Poderá haver males que venham por bem?  Breve anotação a alguns episódios que tanto agitaram recentemente o mundo político-mediático 


O problema das nossas cadeias não diz apenas e principalmente respeito às condições de segurança e eficácia na prevenção de fugas. 


1. Como se fosse novidade, três ou quatro factos ocorridos recentemente trouxeram para a ribalta alguns problemas velhos, de que, nos últimos anos, verdadeiramente, ninguém quis tratar com seriedade.

Deixemos, por ora, de lado a questão da segurança dos edifícios públicos que o assalto ao Ministério da Administração Interna caricaturou de forma exemplar.

Deixemos de lado, igualmente, a audição da Procuradora-Geral da República na Assembleia da República.

Ela defraudou – pelo menos tanto quanto o debate entre Trump e Kamala Harris – os cultores de mexericos e blagues, cujas notas críticas, dada a falta de preparação geral para abordar os vários temas focados, quase se restringiram, por isso, a alguns ditos politicamente incorretos, precisamente por serem verdadeiros.

Refiro-me, claro, à alusão às naturais consequências da feminização do MP: na falta de mais enredos, a enunciação da sua evidência e os efeitos que, naturalmente, ela comporta serviram às mil maravilhas para que os nossos zeladores do pensamento woke desvalorizassem essa realidade e punissem quem a invocou.

E, no entanto, muito havia a destacar e, com espírito crítico, a comentar sobre o que foi dito em tal sessão.

Dissesse, porém, a PGR o que dissesse, percebeu-se logo, que tinha a sentença condenatória ditada. 

Deixemos, ainda, de lado, por instantes, a importância concreta da fuga da cadeia de Vale de Judeus, mesmo que ela mostre, por si só, da forma mais eloquente, o que se passa com a atenção dada, ao longo dos anos, pelos diferentes governos, à missão e às condições de funcionamento dos estabelecimentos prisionais. 

Tal facto – o número de fugas verificado – nem sequer é, de resto, o problema principal do sistema prisional português. 

O problema principal – mesmo antes de se abordar a filosofia de ressocialização que a ele preside, ou devia presidir – situa-se ao nível da preservação das mais elementares condições físicas dos estabelecimentos prisionais e ao das repercussões que elas podem ter na saúde de presos e guardas, enfim, nos seus direitos humanos e de cidadania.

2. Por várias vezes, enquanto Membro Nacional de Portugal na Eurojust, alertei os deputados da Comissão de Direitos, Liberdade e Garantias da Assembleia da República, os Ministros da Justiça e a Procuradoria-Geral da República para o facto de alguns países europeus, nossos parceiros na União Europeia, se recusarem a cumprir – para nossa vergonha – os mandados de detenção europeus dimanados das nossas autoridades judiciárias e judiciais.

Consideravam as autoridades desses países – invocando um Relatório da Provedoria de Justiça portuguesa – que alguns dos nossos estabelecimentos prisionais não preenchiam as condições mínimas de habitabilidade e higiene capazes de assegurar o respeito pelos direitos humanos dos presos.

Alertei para esse facto nas audições realizadas perante aquela Comissão Parlamentar, quando ali, repetidas vezes, apresentei os Relatórios anuais do Gabinete Nacional da Eurojust, de forma pública e com visionamento televisivo no canal da Assembleia. 

Fi-lo, de modo mais recatado, mas também mais desenvolvido, nas audiências, para o mesmo efeito, concedidas, previamente, pelos Ministros da Justiça e pela PGR. 

3. O problema das nossas cadeias, como, em geral, o do nosso sistema penal, não diz, assim, apenas, ou especialmente, respeito às condições de segurança e eficácia na prevenção de fugas das cadeias.

Antes fosse essa a questão, pois seria de mais fácil resolução.

Nesta matéria, o nosso principal problema foi, preguiçosamente, termos deixado todos de refletir sobre os fins das penas e a forma de as adequar ao mundo atual e, designadamente, no papel que o sistema prisional e as condições dos estabelecimentos existentes podem e devem ser chamados a cumprir. 

