Para aqueles que partiram ansiando por algo mais que uns dias de descanso, pela possibilidade de integrar a tal expedição que enfim iria capturar de vez o horizonte, arrastá-lo para terra e possivelmente contemplar uma hipótese de fazer uma fortuna fazendo-o chegar, primeiro às lojas de iguarias e especialidade gourmet, e depois de os entendidos todos terem provado e garantido que é mesmo uma revelação, então poderá chegar numa versão enlatada e cheia de conservantes às prateleiras dos supermercados. Para esses o regresso a casa, por estes dias, tende a ser um tanto doloroso, não apenas pelo retomar da rotina, mas pela forma como a vergonha toma conta de nós, face às ilusões com que partimos, e parece que encontramos o mesmo buraco de sempre, coçando-se. Mas talvez uma subtil alteração do ângulo seja o suficiente para nos reembolsar de algumas das despesas que vamos fazendo em nome das ilusões do costume.
A melhor viagem é um desastre completo. Uma revulsão nas expectativas, de tal modo que aquele que parte chega a sentir que deixou de existir, de ser propriamente um sujeito. Isto irrita tanto alguns que assumem sem o menor pejo o quanto abominam viajar. É o caso de Nelson Rodrigues, que considerava «a viagem a mais empobrecedora, a mais burra das experiências humanas». Para ele, o bairro suburbano do Méier, no Rio de Janeiro, já era exterior: «Nunca viajo, pois a partir do Méier sinto saudades do Brasil». Mas é esta ausência de si, esta disponibilidade que vai para lá do enredo conformado do quotidiano o que encanta a outros, que buscam esse vazio quase perfeito, essa ausência íntima, que se parece com um estado de inebriamento em que o exterior devasta o de dentro. Alguns reconhecem como ser ninguém é ser qualquer um, «é poder não se sentar com o peso da identidade em cima de nenhum nome», como reconhece Golgona Anghel num dos seus ensaios críticos. «É manter-se fluido, reconstruível.» A poeta fala numa discordância fundamental, desde logo consigo próprio, o que significa a mais destemperada fuga para a frente: «anónima e, por isso mesmo, infinita». A partir de versos de outros poetas, ela assinala a possibilidade desse testemunho capaz de «traçar por extenso» o sentido da errância, de uma travessia que não leva a lado nenhum. «Só quem preserva a sua insignificância, os seus diplomas de banalidade, pode manter o privilégio de não viver sentado». Valéry definiu a poesia como viagem ao desconhecido, ou pelo desconhecido, de modo a romper com esse destino constante, que, pela ausência de intriga, na verdade acaba por significar uma falta de destino. Mas nos nossos dias se parece haver um efeito de antídoto para o veneno da existência de acordo com os ritmos de uma vida funcionária será esse desejo de sabotar a tentação de ser alguém. Se muitos por estes dias arrastam malas nos aeroportos, deixam as auto-estradas à pinha, e depois nos fica a sensação de que fazem tudo isso para servir aos outros e a si mesmos essa absurda impostura, esses paraísos artificiais que ficam depois pingando, como um balão de soro, ao longo de semanas ou meses nas redes sociais, a lição poética estaria antes do lado desses que são capazes de sabotar a tentação de ser alguém, preferindo arrancar caminhos ao azar. Um dos autores inevitáveis a este respeito, e que Anghel cita, é Nietzsche, que em Ecce Homo, cravou esta máxima: «Estar sentado o menos possível; não confiar em nenhum pensamento que não tenha nascido ao ar livre e em plena liberdade de movimentos.»
