
Quando, por volta do ano 33 da nossa era, o procurador Pôncio Pilatos condenou Jesus à morte por crucifixão, esta prática brutal trazia já uma longa história e genealogia.
Crê-se que tenha sido na Pérsia do século VI a. C. que a crucifixão se generalizou como punição. A primeira referência é feita pelo historiador grego Heródoto, nas Histórias, onde conta que o rei Dario crucificou três mil opositores políticos na Babilónia, em 519 a. C.
Antes disso, talvez algo parecido fosse já praticado entre os assírios e os babilónios. Se não ainda a crucifixão tal como a conhecemos, pelo menos uma espécie de variante ou antecedente direto. Nos relevos de bronze dos portões do palácio de Salmanaser III, que reinou na Assíria entre 859 e 824 a.C., lê-se a seguinte descrição: “Com a força da minha masculinidade, pisei as suas terras como um touro selvagem, transformei as suas cidades em ruínas. […] Devastei, reduzi a cinzas. Empilhei montes de cabeças em frente aos portões da cidade. Alguns, enterrei-os vivos nos montes; outros empalei-os em estacas à volta dos montes.” Em suma, Salmanaser III devia ser um sujeito simpático.
Entre os persas, a crucifixão não se fazia ainda em cruzes especialmente montadas para o efeito, mas nas árvores e em postes. Quando Alexandre o Grande, que derrotou Dario III (um descendente de Dario, o primeiro crucificador) e anexou o império aqueménida, este castigo seria exportado para o Ocidente. Estendeu-se à Magna Grécia e, mais tarde, ao império romano, adquirindo as características que lhe associamos.
Morte lenta e medonha Um dos exemplos mais notórios da história será sempre a repressão da revolta de Espártaco, o gladiador de origem trácia que liderou um exército de quase 40 mil escravos contra a capital. Seis mil deles, com o próprio Espártaco à cabeça, acabaram crucificados ao longo de 200 quilómetros da Via Ápia para servirem de exemplo e de aviso: não te revoltarás contra Roma.
“A simples palavra ‘cruz’ deveria estar longe não apenas do corpo de um cidadão romano, mas também dos seus pensamentos, dos seus olhos, dos seus ouvidos”, escreveu Marco Túlio Cícero, no século I a. C. O castigo era de uma tal violência que um romano civilizado nem sequer devia atrever-se a pensar nele. Mal podia o grande orador imaginar que este terrível instrumento de morte e de tortura haveria de tornar-se o símbolo da maior religião dos séculos vindouros.
A morte na cruz era horrenda, agonizante e demorada. Podia demorar três dias a chegar. Às dores atrozes provocadas pelos longos pregos, ou cravos, que perfuravam a pele, a carne e os músculos, juntavam-se a perda de pressão sanguínea, a febre, a desidratação e a dificuldade em respirar. Na década de 30 do nosso século, um cirurgião do Hospital de Saint-Joseph, em Paris, “pregou cadáveres verdadeiros a cruzes de madeira com vários tipos de prego, cravados em partes diferentes das mãos e dos pulsos” e fez uma descoberta surpreendente, recorda Bill Bryson em O Corpo – Um guia para ocupantes (ed. Bertrand). “Descobriu que os pregos cravados através da palma da mão – o método tradicionalmente retratado em pinturas – não suportariam o peso de um corpo. As mãos rasgar-se-iam, literalmente. Mas, se os pregos fossem gravados através dos pulsos, o corpo ficaria em posição indefinidamente”, concluiu.
As últimas 12 horas de vida
No auge do império, este destino tenebroso estava reservado àqueles que não possuíam a cidadania romana, aos escravos e recalcitrantes. Era o caso de um judeu da Galileia que, embora nunca tenha confrontado diretamente o império, começava a tornar-se uma ameaça. Uma das novidades da sua mensagem era dirigir-se aos pobres, aos marginais e aos humilhados, a quem prometia um reino que não era deste mundo. Não há como negar que havia nisso uma forte componente subversiva.
