Carlos de Matos Gomes. O capitão de Abril que não desarmou

Carlos de Matos Gomes. O capitão de Abril que não desarmou


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Depois de se bater pelo fim da Guerra Colonial e de um regime totalitário, não se ficou por aí, e em vez de ostentar aquela vigorosa vulgaridade de um ser que se perde na farda e debaixo das medalhas, manteve uma postura iconoclasta, desafiando as conveniências e denunciando a impostura e manipulação histórica depois da revolução. Matos Gomes morreu no domingo, 13 de Abril, aos 78 anos, depois de anos a debater-se com um cancro.

Um homem de inteligência acolhedora e instruída, uma figura indómita que soube aliar no seu carácter aspectos aparentemente contraditórios, sendo um militar e ao mesmo tempo um intelectual vitalista. O Coronel era menos a figura típica daquela hierarquia, menos a composição severa em que o rigor da compostura muitas vezes denuncia um excesso formal, e mais o tipo que ganhou estômago pelo mundo, que viu e conheceu os homens nas alturas em que o verniz estala e ficam entregues às suas piores pulsões, e a par da sua irreverência, cultivou uma visão e uma cultura penetrantes sobre a composição dos interesses e conflitos que estão no fundo do tumultuoso quadro da nossa contemporaneidade. Em vez de convocar aquele ambiente de bruma, com as divisas e as medalhas, Carlos de Matos Gomes tinha uma outra fibra, uma impetuosidade e um vigor que lhe advinham da clareza do seu pensamento. Mais que o orgulho no papel que desempenhou enquanto um dos Capitães de Abril, preferia ver destacado o seu compromisso com a liberdade numa base quotidiana, ao denunciar as campanhas de desinformação e propaganda orquestradas pelos grandes meios de manipulação da opinião, desde as cadeias de televisão e os jornais, às redes sociais. Mostrava um maior orgulho no seu esforço constante para desmontar esses enredos, e fornecer os elementos decisivos na compreensão da História, pautando sempre a sua intervenção pelo confronto face às instâncias e às figuras que aparecem como salvadores e pregadores, isto num quadro político que, segundo ele, tem levado ao colapso do espaço público.

É bastante conveniente reduzi-lo agora à imagem de um herói do Ultramar e de Abril, à redução a uma intriga facciosa de forma a alimentar um regime comunicacional de pensamento único, em que se recorre à simplificação grosseira dos factos ou à sua deturpação, de modo a impor a lógica maniqueísta, que “para funcionar necessita de eliminar a subjectividade”.

A sua coragem está ligada a uma feroz lucidez, a alguém que frequentava os clássicos, partia o tempo, humedecia-o e tragava-o do mesmo modo que eles o faziam. “Feliz aquele que pôde conhecer as causas”, era uma divisa que foi buscar às Geórgicas de Virgílio. Entendia que a História apenas descrevia factos contingentes, e que, por isso, cabia a cada um interpretá-los e retirar deles uma moral que servisse antes de tudo para recusar as fórmulas com as quais se tenta encurralar o pensamento. Um dos seus oráculos de cabeceira era o Discurso da Servidão Voluntária, de Étienne de La Boétie, e ali colheu ele a noção de como o hábito é a primeira condição para a submissão voluntária, e como a monotonia permite condicionar e tornar trivial mesmo as piores desgraças. Para Matos Gomes não havia perigo maior do que as tecnologias da informação, com a sua venenosa omnipresença no nosso quotidiano, difundindo esse regime de tirania que leva a que as sociedades abertas definhem e, movida por impulsos odiosos, se deixem transformar em sociedades totalitárias.

