O mundo da moda e do comércio eletrónico

O mundo da moda e do comércio eletrónico


A Shein, a Temu, a Amazon ou o AliExpress lucram milhões de euros. E a tendência para crescer. A vasta oferta e os preços muito mais acessíveis aliam-se à falta de lojas físicas e mão-de-obra barata. Mas tudo poderá estar prestes a mudar com as novas regras da Comissão Europeia.


Shein, Temu, Amazon, AliExpress ou E-Bay são nomes que certamente conhece e que, possivelmente, lhe dão muito jeito. É possível mandar vir de tudo, o tempo de espera não é muito e os preços, são uma pechincha. De roupa a gadgets, estas empresas mundiais vendem até o que não sabíamos que precisamos e são consideradas gigantes, tal como os seus lucros.

Vamos a números. A Shein é mais conhecida pela roupa – em muitos casos muito parecida a grandes marcas como a Zara – mas também vende acessórios para casa ou animais e tem uma marca de maquilhagem própria: a Sheglam. Só em 2023, a retalhista online conseguiu movimentar cerca de 42 mil milhões de euros em produtos, um lucro superior a 1,8 mil milhões de euros. E este valor já foi o dobro daquilo que conseguiu em 2022: 650 milhões de euros. Para se ter uma ideia do sucesso da Shein, atualmente é uma das empresas de vestuário mais rentáveis do mundo. Tem lucros superiores à H&M ou Primark mas ainda não conseguiu superar o gigante grupo Inditex – dono de lojas como Zara, Stradivarius ou Bershka.

Mas a tendência é crescer. Um estudo da GlobalData mostra que a Shein tornou-se a maior retalhista de venda de roupa do mundo em 2023. E justifica este sucesso. “A força da retalhista reside parcialmente na sua capacidade em lançar milhares de novos produtos diariamente, garantindo que responde às tendências em tempo recorde. Também foi alavancada pelo poder das redes sociais, beneficiando tanto do marketing de influência como do conteúdo orgânico gerado pelos seus utilizadores”, defendeu Louise Deglise-Favre, analista na GlobalData.

E quando a gigante chinesa já estava em altas, eis que chega uma das suas maiores concorrentes: a Temu. O conceito é basicamente o mesmo mas o marketing parece um pouco mais agressivo e os preços ligeiramente mais baixos. Os números mostram que o grupo chinês PDD Holdings – que é proprietário não só da Temu mas de marcas como a Pinduoduo – conseguiu alcançar um lucro líquido atribuível de 27,997 mil milhões de yuans (perto de 3,6 mil milhões de euros) só nos primeiros três meses deste ano. Este valor representa um crescimento expressivo de 245% face ao mesmo período do ano anterior. Ainda que não detalhe o lucro da Temu, presume-se que seja daqui que vem a maior fatia.

O negócio tem corrido de tal forma bem que Colin Huang, fundador da Temu, já é o homem mais rico da China, ao alcançar uma fortuna atualizada de 50,1 mil milhões de dólares (cerca de 45,4 mil milhões de euros). O empreendedorismo, está-lhe no sangue: empreendedor desde cedo, tinha já fundado a companhia de jogos online Xinyoudi e a plataforma de e-commerce Ouku.co. Mas isto são conversas para outros trabalhos.

A questão que se impõe é: como é que estas duas marcas, vendendo produtos tão acessíveis a todas as carteiras, conseguem chegar a estes lucros? A resposta parece ser simples para Henrique Tomé, analista da XTB. “Tanto a Shein como a Temu adotaram o modelo de negócio de fast fashion, mas com padrões de qualidade inferiores a outras marcas que já estão estabelecidas no mercado há muito mais tempo”, começa por explicar ao i. No entanto, “o facto de ambas as empresas terem acesso a mão-de-obra mais barata, assim como os produtos que acabam por se traduzir (na maior parte das vezes) em qualidade mais baixa, acabam por ser capazes de conseguir praticar valores mais baixos, sem comprometer as suas margens”.

O analista detalha ainda que estes modelos de negócio “baseiam-se principalmente em vender em massa, mesmo que o lucro líquido seja reduzido, pois é compensado pela quantidade”. Além disso, acrescenta Henrique Tomé, “o facto destas marcas não terem lojas físicas, ou seja, todos os produtos estão distribuídos globalmente por armazéns que detêm o stock em localizações estratégicas (face à procura por região), permite também a ambas as empresas conseguirem reduzir muito os seus custos”.

Ainda sobre estas duas gigantes chinesas, João Queiroz, Head of Trading do Banco Carregosa, defende que “têm vindo a ganhar cada vez mais destaque no mundo da moda e do comércio eletrónico, revolucionando a forma como fazemos compras”. Isto porque, explica “ambas são sustentadas nos conceitos de fast fashion – onde as peças de vestuário comercializadas possuem, na sua maioria, um padrão de produção e consumo extremamente rápidos, sendo descartadas após poucas utilizações – e de sourcing global, que consiste na aquisição de produtos e serviços do mercado global, aproveitando assim condições mais competitivas, neste caso, a redução de custos”. 

