Justiça: Um ensaio sobre a surdez


De repente, todos – ou quase – fecharam-se ao som das palavras dos que, ainda assim, tentam explicar o mundo e, consequentemente, não desistem, também, de procurar melhorá-lo para que nele possamos todos viver melhor.


Não sei o que, se ele fosse vivo, pensaria Saramago dos dias de hoje.

Nem sei se, ante eles, teria, ou não escrito um novo livro – por exemplo, um ensaio sobre a surdez – ou se consideraria não valer a pena, uma vez que tudo o que havia escrito vaticinava já este tempo que, tristemente, vamos vivendo.

Na verdade, os dias de hoje caracterizam-se por uma enorme, geral e voluntária surdez sobre tudo o que de racional é dito para explicar o modo como o mundo, o nosso mundo, funciona e se deteriora moral e fisicamente.

Parece que, de repente, todos – ou quase – se fecharam ao som das palavras dos que, ainda assim, tentam explicar o mundo e, consequentemente, não desistem, também, de procurar melhorá-lo, para que nele todos possamos viver melhor.

Contrariando o panorama vigente, concordei em participar, há dias, num interessante debate sobre a Justiça, que reuniu, presencialmente, pessoas cultas e de várias formações, algumas mesmo eloquentes e todas com acesso fácil e criterioso a informação credível.

Infelizmente, são ainda poucos – e, como eu, talvez já demasiado idosos – os que têm e conservam tais capacidades e, além disso, se interessam ainda por, numa noite de inverno, participar numa discussão coletiva presencial sobre os problemas político-sociais do mundo e do país.

Era objetivo de tal debate dar a conhecer a origem dos problemas que, objetivamente, a Justiça vai revelando e que, por norma, se situam, ocultos, para além das luzes enganadoras e a imagem desfocada que os ecrãs dos computadores e das televisões dela insistem em dar-nos.

Dada a minha profissão, foi-me pedido que procurasse dar uma perspetiva ampla e coerente do que entendia serem as questões que atrapalham o funcionamento da Justiça penal e que procurasse explicar, a essa luz, os acontecimentos recentes que, aparentemente, a levaram a um confronto, direto e voluntário, com os órgãos do poder político democrático.

Aceitei fazê-lo, pois acredito que é tempo de que se façam ouvir – mesmo que com elas se não concorde – todas as vozes dos que, na magistratura ou fora dela, estão deveras preocupados com o atual estado das coisas na área da Justiça.

Quem não deve, não teme.

Muitas pessoas, mesmo as mais preparadas, vivem – sem disso se darem conta – inspiradas, apenas, no repetitivo e mistificador discurso político e mediático que, quotidianamente, é feito e difundido sobre o tema.

Muitos são, também, os que vão aos saldos e adquirem, sem nada regatear, a verdade que consideram mais confortável e conveniente; a verdade que julgam melhor poder servir a ideia que, antecipadamente, formularam sobre a Justiça.

É a opinião deles – sentenciam – sem atentar em quem, na verdade, lhes elaborou e ofereceu tal opinião, que, candidamente, pensam ter formado por si próprios.

Procurei, então, consultar textos antigos, uns apontamentos meus e artigos e ensaios de alguns prestigiados autores, que me ajudassem a revelar e a esclarecer o auditório dos problemas, que muitos julgam atuais, mas que, de facto, estavam já, faz tempo, diagnosticados.

Com efeito, várias das abordagens atuais sobre a Justiça e os seus problemas limitam-se, mesmo que inconscientemente, a repetir, a propósito de certos casos mais mediáticos, ideias requentadas sobre teorias muito imaginosas e absurdamente conspirativas.

Houvesse espaço, e poderia fazer uma lista de tais sempre convenientes inventonas.

A oportuna evocação pública de tais opiniões conspirativas ergue-se, sabe-se lá como, a partir de um novelo emaranhado de ditos que, em rigor, ninguém consegue descortinar onde começaram, quem foi o seu genitor e, acima de tudo, a quem aproveitam.