Se há uma coisa que não posso suportar, dizia Victor Hugo quando era testemunha de qualquer coisa especialmente estúpida ou má, é pensar que tudo isto amanhã há-de ser História. O mesmo poderia ter sido dito por Matos Gomes, que detestava todas essas campanhas de redução do pensamento ao ‘sim’ e ao ‘não’, apontando o dedo aos ‘antros’ da manipulação, “onde se acolhem os melhores serviçais e os de menores escrúpulos, que ao longo dos tempos se foram alcunhando de apóstolos, profetas, conselheiros, cortesão, validos, pregadores, gurus, confessores, comentadores, ideólogos”. Se outros, por terem tido alguma participação em momentos transformadores da nossa vida, se imaginavam elevados a um grau de epicidade qualquer, e muitos até se comportavam com um ar cerimonioso, afectado ou imbecil, ele denunciou essa forma de suborno dos que se limitam a “reflectir sobre os acontecimentos como se fossem professores de moral, polícias da virtude, cronistas de epopeias patrióticas”. O coronel não tinha paciência para as imposturas do manual de História que nas últimas décadas, em vez de discutir as tensões que secaram a revolução popular, ofereceu guarida e animou as fantasias de uma galeria de falsários que, assim, se solenizaram junto aos carrascos e às vítimas do costume. Quanto às transformações que se deram na sequência do golpe militar do 25 de Abril, teve a coragem de definir as origens da nossa democracia como algo menos do que essa gloriosa ficção que tantos nos vendem, mostrando as contradições do movimento revolucionário, e sobretudo a forma como a certa altura o processo político foi capturado e controlado a partir do estrangeiro, deixando clara a incapacidade do povo português, que, depois de quase meio século de uma ditadura paternalista e sufocante, estava manifestamente impreparado para a libertação.

Matos Gomes nunca escondeu como em grande medida continuámos a ser injuriados, frustrados, escarrados, aceitando a vergonha e a ruína como um destino. Incentivado desde cedo pelos pais a fazer as suas escolhas, e assumir responsabilidade pelas suas próprias ideias, tributou-lhes sempre esse impulso à sua liberdade, o seu lado insubmisso e que lhe permitiu corrigir a conhecida frase de Descartes, que, segundo ele, deveria ser: “Penso, logo tenho a cabeça a prémio”. Com apenas 12 anos, fugiu de um campo de férias no Norte de Espanha e andou uma semana por sua conta em Salamanca, vivendo de arrumar carros e engraxar sapatos, como conta no livro de memórias Geração D – Da ditadura à democracia.

Nascido em 1946 em Vila Nova da Barquinha, fez o secundário em Tomar no Colégio Nun’Alvares, e foi ali que conheceu Salgueiro Maia, de quem se tornou muito amigo. Desportista nato, fez natação, montou a cavalo, jogou hóquei e futebol. Surpreendeu os pais quando, depois de ter sido expulso de um liceu e de ter sempre mantido uma atitude de desafio à autoridade, em 1963, buscou um rumo para a sua vida ingressando na Academia Militar, onde fez o curso de cavalaria. Seguiu-se o curso de Comandos, e depois disso, entre 1967 e 1974, fez comissões em Moçambique, Angola e Guiné, onde se encontrava quando se deu o 25 de Abril, tendo participado em operações como a Nó Górdio e a Ametista Real. Foi em terras africanas que se tornou um dos fundadores do Movimento dos Capitães. “Penso que serei mesmo um dos primeiros. Estive no grupo que começou a reunir na Guiné, em 1972, para pensar o que poderíamos fazer”, disse, em entrevista ao Expresso, em 2024. De regresso a Lisboa, decidiu que não voltaria a vestir o camuflado, mas o seu amigo Jaime Neves convenceu-o a ser fundador da unidade de Comandos da Amadora. Quanto à revolução, entendia que as maiores conquistas de Abril foram o fim da Guerra Colonial e a ampliação dos direitos das mulheres. Mas admite que, após o período de agitação revolucionária, e com o golpe de Estado de 25 de Novembro de 1975, os poderes se reconstituíram “como as colónias de baratas que regressam após uma desinfestação”. Em “A Verdade Única e a Heresia de Pensar” (Edições Colibri), livro de crónicas em que reuniu algumas das intervenções  em que desmistifica muitas das noções prevalecentes ao longo dos últimos 50 anos, tanto no que diz respeito à nossa realidade como a outros conflitos de mais larga escala, Matos Gomes defende que “reflectir sobre o 25 de Abril é identificar os que estavam a aguardar uma oportunidade para se fazerem comendadores, banqueiros, agentes internacionais, concessionários de obras públicas, mestres de leis, como já havia acontecido no vintismo do século XIX”. Neste livro, descreve de forma bastante sucinta a “entrada na cidade dos jovens lobos dispostos a tudo”, e aponta o dedo à reprivatização da banca, com o regresso dos banqueiros nobilitados pelo Estado Novo, sendo que isto explica boa parte dos escândalos financeiros e dos enredos de defenestração do erário público, de tal forma que, depois das melhorias substanciais a que se assistiu nas primeiras décadas, em breve a transferência da actividade produtiva para a especulativa veio a condicionar inteiramente a democracia social, deixando a política apenas como um compromisso formal, enquanto as desigualdades engoliam de novo o país.