Um sistema prisional degradado, só pode degradar ainda mais quem nele está detido e quem nele trabalha.

Portugal tem códigos e leis penais de natureza substantiva onde se estabelecem, de forma abstrata, penas de prisão e outras punições que, em comparação com as de outros países europeus, não são nem mais, nem menos severas. 

E, todavia, como recentemente foi revelado, é um dos países europeus em que as penas de prisão impostas pelos tribunais são mais pesadas e longas tendo em atenção o mesmo tipo de crimes.

Isso, sim, devia motivar uma reflexão séria, tanto mais que, por outro lado, se diz ser o nosso país um dos mais seguros da Europa.

Haverá alguma relação de causa e efeito nestes dois fenómenos; e, se sim, em que sentido? 

4. Pude visitar alguns estabelecimentos prisionais no Brasil, no Perú e nos EUA, cujas condições eram, se possível e para mais não dizer, bastante mais indecentes do que as que existem entre nós. 

Mas isso não nos pode alegrar, até porque, no que respeita a uma visão humanista do Direito Penal, o nosso país manteve sempre alguma dianteira.

Portugal foi um dos países que, na Europa e no mundo, mais cedo aboliu a pena de morte, mas também a de prisão perpétua, e um dos que primeiro criou um sistema para abordar os crimes cometidos por menores que se afastava dos pressupostos da punição aplicada aos adultos.

5. A maneira superficial e brejeira, mesmo, como o assunto da fuga foi abordado por alguns comentadores e a importância inaudita que quiseram dar ao facto de a Ministra da Justiça não se ter pronunciado sobre ela, com uma reivindicada, mas insensata velocidade, revela bem o baixíssimo nível que a discussão político-mediática atingiu entre nós e o poder de pressão que muitos media estão habituados a ter sobre os responsáveis do governo e os seus timings políticos.

Muitos media julgam-se, com efeito, aptos e incumbidos de marcar o ritmo e a oportunidade da ação política. Isso, porém, só tem trazido problemas e decisões precipitadas que, contudo, lhes enchem, depois, oportunamente, as manchetes. 

E, todavia, esta matéria é uma daquelas em que a grande maioria dos deputados de direita e os de toda a esquerda poderiam convergir, pois algumas das noções base de respeito pela vida humana são, geralmente, assumidas como dados culturais adquiridos e mesmo identificadores da identidade da nossa sociedade. 

Nesta matéria, não haverá por certo, também, grandes divergências entre ateus e crentes, e entre liberais, conservadores e progressistas. 

Por isso, tão ou mais importante do que discutir preferencialmente os problemas técnicos e organizativos – esperemos que sejam só esses – que terão facilitado e permitido a fuga dos presos de Vale do Judeus, seria aproveitar este incidente para promover uma reflexão geral sobre os princípios que devem orientar para o futuro o nosso Direito e Justiça Penal.

Talvez assim, se conseguisse recentrar o debate sobre a Justiça em bases sérias e capazes de lhe conferir utilidade cívica e política. 

Uma reflexão fundada, prioritariamente, em bases político-filosóficas consistentes, isolando, assim, os que querem situar infindavelmente a questão da Justiça Penal no plano das declarações histéricas, das bravatas profissionais, das razões e ressentimentos pessoais e das competições corporativas; em suma, no seio dos postulados próprios dos populistas.

Se a discussão sobre prisões e penas fosse outra, criar-se-iam, porventura, as bases para uma maior exigência e responsabilidade profissionais e, assim, também, para uma maior aceitação social da legitimidade politico-constitucional da atuação da Justiça.

E esta e os que diretamente a servem e os que com ela cooperam – refiro-me, aqui, também, aos advogados – só tinham a ganhar com tal aceitação, pois, hoje, a imagem projetada da Justiça e a dos que nela e com ela trabalham não é das que mais brilha e nos contenta a todos.     