A discussão aberta e interessada em que, com gosto e proveito, aceitei participar reservou-me, valha a verdade, várias surpresas.

De um lado – a surpresa mais agradável – a disponibilidade de quase todos os presentes para, durante toda uma noite, ouvir, refletir e questionar frontalmente e com acuidade os diferentes e, por vezes, contraditórios, pontos de vista, que eu procurei enunciar sobre o tema, para que a discussão pudesse, tanto quanto possível, ser, de facto, abrangente e esclarecedora.

De outro – a mais inesperada – o facto de, depois de um debate tão interessante e, em alguns passos, mesmo profundo, as conclusões a que todos fomos chegando de pouco terem adiantado a quem apenas queria, apesar delas, legitimar as ideias feitas que já tinha sobre a matéria.

Razão, sentimentos e filiações dificilmente se conjugam, na realidade, para esclarecer a verdade.

Li, na verdade, já depois de tal sessão, um artigo genuinamente indignado que um dos mais entusiastas impulsionadores e participantes na discussão escreveu e publicou num jornal diário sobre o tema.

Contudo, pouco parece ter integrado, creio, do que de mais importante e esclarecedor foi dito e discutido por todos em tal sessão.

Não que seja ilegítimo assim proceder: como disse, a discussão sobre a Justiça urge e deve ser tão livre quanto o possível.

Todavia, neste caso, dadas as circunstâncias, impunha-se, porventura, uma justificação sobre a razão de ser da alienação, por parte do autor do artigo, de toda a informação coligida e analisada no debate: nem que fosse para rebatê-la.

O alheamento solipsista permite-nos, porém, ignorar ou justificar alguns comportamentos que nos custam a aceitar, sobretudo quando estes provêm dos que nos são afetos.

Compreende-se!

Daí os ouvidos moucos que, não raro, fazemos ante tais procedimentos e, principalmente, ante as críticas – políticas, morais e judiciais – que lhes são dirigidas.

A nossa Justiça, como a de muitos outros países, comete, sem dúvida, por vezes, erros de leitura da realidade, que têm consequências políticas e sociais graves (convém, contudo, recordar que, quando corretas, tais leituras podem, também, provocar, exatamente, os mesmos efeitos).

Por tal razão, a ela carece, com urgência – designadamente no que ao exercício das funções do MP diz respeito – de uma reciclagem e reorganização dos seus recursos humanos mais experientes e que, desnecessariamente, estão reconduzidos a desempenhar, hoje-em-dia, sobretudo, funções de pura intendência.

Necessita, igualmente, de uma renovada formação jurídica, cultural e política dos magistrados, principalmente dos mais jovens e, precisamente, porque o são.

No que ao Direito diz respeito, tal formação deve incidir, especialmente, na ponderação e na exigência prática da valoração das garantias individuais na fase da investigação, fase processual em que estas estão, naturalmente, mais expostas e desprotegidas.

O Direito constitucional e o europeu – que já vigora entre nós – assim o exigem.

Por outro lado, importa recordar que os juízes e procuradores – que, constitucionalmente, devem agir com objetividade, independência e de acordo com o princípio da legalidade – não participam, nem, de qualquer modo, devem participar nos processos em «lutas» contra qualquer tipo de crimes e criminosos.

Devem sim, limitar-se a procurar a verdade, seja ela qual for, e, de acordo com a mesma, permitir aos juízes do julgamento, punir, quando se impõe, os responsáveis pelos crimes praticados.

A política criminal não é vertível, em concreto, para uma determinada ação penal já em curso.

A verdade que a Justiça deve fixar é, assim, afinal, um diamante já bem lapidado e não uma pedra bruta, que outros, como por exemplo as polícias, podem, legitimamente, exibir, para, em tempo certo, justificar ante a sociedade, a função de prevenção do crime e afirmação da paz pública, que, primordialmente, lhes compete assegurar.

