Afinal é ADN ou DNA?


Se em cada país se resolvesse alterar as siglas de compostos bioquímicos para as compatibilizar com a designação na língua nacional, tal acarretaria a confusão e a falta de comunicação da paradigmática história bíblica da Torre de Babel.


A utilização da sigla ADN é muito frequente para afirmar o ADN de um clube de futebol, de um partido político, de uma empresa, de uma qualquer instituição ou grupo social. A sigla ADN faz, pois, hoje parte do léxico português e não só para referir a molécula de Ácido DesoxirriboNucleico da qual deriva. Este ácido nucleico celular contém a informação genética necessária para que uma pessoa e os outros seres vivos funcionem e se desenvolvam, sendo essa informação transmitida de uma geração para a seguinte. Visto ser essencial à vida e a marca distintiva de cada indivíduo, é compreensível esta apropriação do termo fora do seu contexto biológico. No entanto, há quem, com formação em Ciências da Vida e responsabilidades nesta área, utilize, por sistema, a sigla DNA, e não ADN. Julgo que o leitor já terá ficado intrigado com isso pelo que elegi esta duplicidade para tema do artigo. Ainda que possa parecer marginal quando o país acaba de sair de uma campanha eleitoral e conhecer o resultado das eleições, não é mais lateral do que o papel que foi reservado à ciência, tecnologia, e ensino superior na campanha eleitoral, apesar da sua centralidade para o futuro do país. 

Afinal, como se deve dizer: DNA o ADN? DNA é uma sigla que, de acordo com as recomendações da comissão para a nomenclatura em Bioquímica da IUPAC-IUB (International Union of Pure and Applied Chemistry-International Union of Biochemistry) para ácidos nucleicos, polinucleotídeos e seus constituintes (1) deve ser usada como abreviatura para o DeoxyriboNucleic Acid que, em português, é o ácido desoxirribonucleico, abreviado por ADN. Embora se tenha que reconhecer que não há, presentemente, riscos de confusão relativamente ao que significa ADN, caso todas as numerosíssimas siglas internacionalmente recomendadas em Bioquímica e Biologia Molecular fossem alteradas tendo em conta a designação da palavra em português, a confusão seria total e o diálogo com a comunidade científica internacional tornar-se-ia impossível. Aliás, se em cada país se resolvesse alterar as siglas de compostos bioquímicos para as compatibilizar com a designação na língua nacional, tal acarretaria a confusão e a falta de comunicação da paradigmática história bíblica da Torre de Babel. Parece-lhe um exagero? Não é. 

Repare neste único exemplo que, para entender bem o problema, teria que multiplicar por centenas de outras siglas da Bioquímica e Biologia Molecular. O exemplo que escolhi é o da sigla ATP porque muitos leitores também dela terão conhecimento. É utilizada para referir o trifosfato de adenosina, ela também uma molécula muito importante para a vida pois funciona como fonte de energia para a realização dos processos celulares, sendo a principal moeda de troca de energia das células. Se tivesse havido a tentação de arranjar uma sigla “adequada” ao nome em português, a tradução da sigla da palavra inglesa (adenosine triphosphate-ATP) teria passado a TFA. Se este exercício se estendesse a todas as palavras destas áreas científicas, tornar-se-ia impossível o fácil entendimento e comunicação entre a comunidade que nelas trabalha. Por essa razão é que a recomendação de siglas que possam ser usadas e compreendidas internacionalmente, pela parte de agências científicas internacionais credíveis, deve ser respeitada para facilitar a comunicação entre pares, até porque a sigla acaba por se tornar sinónimo do termo.

