Tito de Morais, fundador do MiudosSegurosNa.Net, e Cristiane Miranda têm em conjunto o projeto Agarrados à Net, onde vão às escolas falar sobre os desafios que as redes sociais criam. Em entrevista ao i, dizem que nem tudo na internet ‘é mau’, mas apelam ao controlo parental a afastam a ideia de proibição.
Como veem o acesso dos jovens às redes sociais? Esta geração conta com outras realidades e também com outros desafios…
Tito de Morais (TM): Esse é um dos grandes problemas e a geração de pais que anda à volta dos 40 anos não foi ensinada a lidar com estas ferramentas porque não cresceu com elas. A ideia é: ‘Ninguém me ensinou a mim e também não vou ensinar aos meus filhos’ e isso cria uma divisão digital, acabando por criar a autoaprendizagem. Os miúdos aprendem por tentativa e erro e muitos destes erros saem caros e têm consequências, muitas vezes, graves. O primeiro problema é que a geração dos atuais pais não foi ensinada a lidar com estas tecnologias e, como tal, também tem dificuldade em ensinar aos seus filhos a lidar com elas. Mas nem tudo é mau nestas tecnologias.
Há uma tendência para demonizar as redes sociais?
Cristiane Miranda (CM): Na nossa geração caiu-nos tudo em cima. A nossa geração vem do analógico, passou para os telemóveis, depois para as redes sociais. Quando ainda estávamos a aprender o que era o Facebook veio o Instagram, depois o Tik Tok e agora vem aí a inteligência artificial. Estamos todos a tentar apanhar este barco e a correr sempre atrás do prejuízo. Muitas vezes temos tendência por demonizar porque, infelizmente, temos medo. Ainda no outro dia ouvi dizer que parece que os pais estão a dar heroína aos seus filhos quando dão um telemóvel. Por amor de Deus! Não vejo nenhum benefício na heroína e nas redes sociais temos vários benefícios. Temos é de aprender a tirar partido deles.
TM: Às vezes, há a tendência de olharmos só para os aspetos negativos. No entanto, é importante procurarmos arranjar um equilíbrio. Há muitos riscos quando usamos estas ferramentas e estamos perfeitamente cientes deles. O problema não se resolve proibindo porque na prática o que estamos a fazer é penalizar a vítima. Ou seja, como estas questões fazem mal ou criam problemas às crianças optamos por proibir as crianças de usar, em vez de proibir as aplicações que tenham determinado tipo de conteúdos, de funcionalidades. Isto é, estou a penalizar a vítima e, ao mesmo tempo, a dar o benefício a quem produz este tipo de conteúdos, quem produz aplicações com componentes aditivas. Estamos a resolver o problema completamente ao contrário.
Quando na pandemia houve um recurso ainda maior em relação às novas tecnologias quando as escolas fecharam…
CM: Se não fosse essa tecnologia, o isolamento a que todos fomos obrigados teria sido muito pior do que já foi.
TM: Normalmente, as pessoas perguntam que riscos novos é que as redes sociais colocam. Na realidade não acho que tenham sido colocados grandes riscos novos. Desde 2003 que falo dos riscos a que as crianças e os jovens podem estar expostos quando estão online. Há mais de 20 anos que digo que são os cinco C: ao nível dos conteúdos, ao nível dos contactos, ao nível do comércio, dos comportamentos e do copyright. Estes riscos que antigamente estavam dispersos em diversas plataformas hoje estão todos concentrados nas redes sociais porque concentraram tudo, em si. Antigamente tínhamos plataformas de vídeo, programas de conversação e blogues. Hoje em dia, as redes sociais juntam isso tudo num único sítio. Depois, a acrescentar a isso há uma parte nova que tem a ver com os padrões de design enganadores que nos mantêm agarrados aos ecrãs e que tem a ver com a difusão da pornografia que é feita de uma forma muito mais facilitada do que era anteriormente. Às vezes, as pessoas ficam surpreendidas com estas situações de violência extrema, mas esquecem-se de que, pelo menos, desde 2017 que este é um fenómeno que está estudado, ou seja, os algoritmos têm tendência para divulgar o que é polémico. Normalmente, este tipo de conteúdos é preferido pelos algoritmos porque geram mais interação e indignação e, ao gerar indignação, põem as pessoas a mandarem vir umas com as outras, a chatearem-se umas com as outras. É este tipo de questões relacionadas com a parte tóxica que os algoritmos têm que devemos proibir, não é proibir as crianças de aceder às redes sociais, porque estas têm aspetos positivos. Estamos a ver o problema de forma completamente invertido.
A solução não passa então pela proibição…
CM: As redes sociais estão, neste momento, proibidas a menores de 13 anos.
