A virtude e força subversiva da bisbilhotice


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No quadro das sociedades contemporâneas marcadas por uma constante luta cultural pelas formas de representação e até pelo recenseamento da linguagem socialmente apropriada, têm emergido com particular força, sobretudo enquanto regime de libertação, os boatos, os rumores, a coscuvilhice, um último recurso dos marginalizados contra os valores e a estética dominantes.

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É a maresia dos ordinários, e leva muitos nomes, ou declinações, disfarces, sendo uma forma retardada de moral, que excita os impulsos fratricidas, as invejas, se delicia ou engrandece com a ruína dos demais. É um modo de se livrar das suas próprias misérias ou esquecê-las, regozijando-se com as dos outros, e passa por investigá-los, ter as margens anotadas de detalhadas crueldades. E daqui, neste ponto onde nos vemos enquanto colectividade nacional, temos menos um farol com vista sobre a cena, do que um laboratório avançado no que toca à particular consistência desse processo de organização das trevas. Deste país se pode dizer que sabe alguma coisa sobre o que é viver debaixo de um ambiente de malícia especulativa, e que se habituou a pedir à eternidade que sobre ele satisfizesse o seu infinito rancor. Durante quase meio século, vigorou por aí em pleno o regime dos chibos, uma vez que a denúncia era a verdadeira estrutura em que assentava o Estado Novo, que soube encorajar esse impulso nefando para espiar e degradar o outro. A vigilância, a bufaria, o quotidiano de sufocação, tudo estava afinado como um instrumento de tortura nacional, para reduzir a alma e os comportamentos aos propósitos da intriga, de tal modo que cada gesto ou palavra se tinham medidos e retorcidos, de forma a esquivar-se à maledicência e aos elementos da censura. Naturalmente, não podíamos sacudir esse imenso estupor numa geração, ou em duas, e passado outro meio século, vemos como persiste ainda entre nós essa tensão insidiosa. No fundo, pode reconhecer-se como a democracia reconheceu que havia ali uma forma de indemnização, uma espécie de recreio para as almas atascadas, dando-lhes o que roer no meio de todo este letargo, sendo certo que essa forma de distúrbio ocioso faz parte dos benefícios de uma vida pública que não consegue consistir em verdadeiros projectos nem oferecer ao país uma imagem positiva de si mesmo, um mito de algum quilate. Ora, toda essa frustração acumulada acaba por gerar um excedente na produção de bílis, e é tarefa do Estado ou das instituições conexas, e daqueles que nestas pretendam triunfar, fazer o possível para providenciar alvos, objectos contra os quais se mostre lícito e até, quase, altruístico investir. Nesse aspecto, o Estado Novo, debaixo daquela capa de probidade, da defesa sistemática dos valores tradicionais e do quadro conservador, não andava longe dos barbarismos que ferviam o sangue e dirigiam o asco que não está inspirado de um propósito ou da ilusão de um destino, e, assim, fomos levados de volta aos litígios que associamos às épocas medonhas, as fogueiras humanas, às intrigas que fornecem rituais absurdos e superstições para se ocupar de receios, dos males obscuros, dos ressentimentos fundos, dando a um povo o alimento das vinganças, ligadas a preconceitos arraigados, às animosidades de seitas e contendas entre facções ou grupos. Como nos diz o ensaísta inglês William Hazlitt na formidável peça que oferece o título e abre a magistral selecção de ensaios que dele nos ofereceu Ricardo Mangerona – Do Prazer de Odiar e Outros Ensaios –, numa antologia feita para as Edições 70, “o prazer de odiar, como um mineral venenoso, corrói o cerne da religião e transforma-a numa úlcera biliosa e carrancuda; faz do patriotismo uma desculpa para transportar o fogo, a peste e a fome para outras terras: não deixa à virtude mais do que o espírito de censura e uma vigilância estreita, ciosa e inquisitorial sobre as acções e os motivos dos outros”. E logo interroga: “Que têm sido as diferentes seitas, credos, doutrinas religiosas, senão outros tantos pretextos inventados pelos homens para se disputarem e querelarem, e para se fazerem uns aos outros em pedaços, como alvos a abater?”