A arte de corroer o que levamos connosco
Se calhar nunca como nos nossos dias fez sentido tentar avaliar uma viagem menos pelo destino do que pela sua sinceridade. Se alguns entendem que viajar é naufragar-se a si, por uma temporada não ter nem dar notícias àquele enredo algo obtuso para o qual pagamos o alto preço de viver as nossas vidas de forma coerente, a viagem sincera, esse apuro que garante o foco, obriga a certos estratagemas, segundo Paul Theroux, como ser humilde, paciente, solitário, anónimo e atento. Também ele nos conta como Thoreau viajava para «pôr carne nos ossos da jornada com saber e perspicácia». Nas artes da viagem pouco importa a exuberância das paisagens, pois não se trata de ir apenas colher impressões ou imagens exóticas, mas de algum modo dar cabo da percepção ritual, desse estupor próprio da existência rotineira. Um viajante ao contrário do que se pensa, em vez de vir cheio de estórias, lendas de bolso, episódios, lérias, deveria vir com a linguagem truncada, com o espírito oscilante, fora dos gonzos, ainda a tentar digerir certos espantos, mesmo que não tenha ido tão longe assim, exibiria a incapacidade de retomar a vida de antes tal e qual, tocado pelo desvario de outras coordenadas, sentindo o juízo fecundado por sóis diferentes, ventos diversos. Por isso nos habituámos à ideia do viajante como esse ser quase compulsivo, que em vez de andar aí a maçar-nos com os souvenirs mais ou menos sobressaltados de expedições artificiais, tem uma presença um tanto desfocada, uma vaga ameaça de que a qualquer momento, e sem grande aviso, poderá partir. Há seres que por alguma razão parecem ceder ao intoxicante apelo da vastidão. Respondem ao lado entorpecente da vida moderna com esse desassossego que se exprime por extenso, e que tem menos a ver com encontrar um sentido do que escapar à coacção dos significados profundos. A sua afeição orienta-se no sentido das relações instáveis, e estão menos ao serviço de um programa ou convicção, de uma fé de qualquer espécie, do que desse gozo de ver os planos da realidade cederem uns face aos outros. André Gide assumia que muitas vezes viajava apenas para fugir ao peso dos seus bens. Há também um ímpeto de se furtar às ideias feitas, aos lugares comuns, a viagem que parece ter como propósito menos um desejo de se descobrir do que de corroer o que levamos connosco para toda a parte. Entre as extirpes de grandes viajantes, há-os impulsivamente intrépidos, seres que com os seus movimentos parecem empenhados em trespassar o mundo, fruir menos de uma nova verdade do que do gozo de uma desinstrução. «Enquanto outros publicam ou trabalham, eu passei três anos de viagem a esquecer, pelo contrário, tudo o que tinha aprendido de cabeça. Essa desinstrução foi lenta e difícil; foi-me mais útil do que todas as instruções impostas pelos homens e foi, verdadeiramente, o começo de uma educação», adianta Gide. De resto, e nuns versos de Eugenio Montale, fica claro que a viagem acaba «nos mesquinhos cuidados que dividem/ a alma que não sabe já dar um grito». Mas se recaímos tantas vezes na ideia de que a viagem só resulta a partir do momento em que começamos a sentir pela rotina esse desprezo que nos merecem todas as formas de extorsão, isto também nos diz como a viagem acaba por ser o reverso de uma desgastante ilusão. «Convenhamos que a questão está esclarecida há muito tempo: a viagem não passa de um fingimento, de uma fanfarronada filosófica», diz-nos o escritor francês Olivier Rolin, também ele um grande viajante. «E contudo, por uma outra razão ainda, a viagem parece-me ter qualquer coisa ligada à literatura, cuja morte é a rotina linguística, o estereótipo, a frase sonâmbula que é a força do hábito. O primeiro dever do escritor, antes de ‘contar histórias’ ou de ‘fazer sonhar’, como está de novo na moda, continua a ser o de dar um sentido mais puro às palavras da tribo. Ou então (no fim de contas, quer dizer a mesma coisa, e a formulação presta-se a menos dúvidas): enfiar o barrete frígio ao velho dicionário.» Ou seja, o mais importante é levar a indisciplina a todos esses compendiosos enredos que procuram transmitir a impressão de que a vida pode ser de algum modo contida e catalogada, retida e traficada por meio de fórmulas, quando mesmo as palavras são apenas signos transitivos e que se dissolvem demasiado depressa na ausência dos objectos ou realidade mais ou menos concretas a que se referem.
Como assinala Kavafis, da imaginação até ao papel é uma difícil passagem, é um perigoso mar… «A distância parece curta à primeira vista, e embora seja assim quão longa viagem é, e quão prejudicial por vezes para os navios que a empreendem.
