“Tinha amor para dar, agora só tenho raiva”. O que torna um jovem incel agressivo?

“Tinha amor para dar, agora só tenho raiva”. O que torna um jovem incel agressivo?


Rejeitados, frustrados e cada vez mais agressivos. O i infiltrou-se num dos maiores fóruns de “incels” e encontrou milhares de jovens com sede de vingança das mulheres. A psiquiatra Elsa Fernandes ajuda a explicar como a solidão e a raiva podem escalar para o ódio


“Sempre tive muito amor para dar, mas as mulheres rejeitaram-me, por isso esse amor transformou-se em ódio, raiva e um desejo de destruir”. Este é um entre muitos depoimentos – feitos por utilizadores anónimos – que encontrámos no fórum Incel.is, uma comunidade online de apoio para “incels” (ou celibatários involuntários). O grupo é destinado a “homens que têm dificuldades ou não conseguem se envolver em relacionamentos românticos com mulheres, apesar de tentarem”.

Ainda que as regras do fórum proíbam discussões sobre atividades ilegais, violência ou tiroteios em massa, não é difícil encontrar comentários a apelar à “vingança” contra as mulheres. “A morte é boa demais para o parasitismo maligno das mulheres”, pode ler-se num comentário. “Quero cometer atrocidades com os meus brocels, mas infelizmente isso é só uma fantasia minha e nunca vai acontecer. É uma pena que não nos possamos unir de alguma forma. É tudo em videojogos e não na vida real”, responde um utilizador com o nome RealSchizo.

Por trás do anonimato, são mais de 30 mil os homens que compartilham experiências de rejeição sexual e amorosa por parte do género feminino. Enquanto uns mantêm um discurso fatalista de vitimização, outros partilham fantasias e planos violentos contra as mulheres.

A psiquiatra Elsa Rocha Fernandes, professora convidada no departamento de Psiquiatria da Faculdade de Medicina de Lisboa, ajuda a explicar o fenómeno e como lidar com ele.

O que leva um jovem a identificar-se como “incel”? 

O conceito de “incel” está relacionado com uma pertença a um grupo que frequenta fóruns online relacionados com a partilha de experiências no âmbito das relações íntimas e sexuais. É um grupo de jovens, habitualmente homens, que tendem a sentir-se frustrados com a sua experiência emocional, relacional e sexual, por isso, entram nestes grupos como uma forma de pertença. Tipicamente, são movidos pelos fatores de solidão e de isolamento. 

Já teve algum paciente que se identificasse como “incel”? 

Não diretamente, mas já tive pacientes que têm crenças que vão ao encontro do que é ser “incel”, como a ideia de uma supremacia biológica do homem e de que a mulher se deve adaptar ou subjugar às necessidades do homem. Há uma certa admiração por algumas figuras masculinas, sobretudo influencers, como é o caso do Andrew Tate.

Alguns destes pacientes têm o diagnóstico de autismo, o que na literatura é referido como um fator de risco. Não se pode fazer uma relação direta entre ser autista e pertencer a um grupo “incel”, mas o autismo implica uma dificuldade em manter um relacionamento afetivo com os outro e  em perceber as nuances sociais da interação, o que significa que são mais vulneráveis a serem captados por estes grupos.

Como é que a frustração amorosa evolui para um pensamento mais radicalizado e misógino?

Pode desenvolver-se muito por falta de estrutura da vida real. Famílias que têm pouca presença emocional, pouco suporte. Quando não há referências familiares, educativas, professores, outras figuras, os jovens acabam por encontrar essas referências nos influencers, que estão disponíveis em qualquer momento, ou nestes grupos. 

Às vezes o exemplo também vem dos próprios pais ou do ambiente familiar em que o jovem está inserido.

Sim, se os pais têm como referência que há uma supremacia do homem em relação à mulher, que os valores tradicionais são os certos, que o feminismo deturpa a sociedade, etc.

A rejeição constante por parte das mulheres pode, efetivamente, provocar mudanças na personalidade de alguém?

