasse com as dos mestres do romance do século XIX. Teve essa intuição muito cedo, talvez devido às suas limitações, e soube fazer disso a sua estratégia, reconhecendo que o verdadeiro elemento ameaçador da grande ficção lhe vem da ânsia de devorar a realidade para se lhe substituir. Mario Vargas Llosa tinha uma ambição desmedida, e nunca se esqueceu de como tudo começara. «Cada escritor é antes de tudo um leitor, e tornar-se escritor é apenas uma forma diferente de continuar a ler. Eu dei-me conta dessa íntima relação entre a leitura e a escrita naqueles anos [a infância] porque – e estou seguro a este respeito – as primeiras coisas que escrevi, ou, melhor, que rabisquei, foram alterações ou extensões das aventuras que estava a ler, fosse porque foi tomado pela súbita tristeza de as ver chegar ao seu termo antes de me ver saciado fosse porque queria que tivessem tomado outro rumo, e dava por mim a discordar dos autores quanto às decisões que assumiram. Estas correcções e aditamentos foram, segundo as entendo, manifestações precoces da vocação que me levaria, anos mais tarde, a todas essas histórias, romances, ensaios e peças de teatro que escrevi. E, por isso, não sinto o menor desconforto, antes pelo contrário, na hora de reconhecer que, na minha vocação e nas minhas ficções, aquilo que sou é um flagrante parasita literário.»
Se nos adiantarmos uns anos, deixarmos de lado a primeira década da sua vida, essa espécie de idílio que ele viveu na enorme residência da família materna em Cochabamba, na Bolívia, isto depois de o pai ter abandonado a mãe quando estava grávida de cinco meses, se quisermos saber como em setembro de 1963 se deu a estreia literária de um jovem escritor peruano, que nascera em Arequipa, no sul do país, 27 anos antes, veríamos como ele causou desde logo uma grande perturbação com A Cidade e os Cães, um romance desabrido na denúncia feroz que fazia do sistema militar peruano, em que exorcizava todas as humilhações e maus tratos a que foi sujeito nos seus anos de estudante na principal academia militar de Lima. Vargas Llosa mereceu a maior honra que se conferia por aqueles anos e em países onde a literatura abria atalhos para fixar aspectos decisivos da sensibilidade histórica, e alguns generais vieram acusá-lo de ser pago pelo governo do Equador para humilhar o exército peruano. Estava lançada a primeira pedra e acertou num espelho, e o jovem escritor teve desde logo essa noção do poder da escrita na recomposição do reflexo e do retrato que se faria dali em diante. O romance foi acolhido além-fronteiras como um clássico moderno, e num momento em que havia uma grande expectativa em relação ao que este género podia fazer, em que se esperava que os escritores servissem essa forma de «justiça selvagem» que recupera o sentido e a emoção diante de atos abomináveis, Vargas Llosa provou que tinha uma arma capaz de fazer alastrar esse elemento de consciência que, se não repara as injustiças, pode submeter certas figuras infames à publicidade dos seus atos. A escrita era de uma precisão que descreve a literatura como uma urgência, sem excessivas marcas de estilo, sem o desejo de esmagar o leitor com a proeza da frase, a prosa de Vargas Llosa o que tinha era uma firmeza de tal ordem que o leitor lhe ficava submetido. No fundo, a força da sua escrita estava na densidade de uma composição que autorizava o leitor a divagar no interior da trama, a colocar as suas próprias hipóteses e suposições, sem se sentir trancado num único ponto de vista.
Influência de Faulkner
Se Vargas Llosa sempre insistiu que na raiz de tudo o que escreveu estavam as suas vivências pessoais, o certo é que ele era conhecido por investigar os seus temas de forma obsessiva, e em vez de um desses espontaneístas, caçadores das tempestades da inspiração, preferia confiar na memória, naquilo que esta retinha até criar bicho, e era aí essa «singular e misteriosa teimosia» que formava no seu espírito certas imagens que ele depois ia colher, sendo estas o verdadeiro estímulo da fantasia, o seu ponto de partida para essa construção imaginária a que ele depois se dedicava com a competência de um engenheiro no seu cálculo de estruturas. Nesse aspeto, a sua principal influência foi William Faulkner.
O seu segundo romance, A Casa Verde, não apenas confirmou Vargas Llosa como um desses autores que subitamente era impreterível que «os gringos» tivessem debaixo de olho, na verdade, já estava ali algo que superava a perspetiva de uma perturbação regional, porque este escritor não estava interessado em afluir no plano das tendências, mas meter-se na grande conversa com os gigantes literários que não abriam mão dos avanços em termos da forma narrativa, esse género em que a vida pode ser traficada enquanto uma forma de realidade subtil e impalpável, mas que causa um impressão de tal modo profunda no leitor que o afeta, levando-o a sentir prazer, a experimentar a paleta das emoções, a ponto de sentir que a ficção consegue movê-lo mais, causar-lhe mais sofrimento e êxtase do que a realidade. No fundo, é o verdadeiro processo de investigação da nossa memória. E esse segundo romance atirava-se de cabeça nesse jogo, e se tresanda a Faulkner nos seus processos de digressão e combinação de planos, consegue gerar no leitor um efeito de transe invulgar, pelo colorido e pelo favor da beatitude erótica que nos oferece, com a trama a atingir o seu expoente num bordel nos arredores da provinciana cidade peruana de Piura. Porque Vargas Llosa não sendo tão engenhoso nem tão radical como o seu mestre, consegue deslumbrar-nos depois pela forma como emprega aquela complicada técnica de deslocação no tempo que torna o passado e o presente parte de uma única consciência simultânea, enquanto nos conduz num ambiente bem mais cativante, com ilustrações e cenas que deixam um rastro incandescente. Assim, não se trata apenas de seduzir o juízo, mas de excitar as pulsões mais básicas, elevando tudo num fluxo contínuo de realidades simultâneas e que consegue assim superar aquela formalidade irritante dos flashbacks.
