1. Eis mais um ano e mais uma temporada na praia onde, desde que me conheço, sempre passei pelo menos uma parte das minhas férias de verão.
Não houve ano em que isso não acontecesse, nem exames liceais ou universitários que o tivessem impedido, nem revolução ou contrarrevolução que me demovessem, nem sequer uma pandemia que mo tivesse proibido.
Recordo e associo, pois, a esta praia muitos dos momentos que foram significativos no meu crescimento.
Praia que, sendo a mesma, nada tem em comum com a que foi, quando muitos episódios da minha vida de adolescente me tornaram no que hoje sou.
Os primeiros namoros, o gosto pelas leituras longas, a paixão pelo cinema (havia duas esplanadas de cinema ao ar livre).
2. Refira-se, a propósito, que há, em princípio, mais do que uma maneira de olhar para um lugar de veraneio, se esse lugar se situa numa povoação já antiga, com população própria e com um carácter singular, como acontece na praia que frequento.
Há, haverá sempre, o olhar dos seus habitantes locais e o olhar dos banhistas que arribam sazonalmente à povoação que dá acesso e nome à praia.
E, queiramos ou não, por mais amigos e até íntimos que, ao longo do tempo, enquanto banhistas, nos formos tornando de alguns dos nativos dessa povoação balnear, haverá sempre duas maneiras de olhar para uma tal terra e uma tal praia.
Podemos, como foi o meu caso, ter aprendido muito com os locais, em regra pescadores, mas que exercem, também, outras profissões quando o mar não dá e o verão convoca os turistas.
Desde logo a maneira como vemos e sentimos a praia e o mar não pode deixar de ser diferente.
Para os banhistas, a praia e o mar são sítios de descanso e de prazer. De descontração e de maravilhamento. Também de susto e de compreensão dos seus limites e a constatação da superioridade dos que, da mesma idade, sendo nativos, conhecem melhor os riscos que o mar tem e a habilidade de a eles se furtar.
Para estes últimos, a praia e o mar são o local e o instrumento do seu trabalho, o seu modo de vida e, muitas vezes, de sofrimento e morte.
A ferramenta que no outono, no inverno e na primavera usam para ganhar a vida é a que no verão, além disso, lhes permite acumular outros proventos, alugando as casas aos turistas, servindo nos restaurantes e bares, vigiando os banhistas no mar, enquanto lhes alugam as sombrinhas nas zonas concessionadas.
3. A este propósito, já na Faculdade de Direito, suscitou-se-me uma dúvida jurídica: qual o objeto do negócio, a sombra que o guarda-sol proporciona, ou apenas o objeto que a projeta?
Muitas discussões ouvi eu entre vizinhos de sombrinhas a propósito desta questão sempre que, como é normal, o sol e a sombra se movem e os que alugaram o guarda-sol se veem obrigados, tantas vezes a contragosto, a deslocar-se com as respetivas espreguiçadeiras.
Quid juris, como terminavam as hipóteses mais arrebicadas que tínhamos de resolver na Faculdade.
4. Na praia que frequento, e que comecei a visitar regularmente desde que tinha cinco anos, poder-se-ia fazer um documentário sobre Portugal, as suas glórias e as suas misérias.
As contradições sociais eram profundas e isso revelava-se, de imediato, no despique, por vezes violento, existente entre os miúdos da praia e os dos banhistas.
Não tão brutal, mas algo parecido com o “Novecento” de Bertolluci, que a Zita Seabra nos desaconselhava o visionamento, por, segundo ela, ser demasiado reformista e propagandista do compromisso histórico entre a Democracia Cristã e o PCI.
Tempos!
Na verdade, por esse mesmo tempo, assisti a vários episódios da «luta de classes» nesta praia que bem podiam ilustrar como, na realidade, mesmo no auge da revolução, numa das povoações mais influenciadas pela esquerda, se faziam compromissos diários e alguns deles com imensa graça.