A par do desmantelamento da estrutura produtiva, e enquanto os Fundos Estruturais eram distribuídos pelos “benzidos do novo regime”, modelou-se a sociedade portuguesa para se limitar ao quadro dos serviços, condenando o país a uma economia anémica, enquanto ocorria o assalto das elites ao poder, “que privatizaram as barragens e redes de distribuição, os correios, as refinarias, as pontes de acesso ás grandes cidades, os aeroportos”.

A par das características que fizeram de Matos Gomes um formidável cronista, e um dos últimos espíritos que ficaram de guarda ao regime imunitário que passa pela denúncia de todas as formas de saque a que ficou sujeito o país nas últimas décadas, o coronel revelou-se um dos nossos melhores historiados sobre a Guerra Colonial e, sob o pseudónimo Carlos Vale Ferraz, que adoptou em homenagem a um tio, publicou romances que incidem sobre aquele período, como Nó Cego (1982), Os Lobos não usam coleira (1995, adaptado por António-Pedro Vasconcelos ao cinema, com o título Os Imortais) e Angoche – Os fantasmas do Império (2021).

Está longe ainda de se perceber o verdadeiro alcance do seu testemunho e contributo para expor a sórdida trama de bastidores que se organizou como uma contra-revolução, sendo uma peça essencial para compreender o período que se seguiu ao 25 de Abril o texto com o título “O Maestro do 25 de Novembro de 1975”, sobre o papel assumido por Francisco Gomes da Costa, secundado por Mário Soares e Melo Antunes, como o agente que organizou uma inversão fabulosa do processo democrático e da soberania popular, pondo em cena uma peça musical com vários andamentos depois de receber a partitura da sinfonia que foi sendo escrita a partir do estrangeiro, e que determinou que “o futuro de Portugal após a descolonização era a de um pequeno estado europeu invisível”, passando assim de um pequeno “perturbador rebelde” a um menino bem comportado, sujeito a um modelo político harmonizado e padronizado. E em troca, depois de os militares serem reduzidos ao papel de disciplinada guarda da ordem dos interesses do mercado, e de o país ser higienicamente desinfectado de extravagâncias de poderes populares, ficando entregue a um político de confiança, Mário Soares, seria permitido à suas elites a fanfarra e a glutonaria que se sabe. Tudo isto foi sendo cabalmente explicado por Carlos de Matos Gomes nas últimas décadas, e esta é a verdadeira dimensão heroica do seu papel, e que esteve ausente dos necrológios e das homenagens que lhe foram prestadas nos nossos órgãos de comunicação social. Como ele refere num dos capítulos decisivos do seu livro de crónicas, “controlar a opinião pública é um factor essencial ao exercício do poder em sociedades liberais”, só existindo liberalismo com a opinião pública controlada. “Parece um paradoxo, mas não é. O poder das sociedades liberais assenta no lucro e na sua acumulação. É mais rentável perder dinheiro numa cadeia de televisões e jornais do que pagar a um sistema repressivo com juízes, polícias e prisões. A ilusão da bondade de um Estado de Direito é o mais eficaz e agradável sistema de controlo da sociedade.”

