É possível ser simultaneamente um cientista e um crente?
Sim, são inúmeros os exemplos de cientistas crentes. Há até cientistas que são padres ou pastores. Por exemplo, o padre belga George Lemaître foi não apenas um físico amigo de Einstein, mas também o autor da teoria do Big Bang. Lemaître era um sacerdote católico, mas, na Igreja Anglicana, John Polkinghorne, também já falecido, era não só físico teórico, como pastor e teólogo. Em Portugal, o professor de Física do Técnico João Resina era um padre com uma paróquia a seu cargo. E o padre jesuíta Luís Archer foi o introdutor da moderna genética entre nós. Na história da ciência há uma longa lista de jesuítas ativos na ciência: em Portugal foram jesuítas que introduziram o microscópio, inventado por Galileu em 1609, e que o transferiram para o Oriente, em particular para a China, onde dirigiram um observatório astronómico. Ainda hoje o Vaticano tem um Observatório Astronómico, com um bom telescópio, no Arizona, EUA, dirigido por um jesuíta. O Papa Francisco, que é jesuíta, tem formação na área da Química, tendo trabalhado num laboratório de análises. É o autor de uma encíclica (Laudatio Se) bem informada pela ciência. De facto, a ciência baseia-se em factos, mas também aí podemos falar de crenças, crenças justificadas com base no método científico, ao passo que a fé assenta em crenças que não são abonadas pelo esse método. O Padre Lemaître escreveu: “Os meios de investigação de um cientista crente são os mesmos que os do seu colega não-crente. Num certo sentido, o investigador abstrai-se da sua fé na sua investigação. Ele faz isso não porque a sua fé lhe poderia causar dificuldades, mas sim porque ela não tem diretamente nada a ver com a sua atividade científica. Afinal, um cristão não age de forma diferente do que qualquer não-crente, quando se trata de caminhar ou de correr”.
Como vê a relação entre fé e ciência no século XXI? Ainda há um conflito irreconciliável?
Fé e ciência podem coexistir. Sendo diferentes dimensões do ser humano, no meu entender, podem e devem coexistir pacificamente. Podem até colaborar, desde que cada uma não se queira substituir à outra, dominando-a ou excluindo-a. Há questões que a ciência pode responder com o método que lhe é próprio, outras que não pode. Por exemplo, sobre o próprio fenómeno da crença religiosa a ciência pode dizer umas coisas – é o que fazem as neurociências, a biologia evolutiva, etc.– , mas ficam aquém da compreensão da religiosidade do homem. O homem é um animal religioso. Mais de 80% dos habitantes da Terra reconhecem-se como crentes e mesmo entre os outros podemos falar de espiritualidade, ainda que esta possa ser difusa e difícil de definir. A fama do conflito talvez venha do caso Galileu, mas ocorreu em 1633 e a Igreja Católica, embora tardiamente e com palavras cuidadas, já reconheceu o seu erro.
Na Páscoa celebra-se a ressurreição, que é, por definição, um milagre – algo que contraria as leis naturais. A ciência deve tentar explicar o inexplicável ou aceitar que há territórios que lhe são vedados?
A ciência pode e deve tentar o inexplicável que está ao seu alcance. Mas não pode – e por isso também não deve – responder a todas as questões. Para alguns crentes, milagres são interrupções locais e transitórias das leis naturais. Nesse sentido, os cientistas dizem que não há milagres. Há coisas na Natureza por explicar, mas os cientistas partem do princípio que poderão vir a ser explicadas com base nas leis conhecidas ou com base em novas leis. A teologia católica liga os milagres a sinais de Deus. Trata-se de uma interpretação, que parte de uma crença num Ser omnipotente. Há muitas subtilezas no assunto. Mas julgo que a Igreja já não lê a Bíblia literalmente. A Bíblia é um livro de fé e não de ciência. O objetivo da ciência não é procurar Deus: Deus não se encontra com um telescópio, um microscópio ou um acelerador de partículas. Não existem provas científicas da existência ou da não existência de Deus. O conteúdo de livros como um recente, de dois leigos franceses (tanto em ciência como em religião), intitulado “Deus. A ciência e as provas”, é um completo equívoco. As convicções da fé seriam até muito fracas se pudessem ser abaladas por uma qualquer observação ou experiência científicas. A força da ciência reside bastante na sua universalidade: ela une pessoas de diferentes credos religiosos.
