O futuro urbano de Portugal tem de passar pelas cidades médias.


Portugal não pode continuar a ser um país a duas velocidades, nem um país de “primeira” (as grandes cidades) e “segunda” (o restante território). Não podemos aceitar que o código postal dite as oportunidades de cada português.


Portugal não é e não pode ser só Lisboa e Porto. Durante demasiadas décadas, o nosso modelo de desenvolvimento urbano concentrou-se em torno destas duas grandes cidades, sabendo todos que é evidente que são as com maior densidade e intensidade, deixando o resto do país numa espécie de segundo plano. É como se existissem duas velocidades: uma para as duas grandes zonas metropolitanas e outra, bem mais lenta, nas cidades médias e regiões do interior. Mas o futuro urbano de Portugal não se pode construir apenas a partir de duas cidades. Se quisermos um país verdadeiramente sustentável e coeso, teremos de integrar as cidades médias e as regiões fora dos grandes centros na estratégia nacional de desenvolvimento.

Há muito que se fala de coesão territorial, de levar oportunidades e investimento além do eixo da A1 (sim, a autoestrada…) Lisboa-Porto. Planos, programas e discursos vão surgindo, mas na prática vemos ainda iniciativas avulsas em vez de uma visão consistente de longo prazo. O resultado está à vista: muitos destes territórios continuam a perder população, a ver sair o seu melhor talento e serviços, enquanto as grandes cidades enfrentam problemas de congestionamento, habitação proibitiva e sobrecarga de infraestruturas.

Não podemos continuar com uma política de desenvolvimento a duas velocidades. Gerir o país assim, ao sabor das urgências imediatas dos grandes centros, é comprometer décadas de futuro nas restantes regiões.

Veja-se a questão da mobilidade. Hoje, grande parte das ligações de transportes – sobretudo ferroviárias – está pensada para levar pessoas à capital ou ao Porto, como se o objetivo fosse sempre sair da cidade média rumo ao grande centro. Falta-nos uma rede eficiente que ligue estas cidades entre si e com o restante território, sem obrigações de passagem pelas metrópoles. Isso significa investir em infraestruturas modernas, como linhas ferroviárias regionais rápidas e transporte público de qualidade, para que quem vive em Bragança ou em Portimão possa deslocar-se com rapidez e conforto sem sentir que está “no fim da linha”. Uma mobilidade bem pensada não só reduz assimetrias como também torna todo o país mais atrativo para viver e investir. Sobre ferrovia, deixo apenas um exemplo que fala por si: chegar a Tunes e fazer a ligação para a linha do Barlavento algarvio continua a ser uma experiência que ninguém esquece — não pelas boas razões, mas porque revela décadas de desinvestimento e ausência de planeamento para o Algarve.

Na habitação, enfrentamos um paradoxo: enquanto Lisboa e Porto têm preços de casa inacessíveis para a maioria, em muitas cidades médias há bairros inteiros de habitação degradada ou devoluta e pouca oferta qualificada para atrair novas famílias. É preciso recuperar essas áreas, incentivar a construção e reabilitação urbana fora dos grandes centros e criar programas de habitação acessível adaptados à realidade local. Fixar jovens e famílias nestas cidades depende de conseguirem aí realizar o seu projeto de vida, com casa a preços comportáveis e qualidade de vida. Se nada for feito, continuaremos a assistir ao êxodo de talento para os polos já saturados, agravando a desertificação do restante território.

saúde é outro desafio crucial. Não é aceitável que viver fora de Lisboa ou Porto signifique ter menos acesso a cuidados de saúde de qualidade. No entanto, sabemos que é difícil fixar médicos e outros profissionais de saúde em zonas menos populosas quando faltam condições e carreiras atrativas. É urgente criar incentivos sérios para levar profissionais e investimentos em saúde para estas ditas “outras regiões” – desde unidades móveis de saúde, até telemedicina para aproximar especialistas a doentes/utentes remotos, passando pela valorização das carreiras nestes locais. Da mesma forma, a educação e outros serviços públicos têm de acompanhar este esforço, para que uma família não hesite em morar em Vila Real ou Évora receando a falta de escolas de qualidade para os filhos ou de outros serviços essenciais.

inovação e o acesso à tecnologia e ao talento são possivelmente a maior alavanca transformadora destas regiões. Já não vivemos num tempo em que a localização é destino inevitável: com a digitalização e o teletrabalho, uma startup pode nascer em Vinhais e ter clientes globais, um investigador pode colaborar a partir de Alcobaça com equipas em Londres ou Nova Iorque. Mas para isso é preciso garantir infraestruturas tecnológicas de topo (fibra ótica, 5G) e criar ecossistemas de inovação descentralizados. Porque não estabelecer polos tecnológicos e científicos em cidades médias, aproveitando as universidades e politécnicos já lá existentes? Porque não atrair para lá incubadoras e hubs de empresas, com incentivos fiscais ou apoios, aliviando a pressão sobre Lisboa e Porto e aproveitando o talento local que hoje às vezes não tem alternativa senão partir? O potencial transformador destas regiões é enorme: já vemos casos de sucesso, desde indústrias de energias renováveis no Alentejo até centros de software em Braga ou Águeda. Falta replicar e ampliar esses exemplos.