É uma espécie de ventriloquismo demoníaco, em que a incapacidade de uma colectividade ser animada pela diferença leva a que se acolha nessa obstinada adesão a uma moral purulenta, que tantas vezes fustiga o próprio corpo para se penitenciar pelos vícios mundanos, acabando por denunciar uma absurda intolerância às fraquezas humanas. Assim emerge essa trama que estabelece as condições para que, nos interstícios da malha social, se possam abrir parêntesis em que deixamos de parte as peias da civilização, o parco véu de humanidade, liberando a besta selvagem que assim retoma o seu domínio dentro de nós, acicatando em nós aquele instinto próprio dos animais de predação (William Hazlitt). E a este ser que emerge e é cultivado por estes quadros de opressão não lhe basta fazer tudo o que pode para vexar e magoar o seu semelhante, mas confisca a própria vida, envenenando a sua margem de sonho, arrastando o quotidiano para os rasos baixios da existência. Com isto se transforma o País-Real num País-Fábula muitíssimo tacanha, enquanto a vida se dissipa ou dissolve em pequenas quezílias. Este regime permite a domesticação das vontades, submetendo a consciência às arguciosas insinuações do beatério, aos requintes de que é capaz o espírito miudinho, niquento e medroso, francamente idiota, só restando do país esse recreio de pequenos alibis, e aos naturais esses espasmos cínicos, essa rotina que vai embotando os reflexos de indignação. Isto leva Eduardo Lourenço a destacar no seu Labirinto da Saudade essa trança negra que o percorre, “o reflexo pícaro por excelência de uma ‘maledicência’ quotidiana de café sobre nós mesmos”. “Quando não é o sintoma mesmo de uma degradação masoquista é um jogo que faz parte intrínseco da a-criticismo, do irrealismo de fundo de um povo que foi educado na crendice, no milagrismo, no messianismo de pacotilha, em suma, no hábito de uma vida pícara que durou séculos e que uma aristocracia indolente e ignara pôde entreter à custa de longínquos Brasis e Áfricas. Mas o anedotário quotidiano tem também uma face positiva na medida em que traduz mesmo sob a forma suspeita que é sempre a sua – como forma de ócio imerecido e fácil fuga diante do real – a verdade de um imobilismo de alma ou de uma mobilidade sem objecto tão própria do nosso projecto de vida colectiva desde a época crepuscular em que deixámos de ser um povo de acção paralela ao verbo.”

Contudo, o efeito dessa malevolência de um país que, na sua miséria, e para que certos privilégios não se tornassem um alvo demasiado óbvio precisou de construir relações em que a lógica passava sempre por se afirmar causando o maio dano ao vizinho, degradando o impulso de associação e revolta, o certo é que temos passado ao lado dos elementos mais benéficos da coscuvilhice, uma vez que se instalou esta pressão desagregadora, em vez de ser um elemento para reforçar as afinidades e os elementos de proximidade, esse sentimento de pertença e de lealdade a uma condição comum. Se um bando de revolucionários e agentes conspirativos tivessem aportado a este nosso enclave em meados do século passado, encontrariam as almas portuguesas hermeticamente calafetadas à força subversiva da má-língua. Se o desejo de tomar parte nesses círculos onde ganham espessura as inconfidências que fazem estalar o verniz social que nos preserva numa leitura superficial e reduzida às solenidades insossas, aos discursos caracterizados pela hipocrisia e aos valores que nos aborrecem de mote, dando a sensação de que vivemos num museu de figuras embalsamadas, nada como uma boa intriga para reanimar as hostes. “O desdém da alta cultura pela coscuvilhice é estratégico e é sintomático de profundas ansiedades acerca do poder subversivo da tagarelice, da troca de histórias e do envolvimento na actividade aparentemente frívola da conversa fiada, maliciosa ou benigna”, assinala Maria Tatar, uma académica norte-americana especializada em em literatura infantil. A conversa fiada [Gerede] é algo em que qualquer um pode tomar parte, trazer novos ingredientes e agitar as coisas, assim o intuiu Heidegger, que se juntou à condenação desse quadro igualitário da coscuvilhice, reconhecendo a utilidade que tem para todos quantos se sentem socialmente marginalizados. Contudo, o filósofo alemão não deixou de reconhecer o valor pragmático dessa forma de discurso que vem prevaricar e furar a caixa das narrativas oficiais. Ser visto e ser ouvido, diz-nos Hannah Arendt, só é possível na arena pública, um espaço de recordação organizado. Tudo o resto é efémero e indigno de comemoração.