O especialista adianta ainda que plataformas como estas “conseguem adicionar um enorme volume de novos produtos à sua oferta, com frequência, maximizando a eficiência e a conveniência do e-commerce e contrastando com o modelo tradicional de lojas físicas, onde a experiência do consumidor e a possibilidade de interação direta com o produto são valorizadas”.

Mas não só. Estas marcas, adianta João Queiroz, “combinam a produção massificada, otimização da cadeia de fornecimento e logística, venda direta ao consumidor e estratégias de marketing digital muito apelativas e eficazes para oferecer produtos a preços concorrencialmente baixos”. O segredo da rentabilidade? É simples: “Centra-se, em grande parte, na elevada eficiência operacional, enormes volumes de vendas e margens de lucro, que apesar de serem reduzidas, são financeiramente sustentáveis devido ao grande número de transações”.

O Head of Trading do Banco Carregosa explica que ao encomendar grandes quantidades diretamente das fábricas, “conseguem negociar preços mais baixos com os fornecedores e, como vendem em grandes volumes, conseguem diluir os custos fixos (como transporte, armazenamento e marketing) por unidade vendida, reduzindo assim o custo total”. 

Tanto a Shein como a Temu, por exemplo, “operam com fabricantes em países onde os custos de produção, como mão-de-obra e materiais, são relativamente baixos, como na China e em outros países da Ásia. Este modelo, conhecido como “Direct-to-Consumer” (D2C), elimina intermediários, o que permite manter os preços acessíveis”.

E estando exclusivamente no online, “evitam os custos elevados associados à manutenção de lojas físicas, como arrendamentos de espaços, salários de pessoal e outras despesas operacionais”. Além disso, acrescenta o especialista, “durante a experiência de compra, as plataformas sugerem produtos complementares – uma prática conhecida como venda cruzada” – utilizando dados do próprio utilizador e de outros com preferências semelhantes, o que aumenta o valor médio de cada transação”.

Outras marcas já conhecidas do público 

Mas se falamos de Shein e Temu, há outras marcas que tão bem conhecemos e que chegaram primeiro, ainda tendo o seu sucesso e vendendo outros produtos. Uma delas é o E-Bay. Esta é uma marca global e das mais famosas em termos de comércio eletrónico, registando quase três mil milhões de visitas, contando com mais de mil milhões de referências, 187 milhões de compradores ativos e 22 milhões de vendedores. 

O E-Bay funciona de uma forma diferente tendo em conta que além de se poder comprar praticamente tudo, também se pode vender. No entanto, a empresa está a enfrentar alguns problemas. A empresa de comércio eletrónico vai despedir cerca de mil trabalhadores, aproximadamente 9% dos empregados a tempo inteiro, e reduzir o número de trabalhadores em outsourcing.

Junta-se a Wish. Muito conhecida mas mais apagada nos últimos tempos. Ainda que seja uma gigante do comércio eletrónico de origem norte-americana conhecida pelos seus descontos, é da China que chegam grande parte dos produtos disponíveis para venda. E os números têm sido de queda nos últimos anos. Talvez pelo aparecimento de várias concorrentes. A Wish gerou 278 milhões de dólares – aproximadamente 253 milhões e euros – em receita em 2023, uma derrapagem de 50,8% em relação ao ano anterior. O prejuízo líquido da empresa nesse mesmo ano disparou para 317 milhões de dólares, valor que ronda aproximadamente os 288 milhões de euros.

E se a Wish está em queda, não será a única. A gigante Alibaba, no seu primeiro trimestre fiscal, que termina a 30 de junho, registou lucros de 3,08 mil milhões de euros, uma descida de 29% face aos mesmos três meses do ano passado. Diz-se que a grande responsável por estes resultados será, claro está, a Temu. Até porque as diferenças não são grandes. Aqui, tal como na Temu, pode comprar-se de tudo: de vestuário a produtos de beleza ou eletrónicos. Mas, como vale tudo para as vendas, pouco depois a empresa ‘recrutou’ David Beckham, antigo jogador de futebol, para as campanhas de marketing do seu braço muito conhecido: a Aliexpress. Agora é ver se funciona.

Por falar em Aliexpress, este é um dos maiores sites chineses com preços bastante acessíveis onde, tal como os outros, também é possível comprar quase tudo. No entanto, aqui diz-se que a entrega é um pouco lenta e pode chegar até um mês. A oferta é, no entanto, assustadoramente grande e é possível dizer que há pouca coisa que não exista na Aliexpress. 