É difícil partir desse princípio, até porque a rejeição do “incel” não é exclusivamente sexual nem emocional, é quase um contínuo de rejeição. Isso seria quase atribuir a culpa às mulheres, quando eles é que fazem esse processo de vitimização e de sobre generalizações: “as mulheres são todas assim” ou “a beleza é a hierarquia que domina”.

Há estudos que também atribuem características narcisistas a algumas das pessoas que frequentam estes grupos. Têm uma tendência de entitlement, o direito a serem tratadas de certa forma, e depois dirigem essa raiva às companheiras amorosas, às próprias mães e familiares.

E porque é que alguns jovens canalizam esta frustração para a raiva e, em casos extremos, para a violência?

A raiva só como uma emoção temporária, dirigida à frustração sexual e relacional, mas por parte de alguém que tem valores e capacidade empática em relação aos outros, é diferente do passo seguinte, que é ódio. O ódio é a vontade de exercer toda esta raiva e frustração prolongada no tempo e é uma maldade dirigida ao outro, que se pode concretizar em violência.

Os fatores de radicalização estão muitas vezes associados a estas distorções cognitivas. Os jovens que tendem a fazer generalizações abusivas, a pensar numa estrutura de tudo ou nada e na culpabilização da mulher, são os que são mais facilmente radicalizados.

É difícil fazer uma previsão absoluta de quem é que se vai radicalizar, porque existem vários fatores.  Alguma literatura fala sobre a transição no momento de desespero, que é quando o jovem normalmente está depressivo e transita para a fase de desesperança. Nesse momento passa a contemplar esse estado como um estado permanente: “eu vou ser sempre um falhado”, “nunca vou ser capaz de ter relações com mulheres”, “mais vale matar e matar-me”.

Quais são os sinais a que as famílias e os amigos próximos devem estar atentos?

Geralmente, o jovem fica muitas horas isolado no quarto a frequentar estes fóruns; há tendencialmente uma radicalização do discurso e comentários misóginos; uma adoração de figuras com discursos extremistas e de supremacia do homem; e reações emocionais mais intensas e hostis. 

É importante os pais tentarem perceber que tipo de grupos os filhos frequentam e quem seguem nas redes sociais.

Os fóruns e grupos online reforçam e amplificam a expressão de ódio e frustração?

Inicialmente, o grupo serve como um amparo psicológico. É acolhedor, os outros entendem o que eu sinto, há uma partilha, há um apoio mútuo. Ao mesmo tempo, acaba por amplificar o risco de radicalização e de tomar posições mais extremadas, porque valida aquilo que eu sinto. Se eu sinto que sou ostracizado pelas mulheres, que sou rejeitado, que não sou bonito, e há outros que sentem o mesmo que eu, no fundo, há uma retro alimentação.

É como se eu fosse à procura de uma cura que alimenta a doença.

A terapia psicológica pode ajudar jovens que se identificam como “incels”? Como é que se pode abordá-los sem que se sintam que atacados ou ridicularizados?

Sem dúvida que pode ser uma grande ajuda. O problema é a resistência ao tratamento. Nos próprios fóruns há comentários sobre a inadequação do processo psicoterapêutico, dizem que é inútil, que não vai resolver os seus problemas, e, por isso, não são muito recetivos.

A psicoterapia é muito útil no trabalho nas distorções cognitivas, como as generalizações “as mulheres são todas assim” ou “as mulheres só se atraem pelos homens bonitos”, por exemplo. Este tipo de generalizações têm um espaço enorme na terapia, especialmente ao nível comportamental, para serem trabalhadas e diminuir esta raiva e ódio latente, e também trabalhar o aumento da autoestima.

Depois, a depressão pode ser tratada a nível psiquiátrico, farmacológico e psicoterapêutico, e, no ponto mais crítico, nos sentimentos de desesperança, uma intervenção psiquiátrica pode ser muito útil, porque já põe em risco a vida do próprio e dos outros.