Como se sabe, o enredo mexeriqueiro desempenha um papel fundamental nas literaturas de tradição oral, e a própria Bíblia nos fornece uma série de exemplos do “diz que disse”, daquilo que chegou aos ouvidos da gente comum e foi ganhando dimensões inoportunas, como um abalo que irrompe e perturba a paisagem. E se, nos nossos dias, a literatura tentou distanciar-se o mais possível da tagarelice, no seu estilo tão hábil como penetrante, Truman Capote foi dos poucos que lhe negou essa elevação, afirmando que “toda a literatura é coscuvilhice”. E ele que foi um dos escritores que pagou mais caro o facto de ter denunciado essa fronteira, sendo um fabuloso agente do contrabando entre um território e o outro, sabia alguma coisa do que excita as consciências, e de como, no fundo, a literatura é apenas uma forma sofisticada de romper com o discurso dos vencedores, é essa trama que concorre com a História, troçando e provocando embaraço aos anais. Ele pode ter acabado muito mal, mas ainda estamos a falar dele.

Seja como for, e mesmo que se entenda que a coscuvilhice não subsume a literatura no seu todo, mas não passa de um dos seus géneros, ou de um quadro possível, é indubitável o quanto este nutre uma particular tentação humana, sendo que aquilo que o torna tão instigante é ser tão incontrolável, devendo reconhecer-se nele uma natureza instável, anárquica, infinitamente paradoxal. E havendo bons argumentos que nos permitem assinalar os tantos elementos que permitem reconhecer com as antigas epopeias que tiveram origem na tradição oral parecem ter bebido muito nesse quadro dos mexericos, esta possibilidade arqueologia é defendida por Kelsey McKinney, uma jornalista e apresentadora do popular podcast “Normal Gossip”, que debate o papel cultural dos mexericos, e que escreveu um livro dedicado ao tema (“You Didn’t Hear This from Me: (Mostly) True Notes on Gossip”), em que toca todas as derivações a partir desse quadro, das lendas urbanas às teorias da conspiração, mergulhando num dos elementos decisivos para se compreender a turbulência a que foram sujeitos os quadros da informação e comunicação numa era em que são inúmeros os canais que induzem e estimulam diferentes formas de conversação.

No entender de McKinney, a coscuvilhice é uma espécie de sistema imunitário que defende aqueles que não acedem aos centros do poder e que, por isso, muitas vezes estão sub-representados nas esferas onde se formulam as lógicas de comunicação de massas, permitindo-lhes estabelecer essas linhas de fuga, esse desacato ao nível da consciência e erigir um pensamento autónomo. Mas ainda antes de se pensar no elemento transgressivo dessa cultura rumorosa, esta jornalista assinala o efeito de vinculação e uma virtude mais abrangente… “Sem a auto-consciência adquirida pela coscuvilhice, tornar-nos-íamos cascas de nós próprios, tão desinteressados do mundo que nos rodeia que nos separaríamos dele por completo.”

Acontece que, fora dos modelos de vigilância que o próprio poder incita, a coscuvilhice que tem um efeito corrosivo para as figuras de destaque e aquelas instâncias que dependem do seu prestígio continua a ser repudiada, estigmatizada, mas um exemplo que McKinney destaca é bem ilustrativo da ameaça que este tipo de discurso pode representar para o poder e as suas hierarquias. Uns meses antes do movimento #MeToo tomar de assalto a reserva editorial dos grandes títulos de imprensa, no verão de 2017, a revista feminista judaica Lilith dedicou um posto no seu blogue intitulado “Em Defesa de Lashon Hara: Por que a coscuvilhice é um imperativo feminista”. Como explica Alexandra Schwartz num artigo na The New Yorker, tal como McKinney, a autora do post, Rachel Sandalow-Ash, concluiu que o discurso das mulheres tinha sido injustamente difamado por homens poderosos que preferiam que os seus actos não fossem discutidos. “Ao encorajar as mulheres a partilharem informação que as pode proteger, quer se trate de um líder comunitário ou de um colega de faculdade conhecido por ter comportamentos licenciosos, ferindo o decoro e gozando com os limites do consentimento sexual, segundo ela, a coscuvilhice cumpria de facto o imperativo judaico de ‘criar um mundo mais justo’.”