Se diferentes religiões praticavam desde a noite dos tempos o sacrifício ritual de animais para aplacar as divindades, Jesus foi mais longe e identificou-se plenamente com o cordeiro que era sacrificado pelos hebreus na Páscoa (ou Pessach), a festa que celebrava a libertação do cativeiro do Egito. Ele, que estava sem mácula – e é o próprio Pôncio Pilatos que o afirma: “Não encontro nele culpa alguma” – ofereceu-se a si próprio em sacrifício para redimir os pecados da humanidade.
O calvário de Cristo foi amplamente representado na arte ao longo dos séculos. Mas quem já viu A Paixão de Cristo, o controverso filme de Mel Gibson, poderá formar uma ideia mais aproximada dos suplícios a que foi submetido nas últimas 12 horas de vida.
Espancado e injustiçado, crucificado como um vulgar ladrão, não expirou sem deixar ainda uma derradeira mensagem de conciliação. Enquanto os soldados jogavam aos dados para ver qual deles ficava com as suas roupas, ainda arranjou forças para dizer: “Pai, perdoai-lhes, pois não sabem o que fazem”.
Do peixe à cruz
Curiosamente, o símbolo por que se identificavam os cristãos primitivos não era a cruz mas o peixe. É ele que se encontra, por exemplo, nas catacumbas de Roma. A palavra grega Ichthus ou Ichtys correspondia às iniciais de ‘Jesus Cristo, Filho de Deus, Salvador’; ao mesmo tempo, aludia ao que Jesus dissera aos discípulos (“Farei de vós pescadores de homens”) e ao milagre da multiplicação dos peixes. Funcionava como uma espécie de código que só os iniciados compreendiam.
Consta que nos séculos II e III os cristãos já se benziam com o sinal da cruz, mas este só se tornou o símbolo oficial com Constantino, o imperador de Roma que se converteu ao cristianismo, supostamente depois de, numa batalha, por volta do ano 300, ver uma cruz no céu com as palavras ‘In hoc signo vinces’ – ‘Sob este signo vencerás’. Não apenas venceu a batalha decisiva como aboliu a crucifixão enquanto forma de punição de criminosos. Três séculos depois, a religião que havia sido uma ameaça a Roma instalava-se no coração do império.
A adoção da cruz como símbolo do Cristianismo e do crucifixo como seu emblema distintivo remete para a agonia de Jesus. Mas por que colocou a Igreja a tónica no sofrimento e na morte do seu fundador? Não deveria antes centrar-se na obra que fez em vida?
A principal lição a retirar desta escolha parece ser a de que só através do sofrimento se pode triunfar sobre o mal. A carne é corruptível, o espírito não morre nunca. Há que castigar o corpo para atingir um estado superior.
Ora, esta mensagem era precisamente o oposto dos valores materialistas dos romanos, que glorificavam a riqueza e se entregavam sem remorso a todos os tipos de prazer – e basta ver os frescos dos lupanares de Pompeia ou ler as requintadíssimas receitas do Livro de Cozinha de Apício para perceber até que ponto os romanos levavam o prazer a sério. Em sentido inverso, não admira que a mensagem do cristianismo tenha apelado aos pobres, aos humilhados, aos oprimidos. Por um lado, podiam identificar-se com Cristo, que também havia sofrido de uma maneira atroz; por outro lado, a religião prometia, já que a vida não era grande coisa, que pelo menos depois da morte teriam uma recompensa à sua espera.
Todo o cristão devia, pois, nortear-se pelo exemplo de Cristo na cruz. Foi por isso que os mártires deram a vida pela fé, que os santos se retiraram para o deserto e que S. Francisco fez para si uma túnica do pano mais áspero que encontrou, de modo a estar permanentemente a mortificar o corpo. Claro que isto hoje já não nos diz grande coisas, mas n’A Imitação de Cristo, o grande bestseller do século XV, o monge alemão Thomas H. Kempis recomendava abençoar as horas difíceis. “Mereci inteiramente esta atribulação e devo suportá-la. Fazei que saiba sofrê-la com paciência, até a tempestade passar e melhores dias voltarem”. Se Cristo, que era Filho de Deus, aceitara voluntariamente a morte mais dolorosa, como poderiam os seus seguidores esquivar-se a algum sofrimento?