TAP de volta ao olho do furacão

TAP de volta ao olho do furacão


O polémico relatório da IGF sobre a privatização da TAP questiona as intervenções de Maria Luís Albuquerque e Miguel Pinto Luz. Especialistas não chegam a acordo quanto à responsabilidade.


«O relatório da Inspeção Geral das Finanças erra clamorosamente». A afirmação foi feita ao Nascer do SOL por Sérgio Palma Brito, autor do livro TAP que futuro? Como chegámos aqui?, para quem o processo de privatização da TAP em 2015 foi competitivo, como reconhece a Auditoria do Tribunal de Contas. «E nele ‘não houve nem gestão danosa nem nenhum outro crime’, como reconhece o DCIAP».

Em causa está a auditoria da Inspeção-Geral de Finanças (IGF) às contas da TAP que avança com suspeitas de crime na privatização da companhia aérea, em 2015, e também durante a gestão de David Neelman e Humberto Pedrosa. O documento diz ainda que o negócio de compra da TAP por David Neelman foi financiado com um empréstimo de 226 milhões de dólares da Airbus, em troca da compra de 53 aviões à fabricante de aeronaves europeia, sendo que a companhia aérea dava a garantia ao crédito e que a companhia área nacional ficava obrigada a pagar os 226 milhões de dólares emprestados a Neelman se o empresário não comprasse os aviões. Também debaixo de fogo estão as remunerações pagas aos membros do conselho de administração, com o documento a afirmar que «o pagamento das remunerações aos administradores em causa [Humberto Pedrosa, David Pedrosa e David Neeleman] foi efetuado através de um contrato de prestação de serviços simulado (pois aparentemente o fim não era o mesmo para o qual fora celebrado), apresentando-se apenas como instrumental para o efeito pretendido».

É certo que as dores de cabeça começam quando a auditoria revela que a operação era do conhecimento da Parpública, assim como dos titulares das Finanças e das Infraestruturas do Governo que, na altura, era liderado por Pedro Passos Coelho. Isto é, Maria Luís Albuquerque – nome escolhido por Luís Montenegro na semana passada para comissária europeia e que tem estado envolvido em fortes críticas por parte dos partidos de esquerda – e Miguel Pinto Luz, atual ministro das Infraestruturas e Habitação, que era secretário de Estado das Infraestruturas, Transportes e Comunicações. E que agora volta a estar de debaixo de fogo com o PS a desafiar Luís Montenegro a dizer se o ministro das infraestruturas tem condições para manter o processo de reprivatização da companhia aérea e com o PSD a defender que o governante se deve manter em funções.

Em 2022, numa entrevista ao Nascer do SOL, Pinto Luz disse: «Como secretário de Estado finalizámos o processo de privatização com um parceiro privado credível, ao qual foi imposto um caderno de encargos muito pesado, em termos de investimento em novos aviões, em termos de investimento na própria companhia, em termos de exigência de manutenção de um hub estratégico em Portugal e na criação de novos mercados».

Já esta semana, o ministro diz que a legitimidade do seu lugar no Governo compete «sempre» ao primeiro-ministro. «A legitimidade de um membro do Governo compete sempre ao primeiro-ministro. Portanto, desde o dia em que eu assumi funções, o meu lugar pertence ao senhor primeiro-ministro, e portanto a legitimidade que tenho», afirmou, acrescentando que «nada há a esconder, foi tudo transparente, é por isso que este Governo se pugna. Pugna por transparência, por total abertura dos processos. Foi isso que fizemos, aguardaremos os resultados».

Entretanto, a Procuradoria-Geral da República (PGR) confirmou nesta quinta-feira a receção do relatório da Inspeção-Geral das Finanças (IGF) sobre a privatização da TAP, em 2015, e disse que enviou o documento para o Departamento Central de Investigação e Ação Penal (DCIAP). Recorde-se que o inquérito foi aberto em fevereiro de 2023 e resultou da participação feita por Fernando Medina e Pedro Nuno Santos, então ministros das Finanças e das Infraestruturas e Habitação, respetivamente.

‘Uma ficção baseada em factos verídicos’

Pouco convencido com estes argumentos está Pedro Castro. Ao Nascer do SOL, o especialista em aviação lembrou que «a própria Airbus reconheceu em vários acordos pré-judiciais que envolveram consórcios de investigação policial de vários países: a corrupção na encomenda de aviões – militares e de passageiros – é endémica. Como que admitindo: sempre que existe uma encomenda de aviões a probabilidade de existir corrupção a ela associada é muito elevada».

De acordo com o responsável, «apesar deste tipo de acordos, envolver o pagamento de pesadas multas por parte dos construtores – no caso da Airbus chegaram a ser pagos 3 mil milhões de euros em 2020 – raramente existem ‘culpados’ identificados enquanto tal, isto é, pessoas sobre as quais o princípio de inocência foi ilidido e que foram condenadas. Na prática, isto significa imaginar que neste tipo de encomendas de aviões existe, de facto e sempre, algum nível de corrupção, mas que a cadeia de eventos, de factos e de pessoas que a comprovem nunca serão judicialmente identificados e confirmados».

As críticas de Pedro Castro vão ainda mais longe: «Perante isto, e num país como Portugal e para uma companhia que sempre pertenceu ao Estado, é fácil imaginar que todas as encomendas da TAP beneficiaram o círculo político e que, eventualmente, desta vez, o beneficiado terá sido não um político ou um grupo de políticos, mas um investidor. E que esse grupo de políticos, conhecendo o valor da TAP em termos de negócios obscuros para benefício próprio, tente sobrevalorizar um simples relatório da IGF que não tem valor jurídico ou que tente manter a TAP na esfera do Estado – seja renacionalizando-a, seja garantindo que tem uma posição determinante que lhe permita continuar a beneficiar deste tipo de ‘negociata’ estabelecida que, claramente, consegue escapar às teias da justiça. Nada disto corresponde ao interesse público e aqueles que dizem querer defendê-lo são, provavelmente, os que menos o farão».

Já o presidente do Sindicato Nacional do Pessoal de Voo da Aviação Civil (SNPVAC), Ricardo Penarróias, lamenta que a má gestão da empresa tenha impacto na vida dos trabalhadores. «Infelizmente a auditoria acaba por dar razão a muitas críticas que fazíamos. A falta de transparências que sempre existiu neste negócio que nunca foi bem explicado, nunca foi dito às claras», revela ao nosso jornal, acenando com a existência de vários indícios que apontavam para uma «promiscuidade que agora veio à luz do dia».