O primeiro prejuízo provém da natureza assaz frágil das mercadorias que os navios transportam. Nos mercados da Imaginação a maior parte das coisas e as melhores são fabricadas de vidros finos e de cerâmicas transparentes, e com todo o cuidado do mundo muitas se partem no caminho, e muitas se partem quando as desembarcam para terra. […] Um outro prejuízo provém da capacidade dos navios. Partem dos portos dos continentes prósperos sobrecarregados, e depois quando se encontrarem no alto mar vêem-se obrigados a deitar fora parte da carga para salvar o todo.»
Viagem ao frigorífico
Estamos a fazer este percurso num balanço entre leituras e experiências, mas a bússola que nos é mais fiel é a da ironia, essa que nos pode conduzir mais depressa aos aspectos irrisórios da existência, pois a lição de tantas viagens acaba por se reservar num silêncio indevassável, até nessa compreensão de que não se regressa de uma grande viagem para resumir numas quantas frases uma moral qualquer. Essa compreensão é em si mesma aquilo que há que derrotar. E não faltam exemplos daqueles que muito viajaram apenas para regressar aos detalhes, aprender a arte da deambulação que não exige grandes extensões de território, que sabe obter variações espantosas sentindo com a imaginação, detendo-se sobre esses enigmas que se encontram em toda a parte, e se mostram indestrutíveis. A este respeito é importante levar em conta a tendência sedentária da maior parte dos poetas. «Comparados com as outras artes, os poetas passam a maior parte do seu tempo a coçar a cabeça no escuro. Por isso é que a sua viagem preferida é ir à cozinha ver se há presunto e cerveja no frigorífico», refere Charles Simic.
Assim, viajando mais ou menos, convencendo-se de que se retoma o fulgor épico atravessando o mundo – julgando-se um aventureiro ao mesmo tempo que, na realidade, se luta para se livrar da companhia dos turistas, que a todo o momento nos recordam da vulgaridade desses anseios – ou abdicando das grandes vastidões e preferindo aquele regime das expedições urbanas dadaístas, que se reuniam para participar em excursões ao lugares mais triviais da cidade, espremendo não os elementos exóticos ou pitorescos mas a banalidade, e, deste modo, atingindo mais depressa esse objectivo de estranhar tudo aquilo que nos rodeia, seja indo ou ficando, o importante talvez seja esse impulso de deserção face a si mesmo, como bem exprime Gide ao dirigir-se a um discípulo imaginário em Les Nourritures Terrestres: «Nataniel, eu quero aprender o fervor. […] não te demores ao pé daquilo que se parece contigo; não permaneças nunca, Nataniel. Desde que um ambiente se começou a parecer contigo ou tu com ele, deixou de ser, para ti, proveitoso. É preciso deixá-lo. Nada é mais perigoso para ti do que a tua família, do que o teu quarto, do que o teu passado.»
Horror ao domicílio
Mas talvez quem tenha levado mais longe as suas indagações sobre essa natureza ulterior que a viagem revela sobre nós tenha sido Bruce Chatwin, um desses poetas que mais escreveu sobre «os lugares onde não estamos», incitando-nos a partir. Ele que assumia um verdadeiro horror do domicílio, toda a vida manteve debaixo da mira um alvo em movimento, esquivo, indócil, propondo-se escrever «uma espécie de Anatomia da Errância, que desenvolveria a máxima de Pascal sobre o homem silencioso sentado numa sala». Reconheceu que se tratava uma «obra barbaramente ambiciosa e intolerante», adivinhando o fracasso. Contudo, ainda nos deixou um argumento, em traços largos, como essas indicações que se esquissam no guardanapo de um bar de hotel para confidenciar algo de íntimo a um parceiro de copos que com toda a probabilidade não mais veremos. Eis então as linhas gerais da coisa: «ao tornar-se humano, o homem adquirira, com a postura erecta e a passada larga, o ‘impulso’ migratório ou o instinto de percorrer longas distâncias ao longo das estações; que esse ‘impulso’ lhe estava inscrito no sistema nervoso central; que, em situações estáticas, quando assenta, encontra escapes na violência, na avareza, na procura de estatuto social e na mania de tudo o que é novo». Chatwin desenvolve assim a ideia de que a fuga e o gozo do anonimato sinalizam a consciência de que a alternativa é envilecer, degradar-se, assumindo paixões viciosas, intrigas mesquinhas, o exercício de alguma forma de poder. Assim, a errância é um modo de se evadir dessa grande armadilha de homens entediados, que, na falta de um horizonte, se dedicam a todo o tipo de burocracias e enredos infernais. «Isso explicava», diz-nos Chatwin, «a razão pela qual as sociedades móveis, como a dos ciganos, eram igualitárias, livres da posse de bens e resistentes à mudança; e também o motivo por que, para restabelecer a harmonia do Primeiro Estado, todos os grandes mestres – Buda, Lao-Tsé, São Francisco – puseram a peregrinação perpétua no centro da sua mensagem e disseram literalmente aos discípulos que seguissem ‘o Caminho’.»
