«Já viste a maravilha deste quimono? Sente o cheiro», recomenda Albano Silva Pereira, enquanto desdobra um quimono negro como carvão como quem desembrulha um presente. «Sabes de que é que feito? De papel». A poucos dias da exposição abrir as portas ao público, é preciso acelerar a montagem. Mas ainda há tempo para um pequeno devaneio. O artista começa a vestir o quimono, e está no seu pleno direito – afinal a peça pertence-lhe. «Comprei-o há uns quinze ou vinte anos. Isto é uma coisa do outro mundo, das coisas mais bonitas que já vi na vida», comenta. «Como este já não se encontra. O papel tem uma preparação especial para a chuva, era para os caminheiros como o [Matsuo] Bashô».
Colecionador, artista, viajante
«primeiro aguaceiro de inverno – hoje
chamem-me viajante»,
escreveu o grande poeta japonês do século XVII num dos seus famosos haikus.
Também Albano Silva Pereira é um viajante e, à sua maneira, um poeta da imagem. Nascido há 73 anos na Beira, estudou em Coimbra e aos 19 anos rumou a Lisboa. Muito jovem trabalhou com o cineasta António-Pedro Vasconcelos e passou pelos Serviços Cartográficos do Exército. Em 1971 e 72 fez a tropa em Moçambique, onde lhe cabia a tarefa ingrata de fotografar os feridos, mas foi também aí que começou a fotografar em nome próprio, criando um portfolio fundador dedicado à Ilha de Moçambique.
De regresso a Portugal, tornou-se assistente – e «discípulo dilecto» – de Manoel de Oliveira, antes de se afastar do cinema.
Nas décadas de 1980 e 90 (a última edição foi em 2000) organizou em Coimbra os Encontros de Fotografia, que trouxeram pela primeira vez a Portugal exposições de nomes fundamentais desta disciplina, como August Sander, Jacques-Henri Lartigue, Alvarez Bravo, Araki e Robert Frank. Desde 2000 dirige o Centro de Artes Visuais, sediado no Pátio da Inquisição, também em Coimbra, funções que vai conciliando com a sua atividade artística e curatorial e com as suas viagens por paragens mais ou menos remotas, do Norte de África ao deserto do Atacama, do Arizona ao Japão.
Julião Sarmento descreveu-o assim em 2013: «O Albano é um indivíduo bipolar, social mas esquivo, que tão rapidamente está visível como desaparece como que por mágica para se perder entre o deserto do Arizona e as estepes do Sahara setentrional, colhendo cactos e recolhendo meteoritos, afiando facas e roubando a alma às pessoas que vai encontrando no caminho. Ele é como um repórter de guerra sem despojos. Por isso mesmo os diversos campos de batalha cria-os ele próprio, com imagens que se repetem, se reciclam, se transformam, se devoram e configuram inúmeras histórias diferentes».
O quimono de papel cor de carvão é apenas um entre as centenas de objetos da coleção particular que o artista foi reunindo ao longo das últimas décadas e de que agora revela uma pequena parte, sempre em diálogo com o seu próprio trabalho como fotógrafo e artista. Netsuke, que acaba de ser inaugurada no Pavilhão Branco do Palácio Pimenta – Museu de Lisboa (ao Campo Grande) constitui a sua primeira exposição individual desde a que dedicou ao seu amigo Robert Frank, na Galeria Appleton, em 2014. Embora seja maioritariamente constituída por objetos feitos por mãos alheias, funciona como um espelho multifacetado que reflete a personalidade, a história, a sensibilidade e as obsessões do autor. «É a minha exposição mais difícil, a maior loucura que eu já fiz até hoje», confessa-nos. Como diria o filósofo romano Séneca: «Nullum magnum ingenium sine mixtura dementiae fuit» – «não existe génio sem um toque de loucura».
No princípio era o cinema
«O meu fascínio pelo Japão começou, naturalmente, pelo cinema. Mizoguchi, Ozu, Kurosawa…, que vi no primeiro ciclo de cinema japonês na Gulbenkian, com o Oliveira ao meu lado a dormir. Para aí em 77, 78, ou coisa do género», recorda Albano Silva Pereira. Na black box instalada no rés-do-chão do Pavilhão Branco encontramos a sua homenagem ao cinema japonês com Ensaio sobre o filme Amantes Crucificados de Kenji Mizoguchi. «Isto é a pedra filosofal, a matriz da exposição», explica Albano. «É um trabalho de som e de montagem – com o engenheiro de som do Pedro Costa [Hugo Leitão] e o meu montador [Tomás Baltazar], dois génios que trabalham comigo em todos os filmes. A única coisa que fizemos foi diminuir o ritmo, para ser mais contemplativo e mais incisivo sobre o que é a estética do Mizoguchi numa cena crucial, a cena do suicídio».