TM: E, não nos podemos esquecer que, muitas vezes, são os próprios pais que ajudam os filhos a mentirem para criarem estas contas. Então, se queremos restringir o acesso devemos criar mecanismos de verificação de idade, sem isso não adianta nada termos restrições. As restrições impostas pelo Regulamento Geral de Proteção de Dados, em Portugal, define que a idade de consentimento para o funcionamento da plataforma são os 13 anos. Mas há crianças que andam no primeiro ciclo, ou seja, estamos a falar de crianças de sete ou de oito anos, que já usam esse tipo de plataformas. Há estudos no Reino Unido que nos dizem que crianças com três e quatro anos já têm o seu próprio dispositivo e comunicam em redes sociais, normalmente através de streaming de vídeo. Então vamos proibir as crianças ou vamos proibir essas plataformas de terem mecanismos que podem ser nocivos para eles?
Já admitiu que se avançássemos para a ideia de proibição iremos estar a empurrar os jovens para locais não supervisionados…
TM: Essa será uma das consequências se começarmos a limitar o acesso em função da idade com medidas muito restritivas. Aliás, já vemos isso, por exemplo, no caso do Facebook, os miúdos deixaram de usar porque têm a supervisão dos pais, pois eles também lá estão e começam a usar outras plataformas. É aí que devemos focar a nossa atenção: que mecanismos devemos ter para as crianças poderem usar as plataformas de forma segura. A grande lição que podemos tirar desta série [Adolescência] de que agora toda a gente fala e que está a gerar uma onda de pânico proibicionista e alarmista é a importância do acompanhamento parental. Se não acompanhar os meus filhos nas redes sociais, na utilização que fazem, que aplicações usam, quem são os influencers – e aqui inclui-se os influencers da treta, como os que agora estiveram envolvidos neste caso de violação de uma jovem de 16 anos, em Loures – se não souber sobre o que é que eles falam para saber que tipo de influências é que estão a exercer sobre os meus filhos, estou completamente alheado de uma parte cada vez mais importante da vida dos meus filhos. É importantíssimo este acompanhamento. Às vezes, as pessoas confundem o acompanhamento com o controlo. Ser pai e mãe dá trabalho e tenho de estar disponível para dedicar tempo aos meus filhos se os quero deixar usar estas ferramentas. Se não tenho disponibilidade mental para falar com os meus filhos sobre pornografia, sobre racismo, sobre xenofobia, então é melhor não ter filhos. E o facto de não ter tempo não deve penalizar as crianças, nem os filhos dos outros, cujos pais têm tempo para eles. E é isso que sentimos, muitas vezes relativamente, às perspetivas de proibir os telemóveis nas escolas, em que os pais estão a adotar uma postura preguiçosa que é exigir que seja a escola a tomar uma medida que eles como pais não têm coragem de tomar e sentem que se os filhos não levarem os telemóveis para as escolas já estavam seguros.
Há pais que dizem que dão telemóveis aos filhos para não se sentirem discriminados na escola…
CM: Há pais que nos dizem que tiveram de dar o telemóvel porque o filho era o único da turma que não tinha, mas aí podemos perguntar: ‘Se todos tiverem sapatilhas de 400 euros também as vai dar?’ Podem dizer que se vai sentir discriminado, mas vai-se sentir discriminado em várias situações e em várias coisas da vida e não é por isso que o deve obrigar a dar uma coisa ao seu filho só porque sim. Já li coisas a dizer que é utópico acharmos que vamos resolver esse problema e, por isso, temos de proibir. Mas a proibição também não será utópica? Temos pais que proíbem os filhos de terem redes sociais, mas isso não garante que não tenham. Sabemos de casos de jovens que instalam redes sociais nos telemóveis dos amigos e acabam por ter acesso às escondidas. E aí ainda é pior porque os pais aí não conseguem acompanhar, verificar ou controlar. E, às vezes, também nos esquecemos que já fomos adolescentes. Os nossos pais também nos proibiam e quando isso acontecia íamos ver como é que podíamos contornar. E achamos que estes miúdos não conseguem? É claro que conseguem.
A Austrália proibiu o acesso às redes sociais a menores de 16 anos. Este exemplo poderá ser seguido por outros países?
CM: Quem é que tem de implementar um sistema de verificação? Neste momento, ainda não há nada que obrigue as plataformas a utilizar estas questões de verificação da idade e neste momento, proibir é atirar areia para os olhos das pessoas.
