Velibor Čolić. “Disparei com uma kalashnikov e precisei de anos para me libertar disso”

Velibor Čolić. “Disparei com uma kalashnikov e precisei de anos para me libertar disso”


Foi jornalista, locutor de rádio, soldado, desertor, prisioneiro, exilado. Diz na brincadeira que chegou a França a saber apenas três palavras em francês: Jean-Paul Sartre. Os amigos riam-se quando dizia que queria ser escritor. Agora publica na prestigiada Gallimard.


Nascido há 60 anos em Modrica, na Bósnia, estudou literatura em Sarajevo e Zagreb. Tornou-se jornalista especializado em música, e locutor de rádio. A Guerra dos Balcãs, em 1991, veio virar-lhe a vida do avesso. Viu todos os seus escritos ficarem reduzidos a cinzas e deu por si com uma Kalashnikov na mão, nas fileiras do exército bósnio. Esteve como prisioneiro num estádio, conseguiu aproveitar uma tempestade e a bebedeira dos guardas para fugir. Conseguiu chegar a Zagreb, depois à Alemanha e finalmente a Paris, onde passou fome e frio.

Embora mal soubesse falar francês, queria ser escritor. Os amigos riam-se da sua ambição de querer publicar numa grande editora, mas conseguiu. Manuel d’exil: comment réussir son exil en trente-cinq leçons (Manual do exílio: como ter sucesso no exílio em 35 lições) saiu na Gallimard em 2016, seguindo-se Le livre des départs (O livro das despedidas), agora publicado em Portugal pela Gradiva, com tradução de António Gonçalves. O terceiro e último volume do tríptico é Guerre et Pluie (Guerra e chuva), distinguido com o prémio Joseph Kessel 2024.

A vida acidentada de Velibor Čolić vai transparecendo nas páginas destes romances, que misturam o trágico da guerra com o lado por vezes burlesco do quotidiano. «A guerra, o exílio, a miséria, não são só inferno. Também são o inferno, mas têm coisas engraçadas», defende. O autor conversou com o jornal por videochamada, a partir de Bruxelas.

Já não vive em Paris?

Não, vivo em Bruxelas. Estou cá desde 2021, há três anos. Cheguei cá durante a covid. No primeiro ano fiquei fechado em casa, a comer e a ver televisão, como muita gente. Desde que se voltou a poder viajar, as coisas melhoraram.

Há muitos paralelos entre a sua vida e a do narrador de o Livro das despedidas. Podemos partir do princípio de que este é um livro autobiográfico ou seria ingénuo pensar que as coisas se passaram como nos conta aqui?

Se reparar na capa, está lá escrito ‘romance’. Como hei-de dizer? Procuro uma verdade literária. Não se deve ir à procura da veracidade dos factos num romance, é muito perigoso. Mas a literatura contém uma outra verdade. Como eu costumo dizer, se quisermos ver como se vivia na Rússia do século XIX, não vamos buscar uma enciclopédia, vamos buscar Dostoiévski. No meu livro há coisas que vivi e outras que romanceio. Para mim é muito importante ser escritor e não biógrafo de mim mesmo ou repórter. Isso dá-me a liberdade de reinventar ou de esconder. É aquilo a que Aragon [poeta e romancista francês, 1897-1982] chamava o ‘mentir-verdade’ [mentir-vrai]. Algumas coisas parecem acontecimentos que eu vivi, e são mesmo. Mas é um romance – e já não está nada mal.

Mas mede mesmo 1,95m?

Sim. Por isso é que nós jugoslavos somos tão bons no basquete!

Ser assim alto e forte devia ser uma vantagem para um soldado…

Sim e não. Sim porque nos dá alguma confiança, e não porque somos um alvo maior, mais fácil de atingir. Há um refugiado dos Balcãs clássico. O jugoslavo grande, forte, desembaraçado. Em toda esta história eu tento ser assim e não consigo. Sou desajeitado, não consigo fazer grande coisa… Oscilo entre o homem forte dos Balcãs e o homem que não sabe fazer nada – e por isso se torna escritor. Mas nós temos a sorte de sermos brancos, somos refugiados europeus, e portanto invisíveis. Se não abrir a boca, posso passar facilmente por norueguês, por belga, o que quiser. Assim que começo a falar [francês], tenho pronúncia, falo mal, vão dizer: ‘É um estrangeiro’. Sou refugiado pela língua, pela pronúncia – que se mantém –, não pelo físico. E é sempre este jogo que acho tragicómico – e felizmente, porque podia ser apenas trágico.