Como cientista, como encara os relatos de milagres atribuídos a Jesus?
Da mesma maneira que encaro quaisquer outros milagres. As narrativas de milagres são bem anteriores a Jesus Cristo e continuaram, depois dele, até aos nossos dias. Com todo o respeito pelos crentes que acreditam em milagres, eu, que fui educado e vivo numa cultura católica, não acredito em milagres. Não acredito num Deus omnipotente que fala connosco por meio desses ou doutros sinais, mas, com certeza, Jesus Cristo foi uma figura histórica bem real, que deixou uma marca relevantíssima no mundo, da qual somos herdeiros. Herdeiro ele próprio do judaísmo, é o autor de uma revolução moral. As frases que lhe são atribuídas são para mim mais extraordinárias do que os milagres. Por exemplo, a frase que encontramos no Evangelho de São João: ‘Amai-vos uns aos outros’, que está na base da referida ‘revolução moral’. Ou a frase, que encontramos em São Mateus: ‘Bem-aventurados os pobres em espírito, porque é deles o Reino dos Céus’. É curioso o que Einstein – o físico de origem judaica mas não crente (nunca entrou numa sinagoga para rezar) – disse sobre a figura histórica de Jesus Cristo: ‘Ninguém pode ler os Evangelhos sem sentir a presença real de Jesus. A sua personalidade pulsa em cada palavra. Nenhum mito está preenchido com tanta vida’.
Qual é o papel da historiografia crítica – como a do Jesus Seminar, por exemplo– na nossa perceção atual de Jesus?
Não é fácil fazer esse tipo de historiografia. O Jesus Seminar, fundado pelo estudioso norte-americano Robert Funk, é um dos grupos que se abalança a essa tarefa. A história de Jesus, como qualquer outro trabalho histórico, nunca estará terminada. Pode sempre haver novos dados ou novas interpretações com base nos dados existentes.
Qual é o papel do ensino da ciência na construção de um pensamento crítico sobre religião?
O ensino da ciência é parte essencial da moderna cidadania. Transmite-nos não apenas um conjunto de factos, conceitos articulados em teoria, mas sobretudo um método que nos permite obter um certo conhecimento do mundo e, portanto, também de nós próprios. A escola está muito habituada a transmitir “conteúdos” e nem sempre transmite bem o método – o ceticismo, o espírito crítico, o rigor metodológico – que nos permite descartar erros e chegar ao que podemos chamar verdades provisórias. Os cientistas exercem o espírito crítico ao mais alto grau, mas essa sua atitude pode ser útil na vida quotidiana. A ciência está longe de ser tudo na vida. Mas o espírito critico que a ciência usa pode usar-se também fora da ciência, incluindo no estudo da religião. Os estudos teológicos devem não só estar informados pela ciência como usar a racionalidade na medida do possível. Sei que hoje vivemos num mundo largamente dominado pela irracionalidade, mas penso que a racionalidade continua a ser a maior marca da nossa espécie: o Homo Sapiens.
Se Jesus Cristo vivesse hoje, como reagiria à ciência moderna, à física quântica, à inteligência artificial ou à genética?
Não sei, francamente. Isso é história virtual. Mas Jesus Cristo foi revolucionário no seu tempo. Seria revolucionário em qualquer tempo.
Podemos pensar em Jesus Cristo como um “cientista” do seu tempo, no sentido em que desafiava o conhecimento estabelecido?
Não. Chamar cientista a Jesus Cristo é um abuso de linguagem. A ciência moderna não existia no seu tempo. E os seus ensinamentos, como o ‘Amai-vos uns aos outros’, não são do domínio da ciência, mas da moral. De resto, os cientistas não são os únicos a desafiar o pensamento estabelecido. Podem ser também historiadores, políticos, filósofos, teólogos, etc. Algumas seitas religiosas invocam o nome da ciência, mas de um modo vazio. Por exemplo, um japonês criou em 1986 uma seita chamada ‘Happy Science’, que antes de ser um movimento religioso chamava-se Instituto de Investigação da Felicidade Humana. Acho que é um meio de enganar as pessoas. Basta dizer que o dito líder reclama ser uma reincarnação de uma divindade de Vénus. Em Vénus faz demasiado calor para poder ter lá antepassados…