5. Recordo uma manhã de Domingo em que uma amiga da minha idade e já antiga vizinha de guarda-sol se me dirigiu e, com toda calma e sentido de persuasão possível – via-se que queria mesmo que o seu pedido resultasse – me pediu um favor.
Meio a rir, meio a sério – não sabia como eu reagiria – rogou-me que perguntasse aos «meus camaradas» da banca do Avante se a podiam deslocar um pouco que fosse, pois, sendo ela de Évora, gostaria de desanuviar um pouco nas férias.
Completou a explicação informando-me que a banca funcionava desde as 8 horas da manhã, com os respetivos hinos alegóricos, debaixo da janela do seu quarto, o que a impedia de dormir, especialmente quando se deitava tarde, como é suposto acontecer a quem, sendo jovem, se quer distrair no verão.
Confesso que fiquei um pouco embaraçado, mas atendendo à nossa amizade, predispus-me, mesmo assim, a fazê-lo, pois conhecia igualmente os amigos que montavam e animavam a banca, e sabia que, sendo algarvios, longe de se enfurecerem, se iriam rir imenso de tal pedido.
Feito e aceite o solicitado, entre comentários malévolos dos «camaradas», logo estes me pediram que, em troca, explicasse à minha amiga que, sabendo bem quem ela era e a que família pertencia, compreendiam o pedido e, solidariedade à parte, que ela devia ficar a saber que os comunistas da praia só queriam que os banhistas tradicionais se sentissem bem e continuassem a gastar ali o muito dinheiro que tinham.
Recebido o recado e verificado o sucesso da missão, foi a vez de a minha amiga se espantar com o amável tratamento recebido e o facto de no domingo seguinte a banca do Avante se ter, efetivamente, afastado da sua janela, de modo a não a acordar tão cedo.
6. Noutra altura, mas no mesmo verão, começaram alguns banhistas a queixar-se de furto de gasolina dos carros.
Culpa dos pescadores e da «abrilada», disseram logo os mais reacionários.
Os pescadores, que nunca roubaram nada a ninguém, mesmo quando a sua vida era verdadeiramente miserável, organizaram-se, então, e iniciaram, por sua conta, uma vigilância noturna.
Para azar dos ladrões, uns rapazolas de conhecidas famílias lisboetas e não das famílias dos banhistas tradicionais, foram detidos pelos pescadores quando, precisamente, furtavam combustível do carro de um juiz, pessoa bem conhecida dos pescadores, que, alertado por estes, chamou a polícia e os fez julgar em processo sumário no dia seguinte.
Assim se salvou a honra agravada deste povo e se calaram, por momentos, as vozes da reação.
6. As mudanças que ocorreram nesta praia e a evolução da vida dos habitantes da povoação que lhe dá o nome podem exemplificar muito do que aconteceu de bom e de mau no nosso país ao longo dos tempos.
As sóbrias características do – apesar de tudo – ordenamento da terra, por exemplo, duraram o tempo que durou a influência da esquerda na Câmara, mas tal ascendência não resistiu à pressão urbanística e aos negócios que esta proporcionou um pouco a toda a gente.
Hoje, o desarranjo urbanístico é gritante, mas os habitantes vivem indubitavelmente melhor.
Mas haveria, para isso, necessidade de desfear tanto uma povoação que, nunca tendo sido muito bem ordenada, resistiu, todavia, durante anos aos crimes urbanísticos que iam destruindo, entretanto, outros lugares do Algarve?
7. Uma amiga italiana pediu-me, um dia, para visitar um mosteiro famoso em Portugal.
Feita a visita, disse-me que o mosteiro era belíssimo, mas era uma pena estar tão mal-enquadrado urbanisticamente.
Em tom de justificação, falei, em geral, da corrupção nas autarquias.
A resposta foi lapidar «mais corruptos que os italianos não há, os nossos corruptos têm, apesar de tudo, melhor gosto.»
E, assim, me calou!
Não sem que antes tivesse pensado, em silêncio envergonhado, que o bom gosto de tais corruptos resultava de terem tido acesso, mais cedo, a mais educação e a mais cultura do que os nossos.