T.M: Ainda a propósito da Austrália, foi um processo extremamente manipulado e a Organização de Proteção dos Direitos da Criança opôs-se. Foi tudo feito às pressas, sem base científica para o fazerem. O Regulamento Geral de Proteção de Dados definiu os 16 anos como idade para o consentimento de fornecimento de dados pessoais online e deu liberdade aos países de escolherem a idade, sendo os 13 anos, o mínimo. Desde 2018, altura em que o regulamento foi aprovado, temos na União Europeia uma manta de retalhos porque temos país que indicam os 13 anos, como é o caso de Portugal. Temos outros que indicam os 14, outros os 15 e outros os 16. Porque é que não fazemos um levantamento para saber se nos países, em que o limite de idade é os 16 anos, se estão menos expostos ao risco do que nos países onde a idade é menor? Há dados para isso e se não houver, a União Europeia tem capacidade para fazer esse levantamento. Não precisamos de copiar os maus exemplos dos outros e de ir precipitadamente tomar decisões só porque um país o fez ou porque saiu uma série na televisão que mostra o lado negro da internet e ficamos com a ideia que é tudo assim.
A série Adolescência mostrou a nu uma realidade do que se passa e que nem sempre os pais estavam a par?
CM: Nos anos 80 e 90 começámos a ouvir que a rua era muito perigosa então toca a manter os meninos dentro de casa para não serem raptados. Penalizámos quem? As crianças. Deixou de haver perigo? Não, o perigo foi para dentro de casa e agora também é perigoso estar dentro de casa. O que vamos dizer aos pais? Agora mandem as crianças novamente para a rua? Então a rua não é perigosa? É. E a casa? Também é. O que é que resolvemos? Continuamos a penalizar as vítimas que são as crianças e os jovens. Viver é um risco. Durante toda a nossa vida corremos vários riscos, temos é de tentar ao máximo minimizar os danos e estes minimizam-se de várias formas. Uma delas é ensinando, dando mais informação sobre os riscos, sobre os perigos e como se devem proteger. Como se diminui mais os danos? Em vez de estarmos a gastar a nossa energia, a nossa atenção, a nossa força num sistema do vamos proibir é usar esta força para exigir leis mais eficazes. Vamos exigir inspeção, vamos exigir que sejam tomadas medidas sérias e punir efetivamente quem faz o mal. Ainda na semana passada estivemos numa sessão com alunos, em que falávamos desta questão das partilhas de imagens e falámos do caso da miúda que foi violada. As imagens foram para a internet, mais de 32 mil pessoas viram e ninguém denunciou. Como é possível? Houve um jovem que disse: ‘Nós denunciamos, mas não acontece nada’. Isto é que não pode acontecer.
E muitas dessas 32 mil viram o vídeo em direto…
CM: Não faz sentido, como também não faz sentido esta banalização de conteúdos e de outras coisas violentas que assistem. No outro dia, uma mãe contou que o filho de nove anos foi a casa de um amigo que lhe mostrou um filme pornográfico que era do pai.
TM: Posso ter esses canais, mas posso ter uma password para aceder. O problema é que a maior parte dos pais não o faz, e muitas vezes, como tem de dar acesso a outras coisas, onde usa a mesma palavra passe, a criança experimenta nesses canais e consegue aceder. Há uma grande falta de informação relativamente a estas questões por parte dos pais. E é isso nos leva, no âmbito do projeto Agarrados à Net, a ir às escolas para falar com os alunos, com os pais e também com os professores porque há muita falta de informação. Quando as pessoas são confrontadas com este tipo de situações e para as quais não têm soluções reagem pelo medo e o medo normalmente é mau conselheiro, levando-nos a ter perspetivas restritivas. Em Portugal não haverá ninguém com a experiência que tenho, trabalho há 23 anos com estas temáticas com crianças, com jovens, com pais e com professores e partilho experiências com outros colegas em termos internacionais. A internet não é toda assim. A internet tem aspetos positivos e o que temos de fazer é informar-nos e educar-nos para saber como lidar com este fenómeno. Não é metendo a cabeça debaixo da areia que vamos aprender e essa solução de proibir o acesso é um comportamento de pôr a cabeça debaixo da areia. Não é proibindo que resolvemos, é ensinando a usar estas ferramentas que vamos fazer com que as crianças sejam autónomas e sejam capazes de aprender. Dizem-me que sou ingénuo por achar que a criança se vai conseguir auto-controlar. Não sou ingénuo, sei perfeitamente que a criança não se consegue auto-controlar e por isso é que o acompanhamento parental é extremamente importante.