Antes do exílio foi soldado. Chegou efetivamente a combater?

Este livro faz parte de uma trilogia sobre o exílio. O primeiro volume saiu em 2016 e chama-se Manuel d’exil: Comment réussir son exil en trente-cinq leçons [Manual do exílio: como ter sucesso no exílio em 35 lições], depois veio O Livro das Partidas e agora saiu o Guerre et pluie [Guerra e chuva], que ganhou vários prémios em França. Aí falo abertamente sobre as trincheiras, a guerra, tudo o que fez de mim um refugiado. Infelizmente fui soldado durante a guerra, mas era um soldado simpático… A diferença entre a verdadeira guerra e o cinema americano, como costumo dizer, é que na guerra não há um Bruce Willis para nos salvar [risos]. O Livro das Despedidas está no centro desta trilogia, e faz-se destas pequenas partidas: ao encontro da língua, ao encontro de uma mulher ou ao encontro da literatura. É uma espécie de livro-estrela que vai em todas as direções, porque a própria vida por vezes é assim desorganizada. Por isso sim: balcânico, alto mas nada como esse refugiado clássico dos Balcãs… Sabe, há uma inteligência dos refugiados, primária. Em Bruxelas há muita gente a dormir na rua. E têm uma inteligência diferente da inteligência normal daquele que estuda e fala línguas, conhece a poesia de Fernando Pessoa, etc. É uma espécie de inteligência imediata.

Que se desenvolve na rua?

E que lhes permite safarem-se. E há os outros, como eu, que caem completamente na insignificância. Foi a literatura que me salvou. E algumas pessoas, que puxaram por mim e me ajudaram a reerguer. E pronto, agora as coisas vão melhor.

Pegou em armas?

Quando era soldado, infelizmente tinha uma Kalashnikov, que é muito fácil de usar. Costumo dizer que para aprender uma língua, matemática ou filosofia são precisos anos. Para aprender a disparar…

É de um momento para o outro.

Estive durante vários meses nas trincheiras, no norte da Bósnia, onde disparei muito. Não fazia sequer pontaria, só disparava. Era uma espécie de Soldado Schweik trapalhão. Do outro lado estava o antigo exército federal sérvio, que nos tentava esmagar. É o que vemos hoje na Ucrânia ou no Afeganistão: não há tática, é só terra queimada. Bombardeiam e avançam. Recusei usar a bandeira croata, cosi um emblema da banda The Clash. Considero-me fruto de um milagre. E há outra coisa na guerra que é impossível de esquecer, que foi terem morto o meu irmão. Pelo menos uma vez por ano, quando é o aniversário de quando o mataram, penso nele. Não tenho qualquer ódio, qualquer rancor, nada disso. Simplesmente é uma coisa que não poderei esquecer até ao meu último suspiro. Os sobreviventes não podem esquecer. Portanto trata-se de como gerir isso.

E como se lida com essas memórias?

Agradeço à literatura. Tentei a bebida, não resultou. Digo a brincar que a minha dor aprendeu a nadar no álcool…

Não foi o único escritor a refugiar-se na bebida. Temos Poe, Jack London, Hemingway, Kerouac, Carver… Sentia que o álcool lhe acrescentava alguma coisa? Beber inspirava-o?

Costumo dizer a brincar que os bêbedos vivem menos tempo, por isso é que veem tudo a dobrar. Há onze anos que a minha garganta está seca como o deserto do Sahara. Fui mais rápido do que os médicos: acabei com a bebida antes que a bebida acabasse comigo. Acho que isso é só mitologia – o escritor que é um bêbedo sagrado, um boémio ou coisa que o valha. Ao início, não estava seguro de mim, por isso bebia; durante a guerra tinha medo, por isso bebia; e no fim já estava perdido. O álcool era um estilo de vida, um protesto, uma rejeição do conformismo. Foi a minha fase sombria e punk. Posso dizer que não me trouxe nada. Ou melhor, trouxe-me problemas – com as pessoas, com as memórias e com o dinheiro.

Entretanto foi feito prisioneiro mas conseguiu escapar, não foi?

