O fruto proibido


A história da papaia “Rainbow” mostra, no entanto, que por vezes existem situações críticas em que se torna pouco ético ignorar ou descartar as tecnologias de modificação genética.


No ano de 1998 a indústria da papaia no Havai encontrava-se à beira do colapso devido a uma virose incontrolável. Em apenas 6 anos, um surto do vírus do mosaico da papaia devastara os principais pomares do arquipélago provocando um decréscimo de 50% na produção e fortes impactos económicos e sociais. O futuro adivinhava-se sombrio e a busca por uma papaia resistente assumia uma importância crucial. Esta planta salvadora acabaria por ser criada por engenharia genética sob a liderança de Dennis Gonsalves, um descendente de emigrantes madeirenses e açorianos.

Nas décadas de 1980 e 1990 a papaia era um dos componentes vitais do setor agrícola do Havai, a par de culturas tradicionais como a cana-de-açúcar e o ananás. A cultura contribuía para a economia local e exportações, proporcionava emprego e fornecia um alimento nutritivo e acessível aos havaianos. A partir de 1980, no entanto, a produção começou a ser progressivamente ameaçada por uma doença causada pelo vírus do mosaico da papaia. Os sintomas principais da infeção viral incluem o amarelecimento e a emergência de padrões em mosaico nas folhas, lesões nas frutas e um crescimento atrofiado das plantas. Na prática, a virose reduz o rendimento das culturas, degrada a qualidade dos frutos e aumenta a mortalidade das plantas. O controlo da doença passa pela remoção e destruição imediata das plantas, pela implementação de medidas sanitárias rigorosas e pelo combate aos insetos transmissores. Apesar de todos os esforços nesse sentido, as autoridades havaianas foram incapazes de salvar a produção, que caiu de 24000 para 12000 toneladas de 1992 a 1998. Tornara-se impossível encontrar plantas saudáveis e o impacto sobre as populações modestas cujo sustento dependia da cultura foi enorme. A indústria entrava em crise e as autoridades baixavam os braços [1].

Dennis Gonsalves nasceu numa plantação de açúcar no Havai em 1943. De origens humildes, os seus ascendentes incluíam avós portugueses emigrados da Madeira e dos Açores no final do século XIX, e também avós chineses e havaianos. A vida na quinta familiar despertou em Dennis um interesse pela horticultura que culminaria num doutoramento em fitopatologia. Enquanto investigador na Universidade de Cornell, e durante umas férias no Havai em 1978, Gonsalves constatou que o vírus do mosaico constituía uma ameaça muito séria para a cultura da papaia. A partir daí iniciou estudos aturados de caracterização do vírus, desenvolvendo metodologias experimentais e estabelecendo colaborações que se viriam mais tarde a mostrar cruciais. Em 1987, e numa altura em que era já claro que o surto de mosaico da papaia no Havai seria imparável, Gonsalves tomou em mãos o desafio de criar uma papaia resistente ao vírus. A opção por um processo de cruzamento tradicional de variantes da planta e seleção de variantes resistentes, inerentemente moroso, foi desde logo afastada face à urgência em debelar o surto. Em alternativa, a modificação genética com recurso às técnicas de biologia molecular que se começavam a afirmar oferecia a promessa de um método mais rápido e preciso para obter a almejada resistência.

De forma sumária, a equipa coordenada por Gonsalves bombardeou embriões de papaia com partículas de tungsténio contendo o gene de uma proteína do vírus. De acordo com o conceito científico da “resistência derivada do patógeno”, a proteína viral deveria funcionar como uma vacina, estimulando mecanismos de defesa natural na planta que impediriam a progressão de futuras infeções [1]. A partir dos embriões modificados, os investigadores geraram então linhagens de papaias que foram expostas ao vírus em ensaios de estufa e de campo. No final de 1992 era já claro que uma das plantas transformadas exibia uma resistência significativa ao vírus. A planta resistente foi então cruzada com cultivares comerciais originando a variante “Rainbow” que foi testada de imediato nos campos devastados pelo vírus. Os resultados mostraram aos cientistas e produtores que a papaia “Rainbow” era resistente mesmo em condições adversas e que possuía excelentes propriedades hortofrutícolas. Para lá do trabalho académico, Gonsalves liderou ainda o processo de translação da tecnologia necessário à comercialização da planta, incluindo a obtenção das autorizações das agências reguladoras e o estabelecimento de acordos de propriedade intelectual. A comercialização da papaia “Rainbow” acabaria por ser formalmente autorizada em 1998, 20 anos depois de Gonsalves ter iniciado o seu trabalho. A primeira cultura transgénica desenvolvida pelo setor público entrava assim no mercado [1].