Acima de tudo, é preciso visão estratégica e coragem política real (para lá das apresentações no mundo virtual) para colocar as cidades ditas “médias” no mapa do futuro. Isso implica liderança com pensamento digna de um clássico denominado “estadista”: que entenda que o país tem de crescer de forma equilibrada, e que investir em Bragança, Viseu ou Portimão não é caridade nem desperdício – é construir um Portugal mais forte para todos. Implica também continuidade: políticas públicas que não mudem ao sabor de cada eleição, mas que sejam assumidas como compromisso de longo prazo do Estado e das autarquias. Não faltam ideias nem planos: o que falta é executá-los com consistência, monitorizar os resultados e ajustar estratégias conforme necessário, sem desistir ao primeiro obstáculo ou mudança de governo.

Portugal não pode continuar a ser um país a duas velocidades, nem um país de “primeira” (as grandes cidades) e “segunda” (o restante território). Não podemos aceitar que o código postal dite as oportunidades de cada português. O futuro constrói-se com visão, e essa visão exige tempo, planeamento e compromisso com as próximas gerações e não apenas com o próximo ciclo eleitoral.

As cidades de media densidade populacional podem ser hubs de qualidade de vida, de sustentabilidade e de inovação, complementando as grandes metrópoles e aliviando-as até dos seus “excessos”. Um Portugal mais coeso, onde uma família possa prosperar em Guarda ou em Lagos tanto quanto em Lisboa, é um Portugal mais justo e competitivo. É assim, com ambição e equidade territorial, que se constrói o futuro urbano que o nosso país merece.

Carlos Gouveia Martins

O futuro urbano de Portugal tem de passar pelas cidades médias.


Portugal não pode continuar a ser um país a duas velocidades, nem um país de "primeira" (as grandes cidades) e "segunda" (o restante território). Não podemos aceitar que o código postal dite as oportunidades de cada português.


Portugal não é e não pode ser só Lisboa e Porto. Durante demasiadas décadas, o nosso modelo de desenvolvimento urbano concentrou-se em torno destas duas grandes cidades, sabendo todos que é evidente que são as com maior densidade e intensidade, deixando o resto do país numa espécie de segundo plano. É como se existissem duas velocidades: uma para as duas grandes zonas metropolitanas e outra, bem mais lenta, nas cidades médias e regiões do interior. Mas o futuro urbano de Portugal não se pode construir apenas a partir de duas cidades. Se quisermos um país verdadeiramente sustentável e coeso, teremos de integrar as cidades médias e as regiões fora dos grandes centros na estratégia nacional de desenvolvimento.

Há muito que se fala de coesão territorial, de levar oportunidades e investimento além do eixo da A1 (sim, a autoestrada…) Lisboa-Porto. Planos, programas e discursos vão surgindo, mas na prática vemos ainda iniciativas avulsas em vez de uma visão consistente de longo prazo. O resultado está à vista: muitos destes territórios continuam a perder população, a ver sair o seu melhor talento e serviços, enquanto as grandes cidades enfrentam problemas de congestionamento, habitação proibitiva e sobrecarga de infraestruturas.

Não podemos continuar com uma política de desenvolvimento a duas velocidades. Gerir o país assim, ao sabor das urgências imediatas dos grandes centros, é comprometer décadas de futuro nas restantes regiões.

Veja-se a questão da mobilidade. Hoje, grande parte das ligações de transportes – sobretudo ferroviárias – está pensada para levar pessoas à capital ou ao Porto, como se o objetivo fosse sempre sair da cidade média rumo ao grande centro. Falta-nos uma rede eficiente que ligue estas cidades entre si e com o restante território, sem obrigações de passagem pelas metrópoles. Isso significa investir em infraestruturas modernas, como linhas ferroviárias regionais rápidas e transporte público de qualidade, para que quem vive em Bragança ou em Portimão possa deslocar-se com rapidez e conforto sem sentir que está “no fim da linha”. Uma mobilidade bem pensada não só reduz assimetrias como também torna todo o país mais atrativo para viver e investir. Sobre ferrovia, deixo apenas um exemplo que fala por si: chegar a Tunes e fazer a ligação para a linha do Barlavento algarvio continua a ser uma experiência que ninguém esquece — não pelas boas razões, mas porque revela décadas de desinvestimento e ausência de planeamento para o Algarve.

