Jim Harrison. Devolver os sonhos à terra

Jim Harrison. Devolver os sonhos à terra


Jim Harrison fez sua a frase de Rimbaud “tudo o que nos ensinaram é falso”, com um olho aberto para o dia e outro para a noite, atravessou prados e bosques à procura de algo vivo entre os fantasmas que acompanham os homens.


Jim Harrison foi daqueles monstros que nenhuma armadilha apanhou. Gostava de arvoredos cerrados onde deixassem de o ver, apesar da guerra contra tudo e todos deixar as árvores cada vez mais distantes umas das outras. Gostava dos cães como irmãos que o acompanhavam e guiavam na sua errância. Animava-se quando se colocava no encalço dos ursos e dos lobos. Estivesse em Michigan, Montana ou Arizona, procurava abandonar-se para que dez mil coisas se tornassem unas com ele. Cheio de contradições como tudo o que pulsa de vida, acreditava que somos pobres em obras-primas por falta de apetite. Colhia o que o aumentava dos lugares por onde passava. Era um ser verdadeiramente proteico. Procurava a integralidade da experiência que lhe cabia, ao contrário do burguês que não abdica das suas ilusões e se diminui a si e ao que o rodeia. Jim esquivava-se constantemente aos círculos que traçavam para o apanhar, demasiado anémicos, deixavam sempre coisas de fora, fixavam-no numa essência, enquanto ele se ampliava junto ao múltiplo. Atravessou o movimento Beat, mas nunca chegou a fazer parte de nenhuma “cena”, como dizia sarcasticamente. Como Ahab, fora escolhido por um ser das profundezas, um ser que lhe tingia o tempo e a mortalidade, fazendo-o ganhar dimensões e ressonâncias inesperadas. A leitura contribuiu de uma forma substancial para o seu espírito voraz. Desde os 14 que começou a percorrer o mundo da poesia, Whitman e Rimbaud foram as primeiras obsessões, mas decorou muitos outros. Quando lhe perguntavam sobre o retiro na floresta citava Char: “Tens de lá estar quando o pão sai do forno.” Deu apenas um ano à vida académica e voltou para junto da “força que através do verde pavio conduz a flor” (Dylan Thomas). Harrison viveu e escreveu nos seus próprios termos, sem se intimidar com os guardiões cujas credenciais questionava com todo o gosto, escreveu Thomas McGuane. Numa palestra que deu em Seattle, falou de uma espécie de esquizofrenia no movimento ambientalista e na escrita sobre a natureza. “Considerar a natureza, seja de que modo for, como uma entidade separada que se olha como sujeito: o objeto é um problema porque não há nenhuma separação. Mesmo Shakespeare disse que também somos natureza. É na cisão que os ambientalistas têm os seus egos, os seus dramas pessoais, as suas auto-congratulações, problemas que não vejo nos nativos que conheço muito bem.” Há uma dimensão de quietude a ser absorvida para conhecer a alteridade das criaturas. “Temos de pensar na realidade em termos de um agregado das percepções de todas as criaturas. Tu olhas para o urso, mas o urso está a olhar para ti, e é melhor considerares o urso a olhar para ti.” Se não se partir desta posição de alteridade, as decisões em relação ao que chamamos “ambiente” são quase sempre ludibriadas por uma posição de poder. Jim Harrison não parecia ter muitas dúvidas que os Jovens estão a ganhar consciência da situação, e que os que não esperam por uma decisão legal para intervir estão no lado certo, a violência é por vezes a única forma de resposta. “É um mundo maquiavélico e não faz sentido entrar lá como Gandhi.”

Jim Harrison deixou uma obra vasta e teve o reconhecimento do grande escritor que foi. Começou pela poesia, e abandonou este mundo a escrever um poema. Em Portugal devemos às Edições Cutelo uma recolha dos seus poemas intitulada “Que os teus cães mortos não te encontrem no paraíso”, uma antologia cuidada que nos dá uma boa noção da intensidade dos seus versos. Harrison atravessou quase todas as formas literárias, do romance ao conto, passando pela crónica e pelo ensaio. Mas, apesar do vigor da sua prosa e da qualidade inegável dos seus romances é na poesia que deixa uma herança maior para os que se aventurarem na sua leitura. “Talvez a poesia ajude a criar a liberdade que tem que estar aí antes que a liberdade aconteça.” A sua poesia, através de uma linguagem que percorre densidades ocultas num mundo que acreditamos vazio, repleta de visões e epifanias, de travessias oníricas num estado desperto, devolve-nos uma Terra complexa, onde os mortos e os vivos estão lado a lado, onde o invisível e o visível se incluem mutuamente, onde cada ser vivo é um enigma que pede para ser decifrado. A tarefa que delegava aos poetas não era de pouca monta, dependia deles reavivar os Deuses, ou como disse noutro lugar, numa fasquia não menos elevada, “a poesia, no seu melhor, é a linguagem que a tua alma falaria se a conseguisses ensinar a falar.” O seu chamamento para a poesia tratava-se de uma fidelidade primeira para com a vida, um voto ao qual teria de entregar a vida como um todo.

Uma série de acidentes foram cadenciando as suas descobertas, conduzindo-o para o caminho que lhe era próprio. “Uma vizinha lançou-me uma garrafa partida à cara durante uma zaragata. Depois disso, retirei-me para o mundo natural e acho que nunca mais voltei.” Este acidente quando tinha apenas sete anos fez com que perdesse a visão do olho esquerdo. Mais tarde, a morte do pai e da irmã num acidente de automóvel, levaram-no a perceber que nada permanece, que a estabilidade apregoada pelo mundo burguês é um logro, um artifício para continuar a expandir um mundo falso sobre um mundo vivo. “A vida é um grande fogo doméstico de impermanência”, não faria concessões com uma vida parcial e atrofiada, iria fazer o que queria, dedicar-se à escrita, ao estudo do Universo onde a vida aparece ampla e cheia de potências por descobrir. Foi uma queda de um penhasco, enquanto caçava pássaros, que levou um amigo a sugerir-lhe a escrita de um romance para aguentar a convalescença, antes disso apenas a poesia lhe interessava.

