Nota prévia: José António Saraiva faleceu na passada quinta-feira. Foi fundador e diretor do SOL e, durante vinte anos, o diretor e reformador de um Expresso que conseguiu salvar das investidas do Público e de O Independente. Para além de um trato pessoal afável e de grande senhor, JAS foi um dos mais independentes e livres editorialistas portugueses dos últimos trinta anos. As suas análises, além de perspicazes e argutas, eram em regra inovadoras e imprevisíveis. Havia sempre algo que surpreendia na sua leitura dos factos, que apresentava de forma escorreita e arrumada, talvez reflexo da sua formação em arquitetura. Mesmo quem dele discordava, via-se obrigado a reconhecer que o seu ponto de vista era válido, ainda que fora da caixa, como agora se diz. José António Saraiva era verdadeiramente singular e, por isso, deixa um vazio insuperável nas colunas dos jornais portugueses.
1. Na hora de entregar esta crónica, não há nenhum dado que permita antever a mais ténue hipótese de a moção de confiança do Governo ser aprovada. Assim sendo, o governo deve cair e é praticamente inevitável que voltemos a ser chamados a ir às urnas em meados de maio, encurtando todos os prazos. Também é certo que desta vez não é necessário adiar seja o que for para permitir a qualquer dos partidos parlamentares discutir a sua liderança. Todas as formações com deputados vão concorrer com os mesmos líderes que tinham há um ano. Não tendo a sua origem em questões políticas, mas aspetos diretamente relacionados com um caso que envolve um alegado comportamento eticamente condenável do primeiro-ministro, é forçoso reconhecer que esta chamada às urnas só acessoriamente vai julgar a ação de um governo de dez meses. O que vamos ter é um plebiscito ao comportamento ético de Luís Montenegro e, em parte, ao de uma classe política desacreditada por uma sucessão de casos que afeta todos. Acossado pela oposição, Montenegro deu o passo em frente, achando que uma relegitimação pelas urnas resolve a sua delicada situação, o que não é certo. De facto, mais adiante, o PS ou o Chega podem na mesma tentar convocar uma comissão parlamentar de inquérito aos negócios familiares de Montenegro. Na campanha virão certamente à baila lamentáveis episódios recentes ou remotos envolvendo políticos. Mais do que nunca, o julgamento do povo incidirá sobre a pessoa, o caráter, a honradez e a confiança que lhe merece a figura de quem se candidata a primeiro-ministro. Neste momento, apesar da ausência de sondagens, a corrida está limitada a Luís Montenegro e a Pedro Nuno Santos. Um deles deverá, em princípio, ser o próximo chefe do governo e é provável que o perdedor tenha de refazer a vida fora da política. Num estudo de opinião da Pitagórica feito em duas etapas, uma antes e outra depois da crise, a AD desce (passou de 35,6% para 33,5% entre os dois momentos), mas segue à frente com o PS a subir (27,2% para 28,8%). Estão em empate técnico, visto que a margem de erro é de 5%. O Chega cai bastante e fica-se por 13,5% em vez de 17,4%. Há 16% de indecisos. O dado mais grave é para Montenegro pessoalmente. Tinha 52% de apreciação positiva e desce para 47%. As apreciações diretamente negativas sobem bastante. Passam de 8 pontos percentuais e atingem 46%. Se formos mesmo para eleições, a batalha vai ser mais dura do que nunca.
2. Apesar da crise esmorecer o apetite jornalístico pelas presidenciais, esta permitiu distinguir o potencial de cada um dos principais candidatos a Belém, quer estejam formalmente no terreno ou não. Quem esteve melhor, mais consistente e mais construtivo foi Luís Marques Mendes. Mostrou um entendimento diferente do de Marcelo. Em vez de proclamar logo um calendário eleitoral, apelou ao Presidente para fazer um último esforço para evitar eleições prejudiciais ao país. Apontou mesmo um guião com três diligências. A saber: Montenegro responder por escrito e à comunicação social sobre as dúvidas que subsistem; um compromisso do PS de que, se tal sucedesse, este retiraria a sua comissão de inquérito, deixando o governo de apresentar a moção de confiança. Já António José Seguro apelou ao diálogo, o que não sendo tão preciso na metodologia é aceitável. Quanto a Gouveia e Melo foi um naufrágio. Limitou-se a dizer que os agentes políticos tinham de resolver o assunto depressa por causa dos problemas internos e externos. Uma completa “lapalissada” que roça o ridículo. Bastou para comprovar que Gouveia e Melo não tem arcaboiço político. De balística é capaz de saber muito, mas de política em tempo de crise não pesca nada. Ao menos Vitorino e André Pestana ficaram caladinhos. O primeiro provavelmente a dar um douto parecer jurídico e o outro a preparar mais uma chatice para quem tem filhos a estudar.