 Schwartz nota, assim, que os mexericos podem operar ao serviço da verdade, funcionando como um regime informal de escrutínio do poder, de o estribar, servindo ainda como uma fonte de solidariedade e de irreverência para aqueles que não encontram mecanismos alternativos de garantirem os seus interesses. “Tea” (chá), esse termo que se tornou tão omnipresente na cultura anglo-saxónica, teve origem na cena negra do drag-ball, lembra a crítica da The New Yorker. Assim, estamos a falar de elementos de uma cultura subterrânea, redes de sussurros contemporâneas que dão substância a um pacto refractário, e se, secularmente, a tagarelice e a conversa fiada teve sempre os seus detractores, é preciso questionarmo-nos porquê? Não seria inconveniente não tanto por rebaixar o nível intelectual daqueles que cedem a esse registo malicioso, mas precisamente por traduzir um ânimo subversor? E não foi tantas vezes denunciado como um modo discursivo próprio das mulheres, tantas vezes remetidas para esconsos e divisões pouco dignas desse invisível trabalho doméstico, ou apenas escondidas do mundo enquanto consortes nos enredos do prazer, nos tais haréns onde, segundo boa parte dos relatos, proliferava um tipo de conversa picante, com elementos de “sátira, ridículo e desrespeito pelos homens e pelos ideais do mundo masculino”.

 À coscuvilhice sempre foi associada um elemento de devassidão, a repulsa e condenação desse registo impúdico, que se detém tantas vezes sobre os aspectos degenerados, e isso exprime um receio por esse poder de desvio, por uma forma de lascívia perante esses quadros que estão sob reserva, que são protegidos do conhecimento geral por tabus, mantidos em segredo por se considerar que podem contaminar e contagiar um certo favor ou estatuto de que gozam aqueles que cercam a sua eminência de elementos de prestígio. As indecências não deixam de estar lá, mas quem as revela é que colhe muitas vezes a desclassificação dos atributos pornográficos. Por isso é que convém que a coscuvilhice seja reprimida, por esta ter um apelo que a assemelha ao sexo, produzindo uma satisfação de ordem sensual, ao desvelar os elementos escondidos.

É certo também, como começámos por referir no quadro da vida portuguesa, que se a coscuvilhice pode subverter as normas, também pode ser usada para as reforçar. Como assinala Schwartz, se ser motivo das especulações e de todas essas conversas em tom de sussurro pode conferir estatuto a uma pessoa, deixando claro que faz parte dessa minoria cuja intimidade espicaça a curiosidade dos demais, não faltam esse regimes onde o tráfico de segredos sobre a vida íntima das pessoas serve como um elemento decisivo de coacção. Por isso mesmo, todos os aparelhos totalitários se organizam enquanto redes de informação, procurando obter essa composição de elementos “sórdidos” de forma a exercer pressão, controlando a narrativa pública através desses fios que atravessam e constrangem a vida privada. E, por esta razão, muitos dos que sofreram na pele esses constrangimentos, essas formas de manipulação, tendem a condenar todas as formas de coscuvilhice. É o exemplo de Roland Barthes, que, em Fragmentos de um Discurso Amoroso, denuncia este género como uma prática que reduz o outro a um ele/ela, vincando como essa redução foi sempre intolerável para ele, e comparando os discursos mexeriqueiros a uma forma de homicídio. Para este tão subtil crítico, essa forma de nos referirmos a alguém na terceira pessoa, servindo-nos do mais malévolo dos pronomes, é mais do que falar pelas costas, é condenar a pessoa a uma ausência, da qual não poderá defender. No fundo, ele vê neste dispositivo uma degradação total da empatia, de tal modo que aquele de quem se fala aparece despojado de si próprio, sendo-lhe retirada toda a dignidade, como se lhe fosse negada a capacidade de reafirmar a sua própria vida.

Sente-se que Barthes fala consumido por um trauma, e afasta da coscuvilhice esse aspecto decisivo que passa por não se transformar num regime de discurso que vai num só sentido, mas que exige o dinamismo das posições, uma intriga circular, e na qual a todos acaba por ser dada a possibilidade de influenciar o discurso, que, precisamente, não chega a fixar-se, mas é mutável, sujeito a sucessivas correcções, e ao favor das afeições entre aqueles que através dele se ligam. Seja como for, Barthes diz-nos que ao ouvir o nome daqueles que ama ser proferido nesse registo, a sensação que tinha era a de ver o seu amado entregue à morte, reduzido, arquivado numa urna e depositado na parede do imenso mausoléu da linguagem. É uma imagem estarrecedora, e que serve também para nos colocar de sobreaviso quanto aos efeitos da calúnia, que certamente compõem também o arsenal de perversidades ao dispor daqueles que se entregam às congeminações mexeriqueiras. E certamente há um efeito absolutamente traumático em ser-se alvo de uma campanha insana para devastar o nome e produzir uma imagem falsa de alguém, fazendo com que os que lhe têm afeição sintam a injustiça de ver alguém ser enterrado vivo, com os seus gritos ignorados enquanto lhes são prestados os ritos mais indignos, ao ponto de a sua existência ser tomada como inteiramente devoluta, transformada num mero objecto que serve para as convenientes ficções que sustentam as vidas dos demais.