Estas incisões verticais conduziram-no a um renascer que a vida nos bosques expunha como uma singularidade cósmica. A necessidade de renascer ia tornar-se uma aprendizagem radical através da vivência do Zen. Considerava o Zen uma das maiores dádivas de um amigo próximo. Com as suas fórmulas abruptas de corte com a personalidade, possibilitou-o, através de uma prática diária, a saída de um estado sitiado e ganhar o passo lento de uma relação simbiótica com o exterior. A mudança tem de ser merecida num arriscar-se diariamente, é preciso perder-se para encontrar qualquer coisa. Os que vão para a Natureza com vontade de uma realização pessoal, esquecem-se de que é o mesmo ímpeto de destruição, de uma vontade cega em relação ao que a rodeia, que trazem para a sua vitória. Jim não suportava os grupos New Age que apareciam subitamente na reserva e pensavam conseguir um conhecimento sem fazer qualquer sacrifício.

O monstro teima em escapar-se às armadilhas. Pelo menos àquelas que uma sociedade desvitalizada lhe lança. Pratica zen e escreve sobre transfigurações próximas do evangelho, ama a vida nos bosques, inebria-se com a vida animal, mas caça e pesca, acolhe a alegria de matar como parte integrante da vida, come, bebe, fuma e faz caminhadas intermináveis. Apaixonado por mulheres, procura o seu lado feminino quando escreve, a duplicidade perdida, mas também se delicia a ver danças em volta de um varão, sonha por vezes com coxas gigantescas, diz numa entrevista. Parece não se recusar a nenhum prazer, mas não é verdade, é o desejo o que escuta em permanência. Harrison, como um animal selvagem, passou uma vida inteira a perseguir os prazeres e as dores do mundo, afirmando vezes sem conta que toda a carne é uma só. Este ciclope, demasiado complexo para uma moralidade debilitada e rancorosa, move-se nas múltiplas dimensões do desejo, salta de um mundo para o outro com uma agilidade que nos assusta. “Matei-me porque fiquei permanentemente aleijado, / virado do avesso, os arranjos comiam-me tempo e dinheiro./ Durante cinquenta e sete anos, percebi tudo mal/ até estudar o outro lado do espelho./ Não nascer antes de morrer. Mas ao contrário./ Que prazer apear do cavalo dentro de um lago.”

Na introdução da sua autobiografia fala-nos de um humor monstruoso que desponta nos miúdos por volta dos dez anos quando leem nas entrelinhas o discurso abstracto e moralizante que lhes impingem. São poucos os que mantêm a capacidade de leitura e não se deixam aparelhar por um discurso de pendor utilitário. Ler nas entrelinhas é ser inteligente, uma inteligência autêntica, que não acumula dados, mas se move no vivo da língua. Uma inteligência que através de uma relação simbólica com o mundo se encaminha para uma palavra que lhe estava destinada. Os miúdos vivem no terrestre, que é o lugar do assombro, sem terem caído ainda na armadilha dos dois diabos que fecham os homens numa circularidade infecunda, seja num materialismo feito de uma exterioridade sem redenção possível, seja num éter sem oxigênio onde as religiões instituídas reinam. Ambos nos desviam da complexidade da terra, onde os espíritos coexistem de um modo incompreensível para nós. Por isso todos os miúdos têm a possibilidade de um pensamento criativo que alarga o campo das convenções onde vivemos. O riso selvagem que desponta nesta idade, que Jim traçou como um impulso fundamental, é a primeira resposta saudável de um ser intrépido face à intimidação. Um salto qualitativo face a um movimento que os minimiza. Nas mais antigas culturas, onde o capital simbólico era mais exuberante, os homens eram levados a processos de expansão. Na verdade, não nasciam homens, tinham de o devir. Hoje só nos exigem aquiescência e submissão. Quem se limitar a ler o que lhe dão, sem criar uma prática de derivas onde aprende a ler o que não foi escrito, ou o que parece estar numa língua que desconhece, pode atravessar o pântano sem desconfiar que vive.

Jim descobria a maioria das vezes as imagens ou os sons de um romance, de um poema por vir, saindo da sua rotina, dando uns passos para ao lado da sua vida, arrancava de carro em direcção a lado nenhum e passava uns dias num sítio que desconhecia. Perder-se obrigava-o a uma relação criativa com o que o rodeava, a ler, a tirar sentidos do que lhe aparecia, tinha inevitavelmente de fazer atenção ao singular, de procurar indícios, para encontrar caminho. Benjamin diz-nos que a percepção é leitura, que só o que aparece à superfície é legível. Mas, a maioria das vezes, lemos apenas o suficiente para não nos magoarmos quanto passamos junto aos móveis. O espírito é preguiçoso, é-lhe mais comum não querer saber do que o contrário. Daí precisarmos de monstros, que por se escaparem às normas do social, o aclaram, nos advertem dos seus perigos e nos indicam o que deixamos de lado. Advertir, aclarar e indicar é o que nos diz a sua raiz latina “monere” de onde se gerou o que hoje chamamos monstro. O poeta, na dimensão em que Jim Harrison o entende, é um monstro, aquele que aponta e dá a ver, aquele que forma e faz com que algo que ainda não é passe a ser.