Crésus. “Desculpa lá o mau jeito, mas o dinheiro não traz felicidade”

Crésus. “Desculpa lá o mau jeito, mas o dinheiro não traz felicidade”


Croesus, o Rei da Lídia, tinha um fortuna tão grande que a apresentou ao sábio Solon, gabando-se da enormidade. Azar o dele. Recebeu uma resposta desagradável. Em seguida, os persas reduziram-no ao mínimo denominador comum da pobreza. O que não significa que não tenha ficado para a História


Parece que Crésus era um fulano muito rico. Rico como Crésus, dir-se-á. Perdido entre lendas e anexins, a sua existência não é fácil de resumir. Foi rei da Lídia, um reino da Idade do Ferro, na Ásia Menor. Ocupava mais de metade daquela que é a atual Turquia. A Ocidente. Nessa altura o seu nome grafava-se de outras formas: Croesus, Kroisos, Krowisas. Nasceu no ano 620 antes de Cristo e era filho de Alyattes I, o quarto governante da Dinastia Mermnad da Lydia, que podemos escrever modernamente e aportuguesadamente como Lídia. Este Alyattes teve uma ideia bastante progressiva: começou a cunhar moeda numa liga entre ouro e prata, o que a tornava bem mais leve e facilmente transportável do que a moeda em ferro. Ou seja, não era apenas rico em matéria de imaginação como tratou de acumular uma fortuna muito razoável. Mas deixemos o pai e concentremo-nos no filho.

Crésus teve, como era hábito à época com os descendentes reais, uma educação militar. Uma excelente educação militar, sublinhe-se. Ainda muito jovem lançou-se em campanhas vitoriosas, a mais importante das quais contra os Cimérios, um povo nómada vindo do Ponto Euxino e que avançara para sul, invadindo a Anatólia e a Arménia. Premiado com o título de governador de Adramyttium, nas margens do Mar Egeu, tratou de se preocupar com a sua ascensão ao trono, disputada igualmente pelo seu meio-irmão Pantaleão. Dizia-nos Pitigrilli, do alto da sua humorada sabedoria: «Pior do que inimigos, eram irmãos». A luta foi feroz, mas Crésus não era para brincadeiras, sobretudo quando o reinado lhe poderia adjudicar tantos privilégios. Em 585 tornou-se finalmente Rei da Lídia. E, sedento de conquistas, lançou-se em guerras e mais guerras, procurando a glória e a fortuna. Começou por atacar Efesus, na costa grega, onde deixou uma enorme biblioteca com o seu nome e cujas ruínas ainda se conservam bem visíveis. Nesse aspeto tinha alma de visionário. Queria ficar para a posteridade. E ficou. Talvez não pelas razões que o fizeram ser recordado ainda hoje, mas para o caso pouco importa. Todos gostaríamos de ser ricos como Crésus. Exceto, quanto muito, aqueles que são mais ricos do que Crésus foi.

O mito

O reino de Crésus cresceu a olhos vistos. Dominou povos uns atrás do outros, alargou as fronteiras da Lídia muito mais que o seu pai poderia ter imaginado. Mas Crésus foi também um diplomata. Criou laços de compromisso com as Cidades Estado de Delfos e de Esparta, por exemplo, acreditava que essas ligações contribuíam para e evolução civilizacional. Não era nenhum papalvo. A fama da sua fortuna indescritível começou a espalhar-se a partir do momento em que deixou de cunhar moeda na liga de ouro e prata inventada pelo pai para começar a cunhar moeda só em ouro. Nascia o mito.

Os gregos e os persas trataram de fazer correr por toda a Europa e pela Ásia Menor a história de um rei sentado num trono erguido sobre moedas de ouro. Falavam da sua relação com Midas, o rei da Frígia, personagem do panteão helénico, filho de Zeus e de Cibele, o homem que transformava em ouro tudo o que tocasse. As lendas não surgem por acaso nem caem do céu aos trambolhões. Na verdade, o rio Pactolus fazia parte do reino da Lídia e foi nas águas desse rio-deus que Midas recebeu o dom que rodeia a sua imagem universal – «seu qua Lydia Pactoli tingit arata liquor», dizem osEvangelhos: as águas de Pactolus correm nas terras da Lídia. Vamos lá ver: Midas pode ser uma personagem mitológica mas também existiu. Ou seja, houve um rei Midas e a sua urna foi encontrada por arqueólogos já durante o século em que vivemos. Para ligar Midas a Crésus é preciso percorrer outros caminhos. O ouro dos lídios vinha sobretudo das jazidas encontradas no tal rio Pactolus, rio esse que atravessava a capital do reino, Sardis. Agora é cerzir o pano, abrindo casas para os botões: pepitas de ouro lá no fundo das águas cristalinas, um homem que nelas mergulhou as mãos e com esse gesto ganhou o poder único do toque de Midas, um rei que cunhava moedas de ouro com as efígies de animais, como leões e touros, a palavra à qual acresce outra palavra, conversas que se espalham pela força das migrações e dos avanços e recuos militares, as histórias escritas, muitas na pedra. Dois reis e tanto ouro!

E, agora que este texto caminha para o fim, é forçoso abrir os portões da mais dura das realidades: tanto Crésus como Midas foram sujeitos riquíssimos graças, principalmente, à sua brutal e impiedosa coleta de impostos. O povo queixava-se mas não tinha direito a mais nada. Não era apenas a extração do minério; não havia nenhum poder divino. O dinheiro acumulava-se nas sedes dos reinos por via de tiranos exploradores que, apesar de terem noções civilizacionais interessantes para o seu tempo, como o caso de Crésus, não deixavam de viver o convencimento de que era a eles que as fortunas deviam ser atribuídas, e acumularam-nas da maneira que melhor sabiam. 

Voltemos à profundezas da lenda. Crésus decidiu visitar Solon, um dos Sete Grandes Sábios da Grécia Antiga, político, filósofo e poeta, responsável pela génese da Democracia Ateniense, e dar-lhe conta da grande fortuna que possuía. Abordou-o como se fosse a Rainha Malvada em frente ao espelho: «Diz-me Solon, quem pode ser mais feliz do que eu?». A coisa correu-lhe mal. O velho sábio tinha pouca paciência para fanfarronices. Atirou-lhe de imediato com três nomes à cara, os de Tellus, que morrera lutando pela pátria, e dos irmãos Kleobis e Bitton, que morreram durante o sono ao mesmo tempo que a mãe rezava pela sua suprema felicidade além-túmulo. Não era a resposta que Crésus queria ouvir. E Solon menoscabou-o ainda mais ao dizer-lhe que o seu valor não estava na fortuna mas na forma como seria visto depois de morrer. A partir daí a vida correu-lhe mal: assistiu ao assassínio do filho, ao suicídio da mulher e foi derrotado por Ciro I, rei dos persas, que lhe retirou o trono. Dizem por aí que o dinheiro não traz felicidade. Crésus que o confirme.