Esse efeito de alienação através do pronome que condena alguém a existir apenas na terceira pessoa pode ser imensamente degradante, mas não esgota as potencialidades deste quadro de conversação que deriva do curso principal, e cujo maior perigo seria se pudesse ser cooptado pelos vícios que o próprio poder alimenta através dos seus enredos. Num certo sentido, essa figura que se torna um alvo de estranhos só o será enquanto estiver investida de um certo grau de exemplaridade, motivando invejas, atraindo a compulsão satírica ou o desdém daqueles que precisam dela para pôr em ordem o seu próprio mal-estar ou frustração. Por essa razão é que a coscuvilhice é um veio necessário e que vai oxigenando de todos os lados a cultura das celebridades, o vedetismo e as formas de promoção que a fama confere, e que torna uma pessoa digna de centrar em si os debates, atraindo a concupiscência dos outros.

McKinney usa o termo “entitlement gossip” (a coscuvilhice a que cada um sente ter direito) para atender a essa sensação que o público tem de que a sua curiosidade em relação às informações pessoais sobre as figuras públicas deve ser satisfeita, e Schwartz nota que esta é uma prerrogativa que tem assumido manifestações cada vez mais vampíricas numa era marcada pelo tipo de alucinação favorecido pela convivência nas redes sociais. “A autora fala também de algo mais obscuro: a ilusão de que a condição de fã de algum modo significa estabelecer uma relação mútua com o seu objecto.” E se não faltam exemplos de como as narrativas que constituíam o próprio eixo de uma cultura e permitiam um debate informado e comprometido com as causas essenciais de cada época foram abalroadas por delírios de toda a espécie, uns bastante daninhos e inofensivos, outros absurdamente degradantes e perigosos, se tem ganhado expressão uma forma de populismo medonho que intensifica essas percepções falsas, preconceituosas ou supersticiosas, animando um tipo de ressentimento que permite a manipulação dos eleitorados para benefício de grupos de interesse, a literatura continua aí para nos fornecer um faustoso cânone de antídotos, de hipóteses de sabotagem dos projectos políticos, sobretudo desses que têm como fito instaurar regimes totalitários. E isto lembra-nos que essa tentação de nos debruçarmos sobre os actos, os desejos e a intimidade dos outros pode ser elevado pela atenção e a densidade interpretativa a uma verdadeira forma de arte. No fundo, a literatura depende precisamente desse laço fundamental, que nos leva a uma forma de digressão que rompe com os vícios da nossa posição, e da lógica identitária, apelando a uma mobilização imaginosa no sentido de se colocar no lugar do outro, pensar e sentir através das experiências que lhe são próprias, dos pontos de vista que foi aguçando, e, na vinda, isto serve para dissipar a tentação em nós de assumirmos uma postura sentenciosa, que julga e condena de forma apressada, sem reconhecer os conflitos latentes, a estrutura complexa e o enredo que nos permitiria assumir uma leitura compassiva da vida dos outros. Como assinala Ortega y Gasset, o homem é ele e as suas circunstâncias, e querer extraí-lo a elas é simplesmente ser incapaz de se deslocar, de reconhecer os aspectos essenciais que fazem da realidade esse quadro para a expansão de mundos.

Como vinca Schawartz, o paradoxo da ficção reside no facto de através dela nos ser possível nutrir sentimentos bastante reais e profundos a partir de enredos contrafactuais, pessoas e situações inventadas. Assim, a diferença para a coscuvilhice é que aí, normalmente, começamos pelo outro lado, pelo menos pretensamente julgamos que estamos a falar de pessoas reais, “depois embelezamos e decoramos até se tornarem personagens”, adianta Schwartz. “Para se coscuvilhar bem – e elevar isso a uma proeza de ordem estética – aquele que o faz precisa de suplementar o seu juízo de um certo quociente de simpatia: cada dose informação, deve forçar a imaginação a um impulso que seja capaz de integrá-la nas suas diferentes ramificações. Nada é mais alienante do que a coscuvilhice que é usada para se gabar ou para apoiar a presunção do seu contador. É por isso que a intriga de Capote e os seus cisnes [Feud: Capote vs. The Swans, série televisiva de Ryan Murphy sobre a relação entre o escritor e as socialites nova-iorquinas que frequentava] se lê agora com tanto azedume. Há um tom de gabarolice, de gabarolice nociva. Capote limita-se a montar os seus temas na parede da sua prosa como se fossem cabeças de veado. Vejam o que apanhei! Mas porque é que nos havemos de importar? A boa coscuvilhice, tal como a boa literatura, quer apanhar os seus alvos em movimento, vivos.”