Sim, estive preso num estádio. Eu gosto de futebol, mas… É complicado explicar. Sou de origem croata e combati pelo exército bósnio, por isso prenderam-me. Como tinha sido locutor de rádio já era um bocadinho conhecido. Mesmo assim fui maltratado. Um dia houve uma grande tempestade, e consegui fugir – mais uma vez, não teve nada a ver com Bruce Willis a saltar muros. Os nossos guardas bebiam muito à noite e estavam demasiado bêbedos para se aperceberem do que se estava a passar. E escapei. Fui para Zagreb e depois para a Alemanha, até chegar a Rennes e Paris. Cheguei a acreditar que tinha sido o último europeu a estar na guerra, pelo menos durante alguns decénios. Enganei-me. A guerra na Ucrânia não parece estar perto de terminar, infelizmente. Tudo isso forma o pano de fundo do protagonista deste livro, um bom homem que leva o seu saco. Eu sou ateu, não sei rezar. Por isso agarrei-me à literatura. Foi ela que me salvou. Lembro-me de estar em Paris, na Place de Clichy – lá em baixo, conhece? –, com fome e com frio, mas pensei: ‘Não é grave, o Henry Miller também passou por isto’. A literatura foi um motor, um colete salva-vidas, uma espécie de airbag, e deu-me uma ideia graças à qual não perdi completamente a humanidade, apesar da guerra. Disparei com uma Kalashnikov – muito mal, diga-se, atirava sempre para cima, acho que só devo ter morto uns quantos ramos de acácia – mas foram precisos anos para me libertar disso. Pensava que só a caneta podia purificar a minha mão que disparou. Desde então escrevi, escrevi, escrevi, como se fosse uma espécie de ritual para lavar as mãos. Não há qualquer heroísmo, nada disso, era um jovem que só queria tocar guitarra-baixo.

A guerra, portanto, veio baralhar todos os planos.

Sim. A violência surpreendeu-me. Nós conseguimos imaginar tudo. Conseguimos imaginar o horror em Auschwitz, mas não conseguimos imaginar o horror à porta de nossa casa. É uma coisa impossível de aceitar. Havia guerra na Croácia e começou a aproximar-se, mas dizíamos sempre: ‘Não, não, não. Isto vai acalmar’. E no momento em que começam a bombardear já é demasiado tarde, é como uma avalanche espectacular de violência . Aí tive um duplo receio. Tinha medo de poder matar alguém e medo de ser um monstro. Não sabia se era ou não, acho que ia depender da circunstância. Os monstros, os grandes assassinos da nossa guerra, eram o ‘Sr. Normal’. Assisti ao julgamento de um soldado que se auto-apelidava ‘Adolf serbe’, um fulano que colecionava orelhas humanas. Vi-o atrás de um vidro, a pedir autorização para fumar, falava num tom monocórdico. Podíamos pensar que era uma espécie de alien estranho e assustador. Mas não, nada disso.

Para um escritor, os livros, a sua biblioteca, são uma ferramenta fundamental. Imagino que no início do exílio, depois de fugir da prisão e chegar a França, não tivesse muitos livros consigo.

Não, não tinha muitos livros. Ao princípio não sabia falar a língua. Lembro-me de um momento em que me senti muito orgulhoso. Foi o momento em que acabei de ler O Estrangeiro, de Camus, o meu romance preferido. ‘Uau, conseguiste ler o teu romance preferido na língua de origem!’. Como eu era um refugiado ‘invisível’ e tinha uma ambição não autorizada para um refugiado [ser escritor], toda a minha luta se situava ao nível da língua, a aprendizagem da língua e da literatura. Começo o meu outro livro com uma anedota._Quando cheguei a França sabia três palavras em francês: Jean-Paul Sartre. Sentia-me como um pequeno animal assustado, e queria voltar a assumir a verticalidade do homem. Tinha uma tripla ambição: sobreviver, ganhar a minha vida e escrever em francês. Quando dizia que queria publicar, provoquei muitas gargalhadas entre os meus amigos. Para um eslavo, aprender francês…

Deve ser difícil.

É um desafio. Se fosse hoje já não conseguiria. Mas a história deste refugiado é a procura da normalidade. Sou refugiado, não tenho nada, mas sou livre, posso amar, adoecer… E mais do que tornar-me um escritor célebre, queria ser uma pessoa comum [Monsieur tout le monde]. O que quer dizer ser visível para as mulheres e invisível para a polícia. [risos]

Vivemos numa sociedade do conforto, aqui na Europa, mas especialmente em França. Estive recentemente em Paris e apercebi-me de que é uma cidade maravilhosa para quem tem dinheiro e pode comprar todos aqueles bens de luxo e comer nos bons restaurantes. Mas extremamente dura para os desapossados.