3. Voltando ao Presidente Marcelo, passou em claro um detalhe na sua longa catilinária explicativa do percurso e calendário da crise. Na torrente de palavras para justificar a convocatória para maio, aludiu à circunstância de que isso só é possível porque não está em causa uma mudança de liderança no PSD. Foi uma bicada subtil a Montenegro. Marcelo sabe que muita gente no partido considera à boca pequena que esta é a hora de Passos. E seria certamente se o ex-primeiro-ministro não tivesse dito sempre que nunca avançaria contra Montenegro e tivesse o raro hábito político de cumprir o que diz. Isto, apesar da política ser das poucas áreas na vida onde a flexibilidade pode ser virtuosa, pois depende de circunstâncias muito variáveis.
4. Não sendo um indicador determinante, as próximas eleições regionais antecipadas na Madeira servirão de argumento político e de motivação, para quem as ganhar, na campanha das legislativas nacionais. Na origem da dissolução do parlamento regional está uma sucessão de casos de justiça envolvendo o PSD e o seu líder local, Miguel Albuquerque. De tal forma que o governo regional foi derrubado pelo Chega, levando mesmo a uma crise interna do PSD regional, que está no poder há 48 anos.
5. Quem também fica mal na fotografia com os últimos desenvolvimentos é André Ventura. Merece o cognome de ‘O Saltitão’. Ele, que se via em Belém, desviou-se oportunisticamente para S. Bento, ao anunciar que será candidato a primeiro-ministro. Pôs ao ridículo o Chega, que é um partido dele, para ele, só dele e de verbos de encher. Anda aos ziguezagues políticos ao jeito dos motoristas recém-chegados do Indostão que tripulam desastradamente carros TVDE a olhar para o Waze. Em vez da deplorável foto de centurião romano que publicou nas redes, ficava-lhe melhor um turbante tipo sikh. Ridículo, patético e pateta!
6. A propósito das prováveis eleições legislativas, é importante clarificar que seria uma desonestidade e um abuso que os políticos já anunciados como candidatos a vereadores surgissem em listas de deputados. Não sendo proibido, apostar em dois carrinhos, revelaria um oportunismo suscetível de afundar ainda mais o prestígio da classe política.
7. Foi exatamente há 50 anos que, na sequência de uma frustrada intentona militar spinolista ou de uma inventona da esquerda (consoante as opiniões) o governo comunista de Vasco Gonçalves obteve as condições de avançar com a nacionalização de grande parte da economia portuguesa e com a ocupação de terras no Alentejo. Tratou-se de uma das maiores desgraças da nossa vida contemporânea. Levou anos até chegarmos a uma economia de mercado. Viveu-se uma situação que parecia a aplicação simultânea do eurocomunismo, da autogestão jugoslava, da aplicação prática das teorias do Bando dos Quatro e do bolchevismo. Os desmandos do 11 de Março só amainaram com o 25 de Novembro, graças à coragem civil de Mário Soares e militar de Eanes, Jaime Neves e do chamado Grupo dos Nove. Hoje, ninguém, a não ser uns poucos extremistas de esquerda, quer repetir uma tão sinistra e traumática experiência, que deu início ao PREC de má memória. Por isso, foram importantes os esforços de alguma comunicação social para revisitar os acontecimentos daquele dia e os que se lhe seguiram. Isto, numa altura em que a tendência para extremar posições em Portugal e no mundo se está a acentuar, fragilizando cada vez mais a democracia ocidental em benefício de regimes iliberais ou ditatoriais.