É, por isso, necessário explicar – sobretudo no debate público – como, no essencial, a Justiça, realmente, funciona e, melhor, poderia funcionar.

Isto, antes que alguns, mesmo aqueles que dispõem de uma cultura mais sólida e abrangente, emitam os agora muito frequentes juízos do tipo: «eu disso não sei nada, mas acho que …».

Disse-o já, com razão e o seu peculiar humor, Orlando Afonso, um antigo presidente da Associação dos Juízes portugueses.

A surdez, ante a vozearia do mundo, designadamente a autoprovocada pelos nossos gritos mais estridentes, pode tranquilizar-nos e às as nossas consciências, mas não consegue ocultar a realidade a que outros, quando realmente querem, conseguem, mesmo assim, aceder.

Nada os impede, portanto, para nossa vergonha, de dizerem que o rei vai nu.

Justiça: Um ensaio sobre a surdez


De repente, todos - ou quase – fecharam-se ao som das palavras dos que, ainda assim, tentam explicar o mundo e, consequentemente, não desistem, também, de procurar melhorá-lo para que nele possamos todos viver melhor.


Não sei o que, se ele fosse vivo, pensaria Saramago dos dias de hoje.

Nem sei se, ante eles, teria, ou não escrito um novo livro – por exemplo, um ensaio sobre a surdez – ou se consideraria não valer a pena, uma vez que tudo o que havia escrito vaticinava já este tempo que, tristemente, vamos vivendo.

Na verdade, os dias de hoje caracterizam-se por uma enorme, geral e voluntária surdez sobre tudo o que de racional é dito para explicar o modo como o mundo, o nosso mundo, funciona e se deteriora moral e fisicamente.

Parece que, de repente, todos – ou quase – se fecharam ao som das palavras dos que, ainda assim, tentam explicar o mundo e, consequentemente, não desistem, também, de procurar melhorá-lo, para que nele todos possamos viver melhor.

Contrariando o panorama vigente, concordei em participar, há dias, num interessante debate sobre a Justiça, que reuniu, presencialmente, pessoas cultas e de várias formações, algumas mesmo eloquentes e todas com acesso fácil e criterioso a informação credível.

Infelizmente, são ainda poucos – e, como eu, talvez já demasiado idosos – os que têm e conservam tais capacidades e, além disso, se interessam ainda por, numa noite de inverno, participar numa discussão coletiva presencial sobre os problemas político-sociais do mundo e do país.

Era objetivo de tal debate dar a conhecer a origem dos problemas que, objetivamente, a Justiça vai revelando e que, por norma, se situam, ocultos, para além das luzes enganadoras e a imagem desfocada que os ecrãs dos computadores e das televisões dela insistem em dar-nos.

Dada a minha profissão, foi-me pedido que procurasse dar uma perspetiva ampla e coerente do que entendia serem as questões que atrapalham o funcionamento da Justiça penal e que procurasse explicar, a essa luz, os acontecimentos recentes que, aparentemente, a levaram a um confronto, direto e voluntário, com os órgãos do poder político democrático.

Aceitei fazê-lo, pois acredito que é tempo de que se façam ouvir – mesmo que com elas se não concorde – todas as vozes dos que, na magistratura ou fora dela, estão deveras preocupados com o atual estado das coisas na área da Justiça.

Quem não deve, não teme.

Muitas pessoas, mesmo as mais preparadas, vivem – sem disso se darem conta – inspiradas, apenas, no repetitivo e mistificador discurso político e mediático que, quotidianamente, é feito e difundido sobre o tema.

Muitos são, também, os que vão aos saldos e adquirem, sem nada regatear, a verdade que consideram mais confortável e conveniente; a verdade que julgam melhor poder servir a ideia que, antecipadamente, formularam sobre a Justiça.

É a opinião deles – sentenciam – sem atentar em quem, na verdade, lhes elaborou e ofereceu tal opinião, que, candidamente, pensam ter formado por si próprios.