Sigmund Freud contrapôs à pulsão de morte o instinto sexual ou de vida – mas nesta exposição sobre rituais a vida e a morte nunca andam muito afastadas. Recorrendo de novo às palavras de Matsuo Bashô:
«o cheiro insuportável
nasce na mesma colina
onde florescem ameixieiras».
Ali ao lado da cena do suicídio de Os Amantes Crucificados, encontramos uma mota com destroços espalhados pelo chão. O artista, que tem viajado por alguns dos locais mais inóspitos do mundo, em 2020 por pouco não perdeu a vida «num acidente relativamente estúpido». «Fiquei encandeado com o sol, entrei pela portagem adentro. Andei vinte metros no ar. Vinte. E a mota andou 200 até parar. Desfiz a cara». O capacete ainda exibe manchas de sangue seco. Sobre a mota – uma Honda CBR 900, a primeira a chegar a Portugal – acrescenta: «Faz parte dos meus rituais de morte. Aquilo é uma lâmina. Se você não tiver juízo, ou se parte todo ou morre», continua. «Tem um equilíbrio perfeito entre a velocidade e a capacidade de travagem, a levitação… É um objeto com o qual eu vivi momentos bons e momentos maus, a maior parte bons, felizmente. Há muito poucas como esta, com 78 mil quilómetros. Ia para Madrid sempre acima dos 240. É a minha dama… eu diria que é a minha puta», assume com um sorriso.
Ao lado, numa associação feliz e imediata, exibe-se um rolo de papel de arroz com mais de três metros onde surge representado um cavalo. Nas paredes, vemos um auto-retrato feito no hospital – intitulado Still Alive –, retratos de «Yamamoto, minha musa e minha grande amiga», e um bonsai. «É um olmo, tem cerca de 150 anos». A presença da pequena mas extraordinária árvore assimétrica poderia relacionar-se com a mota através de um velho provérbio inglês: ‘Elm hateth man and waiteth’, ‘o olmo odeia o homem e espera por ele’ – afinal, era desta madeira que se faziam os caixões.
‘Não há nada que pese’
Subindo ao primeiro piso, encontramos «a vertente mais museológica» da exposição. «Em 1985 fui estudar para Berlim. Já havia algumas galerias na Alemanha e aproximei-me também dos bonsais e dos suisekis, as esculturas em pedra. Fui a Heidelberg a um dos maiores viveiros de bonsais, uma coisa imensa, e deitei a roupa toda fora para comprar vasos. Em vez da roupa, trazia as malas cheias de vasos. Foi a minha primeira aventura, o primeiro fascínio. E comecei a ler, descobri o Bashô, o Mishima e mais recentemente o Murakami». Numa galeria de Berlim adquiriu «um ukiyo-e [nome com que os japoneses designavam as suas estampas, e que significa ‘mundo flutuante’] muito bom. Fiquei logo siderado», revela.
«Depois comecei a comprar aos poucos. Todas as semanas comprava uma peça, e quando já conhecia os dealers fui negociando, fui pagando a prestações. Alguns são amigos, como o Jean-Michel Huguenin», o galerista parisiense que fornecia peças ao Musée de l’Homme. «A única peça dele nesta exposição é o aparador do Nuristão, que eu fui recheando».
Repleto de objetos e imagens de proveniências díspares, esta obra singular recupera a lógica das câmaras de maravilhas e gabinetes de curiosidades do Renascimento. «É o meu tesouro, o meu altar do Breton», refere Albano, numa alusão ao Mural em que o poeta surrealista reuniu objetos como um osso de baleia trabalhado, um amuleto egípcio, uma pintura de Miró, artefactos índios ou seixos do rio.
Ainda estamos em fase de montagem, e os objetos encontram-se literalmente ao alcance da mão. «Os colecionadores são pessoas com instinto táctil», escreveu Walter Benjamin, numa passagem apropriadamente citada por Mariana Gaspar num texto sobre esta exposição. Continuava o filósofo alemão: «basta que se acompanhe um colecionador que manuseia os objectos da sua vitrine. Mal lhes pega, e já parece ser inspirado por eles […] ou, como um mágico, através deles olhar para a distância de onde vieram».
Numa vitrina ao centro da sala, dados de jogar polidos pelo uso coabitam harmoniosamente com uma gaiola para grilos, cachimbos, tecidos, uma garrafinha para perfume, numa teia de afinidades secretas. O requinte e a delicadeza são uma marca distintiva da cultura japonesa. Assim como uma proverbial aversão pelo espalhafato. «Não nos desagrada tudo o que brilha, mas preferimos um lustre introspetivo a um brilho superficial, uma luz turva que, seja numa pedra ou num artefacto, revela um brilho de antiguidade», escreveu Junichiro Tanizaki no clássico Elogio da Sombra. «Amamos coisas que trazem marcas de sujidade, de fuligem e do clima, e amamos as cores e o brilho que evocam o passado que as criou».