Chegados aqui, espero que o leitor já compreenda a razão pela qual entre professores universitários  e investigadores das referidas áreas se continue, no geral, a utilizar e a ensinar a sigla DNA. Na sociedade, contudo, a sigla ADN está instalada, extravasando o significado biológico. No artigo “Siglas: tendências firmadas ou modas passageiras?”, publicado no Boletim da língua portuguesa nas instituições europeias A folha, N.º 48, 2015 (2), Paulo Correia recomendava: “Quando se verificar o uso generalizado em Portugal da sigla inglesa, convirá evitar as siglas portuguesas mas quando o uso em Portugal vacilar entre as siglas inglesas e portuguesas, convirá, por questões de harmonização, optar pela sigla portuguesa”. E continuava, salientando que “esta harmonização é de uma importância fundamental para a coerência dos documentos publicados, com saudáveis consequências nas propostas das nossas memórias de tradução e consequente melhoria da coerência da tradução automática”. Um dos exemplos indicados era exatamente o DNA/ADN, sendo dada, pelas razões invocadas, preferência ao ADN. No geral, entendo a recomendação. Contudo, neste caso específico (ou em casos semelhantes), permito-me discordar da sua aplicação caso o contexto do seu uso seja o científico. De facto, não se trata de uma sigla de uma qualquer palavra em inglês, mas de uma sigla que tem um conteúdo científico, recomendada pela IUPAC-IUB.

Na conjuntura atual, julgo que resta aos académicos, investigadores e seus formandos, conviver, sem fundamentalismos nem desnecessários incómodos, com as duas siglas: DNA e ADN. Disso não virá mal ao mundo até porque este problema se encontra limitado a esta sigla científica que é também usada noutros contextos. Contudo, mantenhamos, sem hesitar, o uso de DNA para referir o Ácido DesoxirriboNucleico, e deixemos a sigla ADN para quando se pretender associar o DNA a partidos políticos, empresas e clubes de futebol, entre outras associações da prática discursiva social diária.

 

(1)https://iupac.qmul.ac.uk/misc/naabb.htm

(2) https://ec.europa.eu/translation/portuguese/magazine/documents/folha48_pt.pdf  

 

Professora Emérita do Instituto Superior Técnico da Universidade de Lisboa

Afinal é ADN ou DNA?


Se em cada país se resolvesse alterar as siglas de compostos bioquímicos para as compatibilizar com a designação na língua nacional, tal acarretaria a confusão e a falta de comunicação da paradigmática história bíblica da Torre de Babel.


A utilização da sigla ADN é muito frequente para afirmar o ADN de um clube de futebol, de um partido político, de uma empresa, de uma qualquer instituição ou grupo social. A sigla ADN faz, pois, hoje parte do léxico português e não só para referir a molécula de Ácido DesoxirriboNucleico da qual deriva. Este ácido nucleico celular contém a informação genética necessária para que uma pessoa e os outros seres vivos funcionem e se desenvolvam, sendo essa informação transmitida de uma geração para a seguinte. Visto ser essencial à vida e a marca distintiva de cada indivíduo, é compreensível esta apropriação do termo fora do seu contexto biológico. No entanto, há quem, com formação em Ciências da Vida e responsabilidades nesta área, utilize, por sistema, a sigla DNA, e não ADN. Julgo que o leitor já terá ficado intrigado com isso pelo que elegi esta duplicidade para tema do artigo. Ainda que possa parecer marginal quando o país acaba de sair de uma campanha eleitoral e conhecer o resultado das eleições, não é mais lateral do que o papel que foi reservado à ciência, tecnologia, e ensino superior na campanha eleitoral, apesar da sua centralidade para o futuro do país. 