Paris é implacável. É como uma enorme máquina trituradora. E é ainda mais cruel porque a vida ali pode ser realmente bela e maravilhosa. A frustração torna-se maior porque a todo o momento vemos coisas inacessíveis. Na Place Saint-Michel, onde fica a Sorbonne, há restaurantes por toda a parte. Quando tinha fome era terrível – depois habituei-me… Mas mesmo ali ao lado há famílias inteiras a viver na merda. Por isso digo que há a ‘Paris-luminosa’ e a ‘Paris-sombra’. Foram precisos anos para fazer as pazes com Paris. Não sei para onde vai o mundo, mas temos problemas sérios para resolver. Eu constato e observo, não tenho a solução. Há uma promessa da Europa, de uma bela vida, brilhante como as luzes de Natal, e a realidade, para muitos, é uma descida aos infernos, aterradora.

A sua experiência da rua, de privações, foi importante para si e para a sua escrita?

É evidente que isso nos molda. Eu também estudei Literatura durante quatro anos, mas não foi esse diploma que fez de mim o escritor que sou. Não podemos escapar a essas experiências que são formativas. Nasci num sítio da Europa onde a história esmagou as pessoas, e com que violência! Essa violência forjou-me. Mesmo assim tento às vezes passar a ideia de que a guerra, o exílio, a miséria, não são só inferno – também são o inferno, mas têm coisas engraçadas. Acho que o inferno não exclui o humor.

Como se deu com os franceses? Podem ser um pouco arrogantes, não?

A porta de entrada é a língua. Um adulto que fale mal tem a vida dificultada… Mas devo dizer que a minha história com os franceses é feliz. E continuo optimista, como podia não estar? Devíamos relativizar mais as coisas, porque ainda se vive bem na Europa. Quando cheguei a Bruxelas tive uma doença muito rara, dois casos num milhão. Uma doença autoimune da pele que se chama Pemphigus vulgaris e que interpretei como a guerra a querer sair de mim através da pele. Se eu estivesse em Sarajevo estaria morto, porque lá não têm o tratamento, e nos Estados Unidos custa 500 mil dólares. Como vê, estou curado e não paguei nada. Vi um artigo no Le Monde sobre uma atleta americana que comeu qualquer coisa em Paris, durante os Jogos Olímpicos, e ficou doente. Foi tratada no hospital, fez todos os exames. E perguntou : ‘Quanto é que devo ?’ Responderam-lhe : ‘Nada’. Ela escreveu sobre isso em todos os Twitters possíveis. Na Europa ocidental tens a saúde gratuita, podes-te vestir como quiseres, casar com quem quiseres. Por isso sou um europeísta convicto.

O seu primeiro livro intitulava-se La Vie fantasmagoriquement brève et étrange d’Amadeo [A Vida fantasmagoricamente breve e estranha de Amadeo]. Trata-se de uma biografia, de um ensaio, de um romance?

Trata-se de uma prosa poética, ritmada e com imagens, sobre a proximidade do amor e da morte. Uma ‘falsa’ biografia, ligeiramente barroca e jazzy deste pintor, Amedeo Modigliani. Uma homenagem a este ‘strange stranger’, errante e assombrado. O_subtítulo do livro diz:_novela-mosaico. Uma composição de pequenas pedras coloridas que no final, espero eu, formam uma imagem. Não tinha qualquer ambição documental, tudo isso encontra-se na internet em poucos segundos.

N’O Livro das despedidas faz um retrato muito crítico, satírico, dos artistas e poetas. Este meio dos escritores pode ser às vezes um pouco ridículo e divertido, na sua opinião?

Em princípio, a vida de romancista é entediante. Os poetas é outra questão. Penso que há tanta gente desinteressante entre os escritores como entre os camionistas, por exemplo. Com a diferença de que os camionistas de pesados têm mais que fazer do que escrever grandes calhamaços sobre esse assunto. Como leitor, tenho problemas sérios com a literatura dita ‘séria’. Claro que isso não quer dizer nada, não nos cabe a nós, escritores, decidir se os nossos livros são sérios ou não. Para isso existe um supremo tribunal dos leitores. Não é preciso ser triste para ser sério. O mundo seria um lugar melhor, conluiu o sábio Jerzy Lec, se lêssemos mais Groucho e menos Karl Marx.