Na habitação, enfrentamos um paradoxo: enquanto Lisboa e Porto têm preços de casa inacessíveis para a maioria, em muitas cidades médias há bairros inteiros de habitação degradada ou devoluta e pouca oferta qualificada para atrair novas famílias. É preciso recuperar essas áreas, incentivar a construção e reabilitação urbana fora dos grandes centros e criar programas de habitação acessível adaptados à realidade local. Fixar jovens e famílias nestas cidades depende de conseguirem aí realizar o seu projeto de vida, com casa a preços comportáveis e qualidade de vida. Se nada for feito, continuaremos a assistir ao êxodo de talento para os polos já saturados, agravando a desertificação do restante território.

saúde é outro desafio crucial. Não é aceitável que viver fora de Lisboa ou Porto signifique ter menos acesso a cuidados de saúde de qualidade. No entanto, sabemos que é difícil fixar médicos e outros profissionais de saúde em zonas menos populosas quando faltam condições e carreiras atrativas. É urgente criar incentivos sérios para levar profissionais e investimentos em saúde para estas ditas “outras regiões” – desde unidades móveis de saúde, até telemedicina para aproximar especialistas a doentes/utentes remotos, passando pela valorização das carreiras nestes locais. Da mesma forma, a educação e outros serviços públicos têm de acompanhar este esforço, para que uma família não hesite em morar em Vila Real ou Évora receando a falta de escolas de qualidade para os filhos ou de outros serviços essenciais.

inovação e o acesso à tecnologia e ao talento são possivelmente a maior alavanca transformadora destas regiões. Já não vivemos num tempo em que a localização é destino inevitável: com a digitalização e o teletrabalho, uma startup pode nascer em Vinhais e ter clientes globais, um investigador pode colaborar a partir de Alcobaça com equipas em Londres ou Nova Iorque. Mas para isso é preciso garantir infraestruturas tecnológicas de topo (fibra ótica, 5G) e criar ecossistemas de inovação descentralizados. Porque não estabelecer polos tecnológicos e científicos em cidades médias, aproveitando as universidades e politécnicos já lá existentes? Porque não atrair para lá incubadoras e hubs de empresas, com incentivos fiscais ou apoios, aliviando a pressão sobre Lisboa e Porto e aproveitando o talento local que hoje às vezes não tem alternativa senão partir? O potencial transformador destas regiões é enorme: já vemos casos de sucesso, desde indústrias de energias renováveis no Alentejo até centros de software em Braga ou Águeda. Falta replicar e ampliar esses exemplos.

Acima de tudo, é preciso visão estratégica e coragem política real (para lá das apresentações no mundo virtual) para colocar as cidades ditas “médias” no mapa do futuro. Isso implica liderança com pensamento digna de um clássico denominado “estadista”: que entenda que o país tem de crescer de forma equilibrada, e que investir em Bragança, Viseu ou Portimão não é caridade nem desperdício – é construir um Portugal mais forte para todos. Implica também continuidade: políticas públicas que não mudem ao sabor de cada eleição, mas que sejam assumidas como compromisso de longo prazo do Estado e das autarquias. Não faltam ideias nem planos: o que falta é executá-los com consistência, monitorizar os resultados e ajustar estratégias conforme necessário, sem desistir ao primeiro obstáculo ou mudança de governo.

Portugal não pode continuar a ser um país a duas velocidades, nem um país de “primeira” (as grandes cidades) e “segunda” (o restante território). Não podemos aceitar que o código postal dite as oportunidades de cada português. O futuro constrói-se com visão, e essa visão exige tempo, planeamento e compromisso com as próximas gerações e não apenas com o próximo ciclo eleitoral.

As cidades de media densidade populacional podem ser hubs de qualidade de vida, de sustentabilidade e de inovação, complementando as grandes metrópoles e aliviando-as até dos seus “excessos”. Um Portugal mais coeso, onde uma família possa prosperar em Guarda ou em Lagos tanto quanto em Lisboa, é um Portugal mais justo e competitivo. É assim, com ambição e equidade territorial, que se constrói o futuro urbano que o nosso país merece.

Carlos Gouveia Martins