A adoção da papaia transgénica “Rainbow” no Havai foi extremamente rápida e o seu impacto significativo. A agricultura local revitalizou-se, a segurança alimentar das populações fortaleceu-se e os pequenos agricultores recuperaram uma fonte estável de rendimentos [2]. A resistência ao vírus do mosaico manteve-se e a aceitação dos consumidores foi excelente, de tal forma que em 2015, cerca de 85% das papaias cultivadas no Havai eram transgénicas [1]. Inicialmente distribuídas gratuitamente, as sementes são hoje em dias vendidas a preço de custo. Todos os estudos científicos efetuados até à data confirmam também a segurança da papaia transgénica para o consumidor. Poucas dúvidas existem hoje de que a papaia transgénica salvou a indústria havaiana da papaia.

As controvérsias em torno dos alimentos transgénicos persistem, girando em torno de potenciais riscos para a saúde, impacto ambiental e considerações éticas relacionadas com a modificação genética. Existem também receios de que as empresas multinacionais do setor possam controlar agricultores e consumidores, impondo de forma ilegítima uma dependência de sementes proprietárias e de práticas agrícolas específicas. Assim, e sem surpresa, em contextos em que existam alternativas, a planta transgénica emerge como “fruto proibido, simbolizando transgressão e desobediência às leis naturais, perda de inocência e conhecimento ilegítimo. A história da papaia “Rainbow” mostra, no entanto, que por vezes existem situações críticas em que se torna pouco ético ignorar ou descartar as tecnologias de modificação genética. O testemunho de Dennis Gonsalves sobre o impacto humano positivo da Biotecnologia é a este propósito particularmente elucidativo e interessante [1].

[1] Gonsalves, D., (2015) The wayward Hawaiian boy returns home? Annu. Rev. Phytopathol., 53:1–17.

[2] Gonsalves, C., Lee, D. R., & Gonsalves, D. (2007) The Adoption of genetically modified papaya in Hawaii and its implications for developing countries. J. Dev. Studies, 43:177–191.

Professor no Instituto Superior Técnico

miguelprazeres@tecnico.ulisboa.pt

O fruto proibido


A história da papaia “Rainbow” mostra, no entanto, que por vezes existem situações críticas em que se torna pouco ético ignorar ou descartar as tecnologias de modificação genética.


No ano de 1998 a indústria da papaia no Havai encontrava-se à beira do colapso devido a uma virose incontrolável. Em apenas 6 anos, um surto do vírus do mosaico da papaia devastara os principais pomares do arquipélago provocando um decréscimo de 50% na produção e fortes impactos económicos e sociais. O futuro adivinhava-se sombrio e a busca por uma papaia resistente assumia uma importância crucial. Esta planta salvadora acabaria por ser criada por engenharia genética sob a liderança de Dennis Gonsalves, um descendente de emigrantes madeirenses e açorianos.

Nas décadas de 1980 e 1990 a papaia era um dos componentes vitais do setor agrícola do Havai, a par de culturas tradicionais como a cana-de-açúcar e o ananás. A cultura contribuía para a economia local e exportações, proporcionava emprego e fornecia um alimento nutritivo e acessível aos havaianos. A partir de 1980, no entanto, a produção começou a ser progressivamente ameaçada por uma doença causada pelo vírus do mosaico da papaia. Os sintomas principais da infeção viral incluem o amarelecimento e a emergência de padrões em mosaico nas folhas, lesões nas frutas e um crescimento atrofiado das plantas. Na prática, a virose reduz o rendimento das culturas, degrada a qualidade dos frutos e aumenta a mortalidade das plantas. O controlo da doença passa pela remoção e destruição imediata das plantas, pela implementação de medidas sanitárias rigorosas e pelo combate aos insetos transmissores. Apesar de todos os esforços nesse sentido, as autoridades havaianas foram incapazes de salvar a produção, que caiu de 24000 para 12000 toneladas de 1992 a 1998. Tornara-se impossível encontrar plantas saudáveis e o impacto sobre as populações modestas cujo sustento dependia da cultura foi enorme. A indústria entrava em crise e as autoridades baixavam os braços [1].