Afinal, como se deve dizer: DNA o ADN? DNA é uma sigla que, de acordo com as recomendações da comissão para a nomenclatura em Bioquímica da IUPAC-IUB (International Union of Pure and Applied Chemistry-International Union of Biochemistry) para ácidos nucleicos, polinucleotídeos e seus constituintes (1) deve ser usada como abreviatura para o DeoxyriboNucleic Acid que, em português, é o ácido desoxirribonucleico, abreviado por ADN. Embora se tenha que reconhecer que não há, presentemente, riscos de confusão relativamente ao que significa ADN, caso todas as numerosíssimas siglas internacionalmente recomendadas em Bioquímica e Biologia Molecular fossem alteradas tendo em conta a designação da palavra em português, a confusão seria total e o diálogo com a comunidade científica internacional tornar-se-ia impossível. Aliás, se em cada país se resolvesse alterar as siglas de compostos bioquímicos para as compatibilizar com a designação na língua nacional, tal acarretaria a confusão e a falta de comunicação da paradigmática história bíblica da Torre de Babel. Parece-lhe um exagero? Não é. 

Repare neste único exemplo que, para entender bem o problema, teria que multiplicar por centenas de outras siglas da Bioquímica e Biologia Molecular. O exemplo que escolhi é o da sigla ATP porque muitos leitores também dela terão conhecimento. É utilizada para referir o trifosfato de adenosina, ela também uma molécula muito importante para a vida pois funciona como fonte de energia para a realização dos processos celulares, sendo a principal moeda de troca de energia das células. Se tivesse havido a tentação de arranjar uma sigla “adequada” ao nome em português, a tradução da sigla da palavra inglesa (adenosine triphosphate-ATP) teria passado a TFA. Se este exercício se estendesse a todas as palavras destas áreas científicas, tornar-se-ia impossível o fácil entendimento e comunicação entre a comunidade que nelas trabalha. Por essa razão é que a recomendação de siglas que possam ser usadas e compreendidas internacionalmente, pela parte de agências científicas internacionais credíveis, deve ser respeitada para facilitar a comunicação entre pares, até porque a sigla acaba por se tornar sinónimo do termo.

Chegados aqui, espero que o leitor já compreenda a razão pela qual entre professores universitários  e investigadores das referidas áreas se continue, no geral, a utilizar e a ensinar a sigla DNA. Na sociedade, contudo, a sigla ADN está instalada, extravasando o significado biológico. No artigo “Siglas: tendências firmadas ou modas passageiras?”, publicado no Boletim da língua portuguesa nas instituições europeias A folha, N.º 48, 2015 (2), Paulo Correia recomendava: “Quando se verificar o uso generalizado em Portugal da sigla inglesa, convirá evitar as siglas portuguesas mas quando o uso em Portugal vacilar entre as siglas inglesas e portuguesas, convirá, por questões de harmonização, optar pela sigla portuguesa”. E continuava, salientando que “esta harmonização é de uma importância fundamental para a coerência dos documentos publicados, com saudáveis consequências nas propostas das nossas memórias de tradução e consequente melhoria da coerência da tradução automática”. Um dos exemplos indicados era exatamente o DNA/ADN, sendo dada, pelas razões invocadas, preferência ao ADN. No geral, entendo a recomendação. Contudo, neste caso específico (ou em casos semelhantes), permito-me discordar da sua aplicação caso o contexto do seu uso seja o científico. De facto, não se trata de uma sigla de uma qualquer palavra em inglês, mas de uma sigla que tem um conteúdo científico, recomendada pela IUPAC-IUB.

Na conjuntura atual, julgo que resta aos académicos, investigadores e seus formandos, conviver, sem fundamentalismos nem desnecessários incómodos, com as duas siglas: DNA e ADN. Disso não virá mal ao mundo até porque este problema se encontra limitado a esta sigla científica que é também usada noutros contextos. Contudo, mantenhamos, sem hesitar, o uso de DNA para referir o Ácido DesoxirriboNucleico, e deixemos a sigla ADN para quando se pretender associar o DNA a partidos políticos, empresas e clubes de futebol, entre outras associações da prática discursiva social diária.

 

(1)https://iupac.qmul.ac.uk/misc/naabb.htm

(2) https://ec.europa.eu/translation/portuguese/magazine/documents/folha48_pt.pdf  

 

Professora Emérita do Instituto Superior Técnico da Universidade de Lisboa