Essa falta de acompanhamento é por falta de tempo ou falta de formação? Falou de pais com 40 anos e, na sua generalidade, terão acesso às redes sociais…
Portugal não é todo uniforme, não é tudo grandes centros urbanos, onde essas ferramentas são muito usadas. Mas mesmo nos grandes centros urbanos há pessoas que não usam este tipo de ferramentas no seu trabalho do dia-a-dia. São os pais que saem de casa às 6h, voltam a casa às 20h e não sabem lidar com estas ferramentas. Mas o não saber não é problema, o problema é quando não queremos saber. O caso da inteligência artificial, por exemplo, a maior parte dos pais sabe pouco sobre isso e se assumirem a postura do ‘meu filho é que sabe’ e se quiserem continuar a não querer perceber nada disso então vamos ter um problema. Tenho de me envolver numa parte que é cada vez mais importante da vida dos nossos filhos. Se não tiver esse acompanhamento quem vai ensinar os valores da minha família não sou eu, vão ser criados pelos valores destes influencers da treta.
CM: Temos muitos pais que não sabem, por exemplo, o que é o controlo parental e outros que não o sabem implementar. Têm medo de mexer nos telemóveis dos seus filhos, no sentido de estragar alguma coisa. Ainda há muita iliteracia digital. E o que vemos quando vamos às escolas e fazemos sempre questão de dar formação aos pais é que, infelizmente, muito poucos pais vão a essas sessões.
As redes sociais vieram para cá, assim como séries que mostram essa realidade que muitos pais não estão preparados para saber…
TM: Esta é uma série de ficção, mas retrata situações que acontecem. Já houve jovens a matar amigos e colegas. Esta realidade da misoginia e dos grupos organizados de misoginia é uma realidade. É bom que os pais acordem para esta realidade, senão quando acordarem já será tarde demais. Nas sessões perguntamos aos pais que plataformas é que os filhos seguem e que influencers seguem e a generalidade dos pais conhecem duas ou três redes sociais, ainda conhecem menos quem são os influencers que os filhos seguem e menos ainda o que é que os influencers defendem. Também fazemos um exercício para saber quanto tempo os miúdos usam o telemóvel. Ainda esta sexta-feira estivemos numa escola, em que a utilizarão do telemóvel é proibido e o que verificamos é que têm tempos reduzidos de utilização na escola, mas quando vamos ver ao fim de semana os tempos disparam. Na realidade, o tempo que utilizam na escola é mínimo porque têm intervalos de cinco ou de 10 minutos e de duas horas à hora de almoço quando comparado com o tempo que passam em casa. Isto revela que, se proibirmos na escola, vão carregar no tempo de utilização em casa. Às vezes, ao início da manhã, há miúdos que já têm quatro horas de utilização de telemóvel porque estiveram a ver Netflix ou tiveram numa conversa com um colega ou a jogar até às quinhentas da manhã.
CM: Não gostamos de ir às escolas e de ver os miúdos agarrados ao telemóvel nos recreios, mas também não acreditamos que a proibição seja a melhor solução. A melhor solução é, juntamente com os jovens e ouvindo toda a comunidade escolar – incluindo os pais – regulamentar a utilização de telemóveis na escola porque a maioria dos miúdos tem consciência que têm uma utilização excessiva. Andamos em escolas de norte a sul do país e são todos diferentes. Há uma escola no norte que até piscina interior aquecida tem. Há uma outra escola, mais no centro, que tem uma pista de BTT e temos outras em que nem é possível jogar futebol porque não têm espaço, é tudo envidraçado e não têm nada para fazer.
O que acham da ideia da PSP alertar os pais para o duplo significado dos emojis?
TM: Há coisas que podem ajudar, nomeadamente um dicionário de emojis. Mas agora estamos com um problema maior com a inteligência artificial e temos de perceber que as coisas são dinâmicas e aquilo que na minha geração queria dizer qualquer coisa, hoje tem um significado diferente. Os jovens tem a sua própria gíria, em que muitas vezes um adulto fica completamente de fora. Recentemente tivemos num evento e uma das grandes dificuldades que quem trabalha na área da inteligência artificial está a ter é a da tradução da linguagem dos jovens, porque quando é de português para francês ou para qualquer outro idioma estabelecido é fácil, mas colocaram-nos um diálogo entre dois jovens em língua inglesa e nossos colegas ingleses não perceberam o que estavam a dizer e não eram emojis, eram palavras. E isso também acontece com os jovens portugueses. Costumo dar esse exemplo: ‘Chega-me essa cena é chega-me essa coisa’, mas também pode ser para um jovem ‘chega-me esse charro’.
CM: É óbvio que é importante que se saiba, que se conheça essa espécie de gíria, mas também devemos ter a consciência que os jovens falam a língua deles e podemos não perceber tudo o que estão a dizer. Faz parte do desenvolvimento deles e faz parte dos pais criarem essa conexão.