Dennis Gonsalves nasceu numa plantação de açúcar no Havai em 1943. De origens humildes, os seus ascendentes incluíam avós portugueses emigrados da Madeira e dos Açores no final do século XIX, e também avós chineses e havaianos. A vida na quinta familiar despertou em Dennis um interesse pela horticultura que culminaria num doutoramento em fitopatologia. Enquanto investigador na Universidade de Cornell, e durante umas férias no Havai em 1978, Gonsalves constatou que o vírus do mosaico constituía uma ameaça muito séria para a cultura da papaia. A partir daí iniciou estudos aturados de caracterização do vírus, desenvolvendo metodologias experimentais e estabelecendo colaborações que se viriam mais tarde a mostrar cruciais. Em 1987, e numa altura em que era já claro que o surto de mosaico da papaia no Havai seria imparável, Gonsalves tomou em mãos o desafio de criar uma papaia resistente ao vírus. A opção por um processo de cruzamento tradicional de variantes da planta e seleção de variantes resistentes, inerentemente moroso, foi desde logo afastada face à urgência em debelar o surto. Em alternativa, a modificação genética com recurso às técnicas de biologia molecular que se começavam a afirmar oferecia a promessa de um método mais rápido e preciso para obter a almejada resistência.

De forma sumária, a equipa coordenada por Gonsalves bombardeou embriões de papaia com partículas de tungsténio contendo o gene de uma proteína do vírus. De acordo com o conceito científico da “resistência derivada do patógeno”, a proteína viral deveria funcionar como uma vacina, estimulando mecanismos de defesa natural na planta que impediriam a progressão de futuras infeções [1]. A partir dos embriões modificados, os investigadores geraram então linhagens de papaias que foram expostas ao vírus em ensaios de estufa e de campo. No final de 1992 era já claro que uma das plantas transformadas exibia uma resistência significativa ao vírus. A planta resistente foi então cruzada com cultivares comerciais originando a variante “Rainbow” que foi testada de imediato nos campos devastados pelo vírus. Os resultados mostraram aos cientistas e produtores que a papaia “Rainbow” era resistente mesmo em condições adversas e que possuía excelentes propriedades hortofrutícolas. Para lá do trabalho académico, Gonsalves liderou ainda o processo de translação da tecnologia necessário à comercialização da planta, incluindo a obtenção das autorizações das agências reguladoras e o estabelecimento de acordos de propriedade intelectual. A comercialização da papaia “Rainbow” acabaria por ser formalmente autorizada em 1998, 20 anos depois de Gonsalves ter iniciado o seu trabalho. A primeira cultura transgénica desenvolvida pelo setor público entrava assim no mercado [1].

A adoção da papaia transgénica “Rainbow” no Havai foi extremamente rápida e o seu impacto significativo. A agricultura local revitalizou-se, a segurança alimentar das populações fortaleceu-se e os pequenos agricultores recuperaram uma fonte estável de rendimentos [2]. A resistência ao vírus do mosaico manteve-se e a aceitação dos consumidores foi excelente, de tal forma que em 2015, cerca de 85% das papaias cultivadas no Havai eram transgénicas [1]. Inicialmente distribuídas gratuitamente, as sementes são hoje em dias vendidas a preço de custo. Todos os estudos científicos efetuados até à data confirmam também a segurança da papaia transgénica para o consumidor. Poucas dúvidas existem hoje de que a papaia transgénica salvou a indústria havaiana da papaia.

As controvérsias em torno dos alimentos transgénicos persistem, girando em torno de potenciais riscos para a saúde, impacto ambiental e considerações éticas relacionadas com a modificação genética. Existem também receios de que as empresas multinacionais do setor possam controlar agricultores e consumidores, impondo de forma ilegítima uma dependência de sementes proprietárias e de práticas agrícolas específicas. Assim, e sem surpresa, em contextos em que existam alternativas, a planta transgénica emerge como “fruto proibido, simbolizando transgressão e desobediência às leis naturais, perda de inocência e conhecimento ilegítimo. A história da papaia “Rainbow” mostra, no entanto, que por vezes existem situações críticas em que se torna pouco ético ignorar ou descartar as tecnologias de modificação genética. O testemunho de Dennis Gonsalves sobre o impacto humano positivo da Biotecnologia é a este propósito particularmente elucidativo e interessante [1].

[1] Gonsalves, D., (2015) The wayward Hawaiian boy returns home? Annu. Rev. Phytopathol., 53:1–17.

[2] Gonsalves, C., Lee, D. R., & Gonsalves, D. (2007) The Adoption of genetically modified papaya in Hawaii and its implications for developing countries. J. Dev. Studies, 43:177–191.

Professor no Instituto Superior Técnico

miguelprazeres@tecnico.ulisboa.pt