Rodeado de mulheres
Enquanto romancista Vargas Llosa nunca se esqueceu do miúdo que trepou a árvore mais alta que se ofereceu à sua imaginação nos livros de aventuras que começou por ler e que lhe impregnaram a memória, uma vez que tudo isso lhe serviu de defesa a partir do momento em que o pai reentrou na sua vida. Ele admitiria em várias entrevistas que o mundo da ficção foi um grande refúgio onde se podia isolar, defendendo-se contra a solidão, a frustração e o medo. Na sua primeira infância, vivia com os Llosa, a imensa família do lado materno, com um passado aristocrático, uma espécie de enclave onde cresceu rodeado de mulheres, das tias e primas, que mais tarde viriam a aparecer nos seus romances, e que criou nele o sentido de pertença a um lugar caloroso, vibrante. Fora-lhe dito que o pai tinha morrido, e dele só tinha uma fotografia de um homem cheio de pinta envergando a farda da marinha, assim este começou por ser um personagem do seu imaginário, um homem aventuroso, o que até certo correspondia ao perfil de Ernesto J. Vargas, mas quando este regressou, o filho ficaria a conhecer o seu lado temperamental e violento. Nesses 10 anos, Ernesto voltara a casar, tinha tido outros dois filhos, e regressou para salvar a honra da mulher que abandonara, reconciliando-se com ela, levando-a e ao filho para Lima e inscrevendo o rapaz numa sucessão de escolas cada vez mais severas para tentar arrancar dele a influência de ter crescido entre tantas mulheres.
Segundo o relato do escritor no livro de memórias Como Peixe na Água, Ernesto era um tirano doméstico que, nas suas crises de ressentimento por ser de uma classe inferior à da mulher, lhe dava pancada e ao filho, «enquanto me avisava que havia de me pôr na ordem e fazer de mim um homem, e que nunca permitiria que um filho seu fosse o mariconço que os Llosa tinham criado». Ernesto culpava a família da mulher por alimentarem os devaneios do miúdo que tinha o hábito de dizer que quando crescesse ia ser toureiro e poeta. Assim, Mario perdeu o paraíso em Piura e caiu num inferno, sendo que os livros se tornaram o seu refúgio. Ironicamente, a sanha que Ernesto tinha contra as manias dele acabaram por acirrar a sua precoce vocação literária: «Escrever poemas era outra das formas secretas de resistir ao meu pai, pois sabia o quanto o irritava o facto de eu escrever versos, algo que ele associava à excentricidade, à boémia e ao que mais o horrorizava: ser maricas.» Mesmo anos mais tarde, quando Mario se tornou um adulto um escritor famoso, as tentativas de se reaproximarem eram um fracasso, mas o certo é que o complexo que o pai instigou nele deixou as marcas na sua ficção, e de algum modo também nas suas opiniões políticas. John Updike assinalou como o recurso repetido de Vargas Llosa a mundos terrivelmente masculinos pode ser lido como um sinal da influência e uma homenagem ao pai que não queria que o seu filho fosse um maricas.
Naqueles anos, Vargas Llosa aprendeu como o romance é o único género artístico que se oferece a quem sente um «colossal apetite» de contar tudo, acolhendo a vida inteira nesse rapto que a ficção permite. Por outro lado, a ficção marca também uma forma de dissidência face à realidade, tendo-se definido a si mesmo e aos seus colegas de ofício como «descontentes profissionais, agitadores conscientes ou inconscientes da sociedade, rebeldes com uma causa, os irredimíveis revolucionários do nosso mundo». Nada disto depois cola com a imagem do escritor que renegou o seu passado de «intelectual de esquerda» e se transformou noutro prosélito da fé neoliberal. A ponto de, quando Margaret Thatcher deixou o poder, em 1990, lhe enviar um ramo de flores com esta mensagem: «Minha senhora, não há palavras suficientes no dicionário para vos agradecer o que fez pela causa da liberdade».
Voltando ao romancista, se tantas vezes assumiu posições bastante cínicas, quando falava da literatura parecia ser recordado dos seus ideais e aspirações mais profundas: «Mais ainda, talvez, do que a necessidade de manter a continuidade da cultura e enriquecer a linguagem, a principal contribuição da literatura para o progresso humano é recordar-nos que o mundo está mal feito, que aqueles que defendem o contrário – por exemplo, os poderes dominantes – estão a mentir-nos, e que o mundo poderia ser muito melhor do que é, estar bem mais próximo dos mundos que a nossa imaginação e linguagem são capazes de conceber.»