Poderá haver males que venham por bem?  Breve anotação a alguns episódios que tanto agitaram recentemente o mundo político-mediático 


O problema das nossas cadeias não diz apenas e principalmente respeito às condições de segurança e eficácia na prevenção de fugas. 


1. Como se fosse novidade, três ou quatro factos ocorridos recentemente trouxeram para a ribalta alguns problemas velhos, de que, nos últimos anos, verdadeiramente, ninguém quis tratar com seriedade.

Deixemos, por ora, de lado a questão da segurança dos edifícios públicos que o assalto ao Ministério da Administração Interna caricaturou de forma exemplar.

Deixemos de lado, igualmente, a audição da Procuradora-Geral da República na Assembleia da República.

Ela defraudou – pelo menos tanto quanto o debate entre Trump e Kamala Harris – os cultores de mexericos e blagues, cujas notas críticas, dada a falta de preparação geral para abordar os vários temas focados, quase se restringiram, por isso, a alguns ditos politicamente incorretos, precisamente por serem verdadeiros.

Refiro-me, claro, à alusão às naturais consequências da feminização do MP: na falta de mais enredos, a enunciação da sua evidência e os efeitos que, naturalmente, ela comporta serviram às mil maravilhas para que os nossos zeladores do pensamento woke desvalorizassem essa realidade e punissem quem a invocou.

E, no entanto, muito havia a destacar e, com espírito crítico, a comentar sobre o que foi dito em tal sessão.

Dissesse, porém, a PGR o que dissesse, percebeu-se logo, que tinha a sentença condenatória ditada. 

Deixemos, ainda, de lado, por instantes, a importância concreta da fuga da cadeia de Vale de Judeus, mesmo que ela mostre, por si só, da forma mais eloquente, o que se passa com a atenção dada, ao longo dos anos, pelos diferentes governos, à missão e às condições de funcionamento dos estabelecimentos prisionais. 

Tal facto – o número de fugas verificado – nem sequer é, de resto, o problema principal do sistema prisional português. 

O problema principal – mesmo antes de se abordar a filosofia de ressocialização que a ele preside, ou devia presidir – situa-se ao nível da preservação das mais elementares condições físicas dos estabelecimentos prisionais e ao das repercussões que elas podem ter na saúde de presos e guardas, enfim, nos seus direitos humanos e de cidadania.

2. Por várias vezes, enquanto Membro Nacional de Portugal na Eurojust, alertei os deputados da Comissão de Direitos, Liberdade e Garantias da Assembleia da República, os Ministros da Justiça e a Procuradoria-Geral da República para o facto de alguns países europeus, nossos parceiros na União Europeia, se recusarem a cumprir – para nossa vergonha – os mandados de detenção europeus dimanados das nossas autoridades judiciárias e judiciais.

Consideravam as autoridades desses países – invocando um Relatório da Provedoria de Justiça portuguesa – que alguns dos nossos estabelecimentos prisionais não preenchiam as condições mínimas de habitabilidade e higiene capazes de assegurar o respeito pelos direitos humanos dos presos.

Alertei para esse facto nas audições realizadas perante aquela Comissão Parlamentar, quando ali, repetidas vezes, apresentei os Relatórios anuais do Gabinete Nacional da Eurojust, de forma pública e com visionamento televisivo no canal da Assembleia. 

Fi-lo, de modo mais recatado, mas também mais desenvolvido, nas audiências, para o mesmo efeito, concedidas, previamente, pelos Ministros da Justiça e pela PGR. 

3. O problema das nossas cadeias, como, em geral, o do nosso sistema penal, não diz, assim, apenas, ou especialmente, respeito às condições de segurança e eficácia na prevenção de fugas das cadeias.

Antes fosse essa a questão, pois seria de mais fácil resolução.

Nesta matéria, o nosso principal problema foi, preguiçosamente, termos deixado todos de refletir sobre os fins das penas e a forma de as adequar ao mundo atual e, designadamente, no papel que o sistema prisional e as condições dos estabelecimentos existentes podem e devem ser chamados a cumprir. 