Para este viajante o homem paga um alto preço para viver adaptado ao regime das sociedades modernas, sendo não se concebe a civilização sem uma hierarquia social e económica estratificada, e arrastando uma série de implicações de ordem moral e ética. Para se gozar dos benefícios de viver nas cidades, é preciso estar submetido a um conjunto de juízos e valores cada vez mais pesados à medida que estes quadros se esforçam para preservar a coesão social. Ora, é quando esse quotidiano se torna de tal modo asfixiante que para alguns se coloca a «alternativa nómada». Naturalmente, quem rompe com os valores e os enredos citadinos, quem prefere a errância não demora a ser apodado por um conjunto de termos que serve para rebaixá-lo, expressões carregadas dos preconceitos civilizados: vadio, vagabundo, matreiro, bárbaro, selvagem, etc. No fundo, é encarado como uma ameaça, uma vez que, para lá daquela dose de romantismo recomendável que se associa à lenda do viajante, e de que todas as campanhas de turismo se servem para impingir os seus destinos exóticos, todo o nómada é olhado com desconfiança, considerando-se que a sua influência tende a ser desagregadora. Chatwin remete-nos para aquele que foi o primeiro filósofo a declarar-se cosmopolita, mas num sentido muito diverso do que hoje lhe damos. Diógenes, o Cínico, mostrava um absoluto desprezo pelos preceitos sociais, andando nu pelas ruas, fazendo as necessidades onde calhava, bastando-se com o mínimo para gozar os privilégios de um verdadeiro cidadão do mundo. Ele disse que os homens se aglomeraram nas cidades para escaparem à fúria dos que estavam do lado de fora. Mas uma vez trancados dentro dos seus muros, «cometiam todos os abusos uns contra os outros, como se fosse o único objectivo de se juntarem», refere Chatwin. «Foi um impulso mais emocional do que acional aquele que sempre levou o homem a abandonar a civilização e a procurar uma vida simples, uma vida em harmonia com a ‘natureza’, sem o estorvo dos haveres, livre dos grilhões opressivos da tecnologia, sem pecado, promíscua, anárquica, vegetariana, às vezes.»
Fica claro por estas palavras que a revolução é antes de tudo uma questão íntima, de cada homem consigo mesmo. «Os nómadas são odiados – ou adorados. Porquê? Não pode ser por puro acaso o facto de nunca ter nascido nenhuma grande fé transcendente numa Idade da Razão. A Civilização é para si própria Religião; […] As grandes fés renunciam à riqueza material e à ideia do progresso, em favor dos valores espirituais», frisa Chatwin. Por outro lado, aquela que tem demonstrado ser a especialização dos civilizados é «a exterminação de massas», no entender deste autor. Assim, que a viagem mais sincera é uma forma de evasão, de ruptura; nasce menos do movimento que é feito do que de uma disposição, e não se mede pelos testemunhos que regressam revelando um talento enciclopédico, pois nem é uma questão de memória factual, mas pressente-se realmente naqueles que alcançam um timbre combativo. A viagem não se faz em direcção a nada, mas contra si mesmo. Por isso é que a melhor viagem é um desastre absoluto para as circunstâncias e a identidade daquele que partiu.