A grande herança do século XIX
Depois de concluir a licenciatura em Letras, e de se ter iniciado na tarimba jornalística pela mão do pai, que trabalhava para uma agência de informação internacional, com 22 anos Vargas Llosa deixaria Lima e rumaria à Europa, tendo feito um doutoramento na Universidade Complutense de Madrid, que conclui em 1971 com uma dissertação intitulada García Márquez: História de um Deicídio. Trata-se de uma dissertação em que fica patente a enorme admiração que nutria pelo seu companheiro de geração, numa amizade que acabou em 1976 com um murro que deixou o outro com um olho negro, supostamente depois deste ter feito um comentário jocoso que este terá feito sobre a mulher de Vargas Llosa. Nem isso o impediu de manter o seu apreço pelo génio literário de García Márquez, e esse é um dos traços mais apreciáveis do seu caráter, o ter sabido distinguir o que dizia respeito à vida e as suas posições quanto à arte, tendo provado uma generosidade estupenda ao longo das décadas ao servir-se das suas crónicas no El País e em tantas outras publicações para fazer apreciações críticas de escrupulosa atenção às obras de escritores mais e menos conhecidos, provando o rigor das suas intuições e desenvolvendo esse trabalho de divulgação e de reflexão sobre a arte do romance numa prosa de afável sedução.
Se cativou tantos leitores desde cedo, mesmo entre a tão extraordinária galeria de escritores que ficou associada ao ‘boom’ da literatura latino-americana, o que o distingue não é propriamente o talento, mas sobretudo o esforço, o lado deliberado e a sofisticação da estrutura dos seus romances, e foi também isso o que fez dele o escritor com a mais prodigiosa lista de obras marcantes. Sendo nove anos mais novo do que García Márquez, Vargas Llosa não se deixou encurralar num regime particular e num certo exotismo estético, mas colheu a lição de Flaubert que iniciara o romance moderno ao estabelecer o narrador ‘objetivo’ que, tal como Deus, em grande medida, deve à invisibilidade e à recusa em pregar ao leitor uma moral. «Qual é a diferença entre a ficção e um artigo de jornal ou um livro de histórias? Não são todos compostos por palavras? Não apresentam no tempo artificial do conto a imensa torrente que é o tempo real?», questionava ele num artigo escrito em 1989. «A minha resposta é que são sistemas opostos para aproximar a realidade. Enquanto o romance se rebela e transgride a vida, os outros géneros só podem ser seus escravos.» Sem ser o mais original, sem ter uma prosa deslumbrante, os seus romances acabavam por ser os mais desafiadores para o próprio género, enriquecendo-o, e se diferentes leitores e críticos diferem entre si quanto às suas verdadeiras obras-primas, A Guerra do Fim do Mundo e A Festa do Chibo são indubitavelmente aqueles que melhor ilustram essa capacidade de aprofundar a grande herança romanesca do século XIX.
Estas duas obras fundamentais provam o vigor imorredoiro do género romanesco, sobretudo numa época marcada pela erosão do sentido da verdade e da própria compreensão dos acontecimentos a que atribuímos valor noticioso, sendo o campo do informação o palco de uma guerra de proporções inauditas, e isto não retira importância, mas reafirma precisamente o valor destes relatos capazes de suspender esse efeito centrifugador, restituindo um eixo ao próprio tempo, o qual já só pode ser entendido como um elemento de composição. E isto prova a influência que Vargas Llosa teve na ficção, e em particular na reavaliação do romance realista como instrumento de interpretação dos mais conturbados e desafiadores episódios históricos.
Recorrendo aos poderes da invenção, da mentira, é possível dizer a verdade sem recorrer ao escândalo, sem forçar generalizações grotescas, mas ilustrando nos pormenores esses aspetos que nos fazem sentir aquilo que outros viveram. Por isso, dizia, «os verdadeiros artistas e criadores constituem sempre contra-governos, governos nas sombras a partir das quais vão impugnando as certezas, as retóricas, as ficções ou verdades oficiais e recordando, no que pintam, compõem, interpretam ou fabulam que, contrariamente ao que sustém o poder, o mundo vai muito mal, e que a vida real estará sempre abaixo dos sonhos e dos desejos humanos». Isto permite-nos entender como Vargas Llosa podia ser um perfeito imbecil em tantos dos seus posicionamentos políticos, ajudando a produzir essas formas retóricas que servem para ofuscar verdades atrozes e nauseabundas, destruindo o pacto entre consciências que se norteiam pelo mais básico índice da decência moral, e, no entanto, quando se punha a trabalhar, quando em vez de peças de propaganda se comprometia com o género que estudou tão apaixonadamente, logo o rigor deste lhe impunha uma compreensão muito mais sóbria dos fenómenos, das personagens, que só ganhavam vida porque o romancista estava de tal modo comprometido com elas que calava os seus preconceitos.