E depois, claro, há os netsuke.
Samurais e talismãs
«Embora as mangas do quimono pudessem ser usadas para guardar pequenos itens, os homens ou samurais que usavam o quimono precisavam de recipientes para guardar pertences pessoais, como cachimbos, tabaco, dinheiro e selos, que eram pendurados por cordas, adornadas com contas, nas faixas das vestes», explica a curadora Sara Antónia Matos no texto da folha de sala. «Qualquer que fosse o formato do recipiente, o fecho que prendia o cordão ao topo da faixa era um objecto entalhado em forma de botão chamado netsuke. O netsuke evoluiu ao longo do tempo, deixando de ser estritamente utilitário para se tornar um objecto artístico sofisticado e um talismã em si mesmo. Ora, nesta colecção e nesta exposição há mais que um netsuke, podendo dizer-se que este objecto condensa o cerne do projecto. Simbolicamente, ele guarda o segredo – e o destino – de uma civilização de guerreiros, samurais, altamente avançada, disciplinada e amante da precisão, mas que paradoxalmente se revestia de objectos da sorte e talismãs de protecção».
«O que é espantoso», corrobora Albano, «é que estes tipos eram guerreiros violentos, implacáveis, e depois usavam estes amuletos», cheios de humor e ironia. «Segure aqui. A arquitetura do Japão está na sua mão. O netsuke condensa toda a história, toda a cultura do Japão, a arquitetura, tudo!».
Nesta visita guiada há outras paragens obrigatórias em que Albano nos convida a segurar uma ou outra peça da sua coleção. De preferência «com as duas mãos» tais os valores astronómicos que atingem alguns objetos. «Isto é um gato a fazer o pino. Do século XVIII! Repare, tem três assinaturas. Os maiores artistas contemporâneos japoneses [nomeadamente Takashi Murakami e Yayoi Kusama] fazem tudo à volta disto».
Segue-se uma rara e antiquíssima taça de chá. «Eu gostava que as pessoas mexessem nas coisas, mas não é possível. Isto é o suprassumo da cerâmica. Restaurada a ouro. Já viu a leveza? Não dá para acreditar, pois não? Uma particularidade extraordinária da cultura japonesa é que não há nada que pese. Nem as casas. A única exceção é a catana».
O mesmo princípio de leveza aplica-se a uma máscara Nô. «Esta é das máscaras mais extraordinárias que eu já vi. Estás a ver a qualidade? É daquelas que levas seis meses para comprar. Isto já não há, a não ser em galeristas muito sofisticados, e custam uma fortuna».
Uma lição de erotismo
Por contraste com os rituais de morte celebrados no rés-do-chão, falar dos rituais do saké ou do chá é falar de rituais de prazer e de vida. A faceta epicurista e de bon vivant de Albano Silva Pereira manifesta-se inequivocamente nos objetos expostos nas paredes e nas vitrinas, mas muito especialmente no último núcleo da exposição, dedicado às gueixas, ao sexo e ao erotismo.
O artista coloca um par de falos de madeira de grandes dimensões na sua posição definitiva. «Isto veio de templos de fertilidade. Em África é a mesma coisa. Tenho uma peça Dogon em minha casa, que comprei há 20 ou 30 anos, uma porta de celeiro com umas enormes mamas representadas».
Além das esculturas, vemos delicadas gravuras, uma das quais ainda mais ousada do que A Origem do Mundo, a célebre representação da púbis de uma mulher pintada por Courbet em 1866 e que pertenceu ao psicanalista Jacques Lacan, que a tinha por trás de uma cortina. Conhecidas por shunga, estas gravuras foram sempre objeto de curiosidade e de desejo no Ocidente, tendo-se no entanto tornado ainda mais cobiçadas desde a exposição Shunga: Sex and Pleasure in Japanese Art, em 2013, a mais explícita que o Museu Britânico alguma vez apresentou.
«São imagens lindas… Eles desfaziam os livros para venderem as gravuras», comenta Albano Silva Pereira. «Costumava comprar isto a 200, 300 libras, 500 no máximo. Depois da exposição tornaram-se inacessíveis». Entre as gravuras que trouxe ao Pavilhão Branco, há uma do século XVIII que representa uma orgia meticulosamente encenada. «Isto é um Matisse autêntico. É uma lição de erotismo, mas também uma lição de desenho e de cor». Agora aprenda quem quiser – a exposição Netsuke está aberta até 31 de março e a entrada é livre.