Se lhe importava o conhecimento da História, e se devotou a transmitir-nos aqueles factos cruciais para compreendermos o fracasso deste meio século de democracia, fê-lo reconhecendo a forma como as técnicas de manipulação da opinião pública estavam a permitir desencadear novamente o fascismo, numa altura em que o neoliberalismo já não tem como maquilhar a desigualdade e a injustiça que impõe a favor dos “multimilionários negreiros”. “Os movimentos de extrema-direita que estão a sair da terra como os cogumelos do estrume gritam muito, mas nada mais pretendem do que um regime de submissos”, frisava Matos Gomes. Mas se respeitava a História, e entendia que os povos com sabedoria são aqueles que sabem gerir esse tempo mais vasto, não se cansava de repetir que se aprende mais com Hamlet e Júlio César ou com Dom Quixote de La Mancha do que com horas de noticiários, de discursos e de comentários, e tinha como principais inimigos esses seres que “funcionam como os interruptores, com duas posições, on e off”. Os actuais “televangelistas em versão civil e militar”, que debitam a lengalenga, produzindo um discurso que pretende sempre dar a ideia de que não há verdadeiras escolhas a fazer, nem há alternativas. O seu derradeiro compromisso foi com a denúncia dos “programas de deliberada imbecilização” das audiências, notando como os nossos defensores da liberdade que se baloiçam na “gaiola de parangonas na primeira página ou na abertura de um telejornal, são os mesmos que violam o segredo de justiça, que vivem à custa das rifas vendidas através de telefonemas de valor acrescentado, os mesmos (…) que utilizam como comentadores os amigos e os políticos correligionários partidários, que recrutam cartomantes, videntes como salvadores dos aflitos, doentes dos amores ou da penúria”.

Matos Gomes assumiu posições que não chegavam a ser realmente controversas porque a sua intervenção era de tal forma esclarecida que “a linha de manipulação” que promove esse novelo dos programas de comentário e desinformação preferia simplesmente contorná-lo. Era chamado normalmente a prestar declarações apenas enquanto personagem viva de um episódio que foi sendo liofilizado e admitido mais nos seus elementos de folclore, contudo, o lado mais acutilante das suas intervenções raramente merecia destaque, sobretudo a sua tão mordaz análise de como o domínio da informação tem permitido ditar quais as guerras que passam a ser justas, e as mentiras convenientes que circulam como verdades. O coronel assinalava como no Brasil, após o uso do sistema judicial para derrubar a presidente Dilma Roussef, começou a utilizar-se o termo lawfare para designar a guerra feita com as armas da lei, notando que Sérgio Moro passara de juiz a general. Servindo-se desta mesma noção, descreveu o fenómeno de uma mediawarfare, “a guerra através da utilização massiva, cientificamente planeada e executada” dos novos meios tecnológicos bem como dos media convencionais de forma a “conquistar as massas, entendidas estas como um objectivo mole, após terem sido desarmadas por acções de desgaste ao longo de anos de deliberada imbecilização da opinião pública”. Matos Gomes adiantava que uma primeira fase deste “processo de anestesia pode ser associada à desvalorização do ensino de disciplinas de humanidades, da filosofia e da história, que articulam o pensamento, ligam o passado ao presente, estabelecem fronteiras éticas e morais, em favor do ensinar a ‘fazer’, da substituição da educação pela domesticação”. Para o coronel, este quadro de imbecilização ou alienação progressiva, tem por objectivo eliminar o sentido crítico e abrir caminho “às mensagens enviadas por atiradores que invocam o respeitável título de jornalistas ou de analistas, mas que utilizam a mesma técnica dos tweets de Trump, ou seja, controlando a opinião, com recurso a figuras mediáticas que pretendem ocupar o lugar dos antigos oráculos.