Passamos para o – talvez – mais conhecido de todos: a Amazon. A gigante do comércio eletrónico Amazon conseguiu lucros líquidos de 23.916 milhões de dólares (22.171 milhões de euros) nos primeiros seis meses deste ano, mais 141% do que no mesmo período de 2023. É das empresas de e-commerce mais antigas, a mais famosa e, talvez, a mais usada. Surgiu em 1994 – ainda que só lançada oficialmente no ano seguinte – pelas mãos de Jeff Bezos – atualmente um dos homens mais ricos do mundo – e foi evoluindo ao longo dos anos, existindo já, por exemplo, a Amazon Prime que se dedica ao streaming. Tornou-se muito conhecida pela inovação tecnológica mas continua a enveredar por várias áreas e produtos. Ainda que não seja pelos produtos baratos que é conhecida, o seu ‘cabaz’ extenso de produtos e gadgets, tem tudo para todos os gostos e utilidades.

Não tão conhecido ainda, está o recente Tik Tok Shop. Ainda que a rede social à qual está afeta ser bastante popular a nível mundial, a loja online não tanto. Mas está a crescer bem. É preciso ter instalada a aplicação da rede social mas, assim que a tiver, é possível que os usuários encontrem e comprem diretamente produtos usados em vídeos ao vivo, marcados em conteúdo na sua página For You (orientada por algoritmo), fixados nos perfis de marca ou comercializados em uma nova guia “Loja”. Hoje em dia, como se vê, qualquer sítio é bom para vender. E é por estas e por outras que, pelo menos dentro da União Europeia, Bruxelas decidiu meter a mão.

Comissão Europeia pode apertar regras 

Recentemente, soube-se que a Comissão Europeia está a preparar o terreno para uma mudança significativa no que diz respeito ao comércio eletrónico. Terá planos para impor taxas alfandegárias sobre produtos “baratos” provenientes de retalhistas online chineses, como a Temu e a Shein. A proposta, que deverá estar prestes a sair do papel, conta com medidas como a eliminação do atual limite de 150 euros que os produtos podem ser importados sem taxa.

Henrique Tomé garante: “A Europa é conhecida por ser pioneira em criar leis e não seria de admirar que, desta vez, não fosse diferente”, acrescentando que “a quota de mercados que estas empresas têm conseguido em tão pouco tempo é natural que crie algum desconforto aos reguladores, até porque não se trata de empresas locais, mas sim de empresas chinesas, onde há muito tempo que os países ocidentais têm estado algo “desconfortáveis” com o crescimento da economia chinesa e as suas empresas”.

Por sua vez, João Queiroz defende que a posição da Comissão Europeia relativamente aos preços baixos destas plataformas “reflete uma preocupação genuína com a concorrência justa, a proteção dos direitos laborais e a sustentabilidade na União Europeia” e que “constitui uma posição defensável quando procura assegurar a concorrência leal, qualidade e segurança dos produtos, sustentabilidade (atendendo à preocupação do consumo excessivo de produtos “baratos”, promovido por estas plataformas, que tem a tendência para apresentar significativos impactos ambientais), e evitar a exploração laboral”.

Na opinião do especialista, concordar ou discordar com estas medidas “depende, assim, do equilíbrio que se procura alcançar entre a proteção da economia local, a garantia de condições de trabalho justas e o consumo sustentável, por um lado, e o benefício que os preços baixos trazem para os consumidores, por outro”. Na perspetiva da sustentabilidade e justiça, “as medidas podem ser tidas como necessárias para alinhar as práticas comerciais com os valores e normas da UE”, acrescenta João Queiroz, “também é relevante considerar os efeitos sobre os consumidores, essencialmente os de menor rendimento, que mais dependem de produtos acessíveis”, considerando por isso que o desafio “está em conseguir que a regulamentação e a fiscalização acompanhem a dinâmica deste mercado, garantindo que todos possam beneficiar de um comércio justo e responsável”.

É que, inevitavelmente, o consumidor será afetado, diz João Queiroz. Pelo aumento de preços, claramente. “O consumidor final deverá, muito provavelmente, ser afetado pelas medidas que a Comissão Europeia pretende implementar nestas plataformas”, diz ao i, defendendo então que um dos impactos mais imediatos “pode ser um aumento dos preços e uma redução na diversidade de produtos acessíveis”. No entanto, adianta que esse impacto “pode vir acompanhado de uma maior segurança e qualidade nos produtos disponíveis, o que, a longo prazo, poderá beneficiar os consumidores”. 

Adicionalmente, acrescenta o especialista, “poderá ocorrer uma mudança gradual nos hábitos e padrões de consumo, com maior enfoque na sustentabilidade e na compra consciente”. Embora alguns consumidores possam sentir a pressão financeira “devido aos possíveis ajustes nos preços, estas medidas podem, a prazo, contribuir para um mercado mais equilibrado, seguro e ético”, finaliza.