Nos tempos mais próximos os relatos ou ficções construídos colectivamente no regime do boato continuarão a ganhar um apelo crescente, e a desempenhar um papel decisivo no que toca a dar-nos o gosto próprio da época, e não se deve desdenhar nem o apelo nem o impacto ou influência cultural deste modo de relato, exigindo um tipo de interpretação que deverá servir-se dos instrumentos da crítica literária, que aprendeu há muito a reforçar-se nas análises de outras disciplinas, não só dos instrumentos filológicos, mas dos quadros da sociologia e de outros ramos das ciências sociais. E isto porque o nosso mundo deve ser encarado como um misto complexo de ficção, mitos, alegorias e metáforas, combinando e destilando factos mais ou menos fidedignos. A História implodiu, a informação está sujeita a um quadro de suspeitas que devem obrigar aqueles que a veiculam a reforçar o vigor interpretativo, em vez de continuar com mistificações presunçosas como a ideia da objectividade. O mundo foi avassalado pelas subjectividades, e as tensões só poderão ser apaziguadas se os quadros de representação admitirem as diversas fontes de conhecimento, entrelaçando-as em narrativas cativantes e que voltem a dar sentido ao mundo, mas na sua potência de multiplicação e variação infinita. O erro é tentar combater a desinformação a partir de teses totalitárias. Fala-se demasiado na importância de estimular a empatia, mas depois fornecem-se sempre as rançosas panaceias do costume. É natural que o público prefira a elas a obscenidade dos boatos e mexericos, que ao menos permitem que se estabeleçam laços sociais mais complexos, voluptuosos ou libidinosos. Durante demasiado tempo foram condenadas e repudiadas essa formas de discurso que se deliciam com os detalhes sórdidos, que conduzem a reflexão para os tais baixios das existências, preferindo-se uma forma de pensar o mundo e as questões num nível mais abstracto, e de grande escala. Durante demasiado tempo, essas análises serviram para nos infundir uma certa culpa, sendo o paraíso usado como um suborno e o inferno como uma coacção, permitindo construir toda uma cadeia de valores associada a essas composições abstractas, enquanto à conversa fiada e à coscuvilhice se associava a ideia de vulgaridade, de uma moral dissoluta, o que denunciava já de si os sectores que era importante silenciar, sendo o silêncio imposto como hábito a tantos, e especialmente às mulheres. E se com o tempo conseguimos libertar-nos das restrições de ordem sexual (mesmo se, hoje, o puritanismo voltou a entrar em cena e em força, conquistando posições agora em nome da libertação), as restrições de ordem verbal em grande medida mantiveram-se, sobretudo quando exprimem os pontos de vista das minorias, e das mulheres em particular, criando uma grande ansiedade, gerando complexos e outros esforços para conter e policiar as suas “veleidades” e, especialmente, quaisquer posturas libertinas. Ora, como refere Maria Tatar, é precisamente por reacção aos subterfúgios e à subtileza desse quadro de repressão, que a coscuvilhice vai imperando como o modo próprio dos que pretendem libertar-se dessas estruturas, e o valor deste género de discurso explica-se pela capacidade de criar “oportunidades para falar sobre os emaranhados emocionais da nossa vida social”. “Os seus participantes constroem conjuntamente narrativas a partir das coisas da vida quotidiana, enredos picantes carregados de alegria especulativa”, adianta a escritora norte-americana. “A coscuvilhice abrange uma série de temas, entre os quais o escândalo, que nos convida a falar sobre dilemas morais e conflitos sociais. E, mais importante ainda, serve de recurso para aqueles que não têm acesso a outras opções de obtenção de conhecimento, funcionando como uma forma licenciada de libertação que, embora não altere a ordem das coisas, continua a servir de escape expressivo.”