Um sistema prisional degradado, só pode degradar ainda mais quem nele está detido e quem nele trabalha.

Portugal tem códigos e leis penais de natureza substantiva onde se estabelecem, de forma abstrata, penas de prisão e outras punições que, em comparação com as de outros países europeus, não são nem mais, nem menos severas. 

E, todavia, como recentemente foi revelado, é um dos países europeus em que as penas de prisão impostas pelos tribunais são mais pesadas e longas tendo em atenção o mesmo tipo de crimes.

Isso, sim, devia motivar uma reflexão séria, tanto mais que, por outro lado, se diz ser o nosso país um dos mais seguros da Europa.

Haverá alguma relação de causa e efeito nestes dois fenómenos; e, se sim, em que sentido? 

4. Pude visitar alguns estabelecimentos prisionais no Brasil, no Perú e nos EUA, cujas condições eram, se possível e para mais não dizer, bastante mais indecentes do que as que existem entre nós. 

Mas isso não nos pode alegrar, até porque, no que respeita a uma visão humanista do Direito Penal, o nosso país manteve sempre alguma dianteira.

Portugal foi um dos países que, na Europa e no mundo, mais cedo aboliu a pena de morte, mas também a de prisão perpétua, e um dos que primeiro criou um sistema para abordar os crimes cometidos por menores que se afastava dos pressupostos da punição aplicada aos adultos.

5. A maneira superficial e brejeira, mesmo, como o assunto da fuga foi abordado por alguns comentadores e a importância inaudita que quiseram dar ao facto de a Ministra da Justiça não se ter pronunciado sobre ela, com uma reivindicada, mas insensata velocidade, revela bem o baixíssimo nível que a discussão político-mediática atingiu entre nós e o poder de pressão que muitos media estão habituados a ter sobre os responsáveis do governo e os seus timings políticos.

Muitos media julgam-se, com efeito, aptos e incumbidos de marcar o ritmo e a oportunidade da ação política. Isso, porém, só tem trazido problemas e decisões precipitadas que, contudo, lhes enchem, depois, oportunamente, as manchetes. 

E, todavia, esta matéria é uma daquelas em que a grande maioria dos deputados de direita e os de toda a esquerda poderiam convergir, pois algumas das noções base de respeito pela vida humana são, geralmente, assumidas como dados culturais adquiridos e mesmo identificadores da identidade da nossa sociedade. 

Nesta matéria, não haverá por certo, também, grandes divergências entre ateus e crentes, e entre liberais, conservadores e progressistas. 

Por isso, tão ou mais importante do que discutir preferencialmente os problemas técnicos e organizativos – esperemos que sejam só esses – que terão facilitado e permitido a fuga dos presos de Vale do Judeus, seria aproveitar este incidente para promover uma reflexão geral sobre os princípios que devem orientar para o futuro o nosso Direito e Justiça Penal.

Talvez assim, se conseguisse recentrar o debate sobre a Justiça em bases sérias e capazes de lhe conferir utilidade cívica e política. 

Uma reflexão fundada, prioritariamente, em bases político-filosóficas consistentes, isolando, assim, os que querem situar infindavelmente a questão da Justiça Penal no plano das declarações histéricas, das bravatas profissionais, das razões e ressentimentos pessoais e das competições corporativas; em suma, no seio dos postulados próprios dos populistas.

Se a discussão sobre prisões e penas fosse outra, criar-se-iam, porventura, as bases para uma maior exigência e responsabilidade profissionais e, assim, também, para uma maior aceitação social da legitimidade politico-constitucional da atuação da Justiça.

E esta e os que diretamente a servem e os que com ela cooperam – refiro-me, aqui, também, aos advogados – só tinham a ganhar com tal aceitação, pois, hoje, a imagem projetada da Justiça e a dos que nela e com ela trabalham não é das que mais brilha e nos contenta a todos.