Pela segunda vez, em pouco mais de um ano, os chilenos foram chamados às urnas para escolher entre a manutenção ou a mudança da Constituição em vigor, e pela segunda vez rejeitaram a alteração. O documento que remonta ao período ditatorial de Augusto Pinochet, ainda que com as transformações necessárias inerentes à transição democrática, mantém-se vivo, num período em que a polarização do povo chileno se faz sentir de forma acentuada.
A proposta que foi apresentada a sufrágio universal no passado dia 17 foi redigida pelo Conselho Constitucional, no qual as forças conservadoras são mais preponderantes, e foi rejeitada por cerca de 56% dos chilenos votantes, curiosamente a mesma percentagem com que Gabriel Boric foi eleito Presidente em 2021. No referendo de 2022, que apresentava uma Constituição de índole progressista, o ‘rejeito’ venceu com uns contundentes 61,8%.
A imigração, as parcerias público-privadas na saúde, a liberdade de escolha no ensino, a paridade de género no acesso a cargos políticos e o aumento de restrições no processo do aborto foram os temas da nova carta constitucional que provocaram os debates mais acesos.
O problema da polarização
A rejeição de duas propostas de alteração à Constituição no período de pouco mais de um ano é o reflexo da polarização política que tem minado a sociedade chilena. Com os resultados da mais recente consulta popular, ficou claro que nem a esquerda nem a direita conseguem persuadir o povo do Chile a escolher um lado no debate constitucional.
A polarização pode ser explicada por vários fatores: primeiro, a radicalização da esquerda –provocando o famoso estallido, uma onda de protestos e distúrbios em 2019 –, que se afastou da social-democracia que a caracterizava e, numa segunda instância, a estagnação económica da qual o país tem sido vítima nos últimos anos. A não aprovação da nova proposta tem sido considerada uma vitória para o Presidente, de esquerda, ainda que tenha mantido a neutralidade em todo o processo. Mas o chefe do Executivo perdeu em 2022 com a rejeição de uma Constituição progressista, e este resultado de 2023 pode considerar-se mais um alívio do que realmente uma vitória. A neutralidade de Boric pode também ser explicada pelo dilema apresentado à esquerda antes do referendo: votar a favor de uma Constituição conservadora ou manter o texto constitucional, ainda que modificado, da era Pinochet?
Novo referendo fora de questão, por agora
Pelas declarações do Presidente chileno, fica claro que um novo processo constitucional não estará para breve. "No nosso mandato, o processo constitucional está encerrado", disse Gabriel Boric, que acrescentou ainda que "o país se polarizou e dividiu, e com este contundente resultado, o processo constitucional não conseguiu canalizar as esperanças de ter uma nova Constituição redigida para todos". Também o líder da União Democrática Independente, Javier Macaya, que apoiou a nova Constituição, constatou que «[os chilenos] não querem uma mudança constitucional.».
Já Álvaro Vargas Llosa, intelectual e analista político peruano que acredita que a nova Constituição poderia trazer benefícios, mostrou-se mais cético, garantindo que, "ainda que as partes se tenham comprometido a não insistir por agora com mudanças maiores, basta observar a sociedade chilena para perceber que a realidade é que voltarão à carga mais cedo ou mais tarde".
Ainda assim, o filho do Nobel da Literatura Mario Vargas Llosa não acredita que outra proposta esteja para breve. "Agora, de todas as formas, isso vai demorar, porque creio que há uma fadiga na sociedade chilena e os líderes políticos certamente estão cientes disso", concluiu, numa entrevista ao diário chileno El Mercurio.#Boric promete focar-se nos problemas que realmente impactam o dia a dia dos chilenos, que estão claramente divididos e vivem momentos de incerteza, tanto a nível social como económico.