Procurei, então, consultar textos antigos, uns apontamentos meus e artigos e ensaios de alguns prestigiados autores, que me ajudassem a revelar e a esclarecer o auditório dos problemas, que muitos julgam atuais, mas que, de facto, estavam já, faz tempo, diagnosticados.

Com efeito, várias das abordagens atuais sobre a Justiça e os seus problemas limitam-se, mesmo que inconscientemente, a repetir, a propósito de certos casos mais mediáticos, ideias requentadas sobre teorias muito imaginosas e absurdamente conspirativas.

Houvesse espaço, e poderia fazer uma lista de tais sempre convenientes inventonas.

A oportuna evocação pública de tais opiniões conspirativas ergue-se, sabe-se lá como, a partir de um novelo emaranhado de ditos que, em rigor, ninguém consegue descortinar onde começaram, quem foi o seu genitor e, acima de tudo, a quem aproveitam.

A discussão aberta e interessada em que, com gosto e proveito, aceitei participar reservou-me, valha a verdade, várias surpresas.

De um lado – a surpresa mais agradável – a disponibilidade de quase todos os presentes para, durante toda uma noite, ouvir, refletir e questionar frontalmente e com acuidade os diferentes e, por vezes, contraditórios, pontos de vista, que eu procurei enunciar sobre o tema, para que a discussão pudesse, tanto quanto possível, ser, de facto, abrangente e esclarecedora.

De outro – a mais inesperada – o facto de, depois de um debate tão interessante e, em alguns passos, mesmo profundo, as conclusões a que todos fomos chegando de pouco terem adiantado a quem apenas queria, apesar delas, legitimar as ideias feitas que já tinha sobre a matéria.

Razão, sentimentos e filiações dificilmente se conjugam, na realidade, para esclarecer a verdade.

Li, na verdade, já depois de tal sessão, um artigo genuinamente indignado que um dos mais entusiastas impulsionadores e participantes na discussão escreveu e publicou num jornal diário sobre o tema.

Contudo, pouco parece ter integrado, creio, do que de mais importante e esclarecedor foi dito e discutido por todos em tal sessão.

Não que seja ilegítimo assim proceder: como disse, a discussão sobre a Justiça urge e deve ser tão livre quanto o possível.

Todavia, neste caso, dadas as circunstâncias, impunha-se, porventura, uma justificação sobre a razão de ser da alienação, por parte do autor do artigo, de toda a informação coligida e analisada no debate: nem que fosse para rebatê-la.

O alheamento solipsista permite-nos, porém, ignorar ou justificar alguns comportamentos que nos custam a aceitar, sobretudo quando estes provêm dos que nos são afetos.

Compreende-se!

Daí os ouvidos moucos que, não raro, fazemos ante tais procedimentos e, principalmente, ante as críticas – políticas, morais e judiciais – que lhes são dirigidas.

A nossa Justiça, como a de muitos outros países, comete, sem dúvida, por vezes, erros de leitura da realidade, que têm consequências políticas e sociais graves (convém, contudo, recordar que, quando corretas, tais leituras podem, também, provocar, exatamente, os mesmos efeitos).

Por tal razão, a ela carece, com urgência – designadamente no que ao exercício das funções do MP diz respeito – de uma reciclagem e reorganização dos seus recursos humanos mais experientes e que, desnecessariamente, estão reconduzidos a desempenhar, hoje-em-dia, sobretudo, funções de pura intendência.

Necessita, igualmente, de uma renovada formação jurídica, cultural e política dos magistrados, principalmente dos mais jovens e, precisamente, porque o são.

No que ao Direito diz respeito, tal formação deve incidir, especialmente, na ponderação e na exigência prática da valoração das garantias individuais na fase da investigação, fase processual em que estas estão, naturalmente, mais expostas e desprotegidas.

O Direito constitucional e o europeu – que já vigora entre nós – assim o exigem.

Por outro lado, importa recordar que os juízes e procuradores – que, constitucionalmente, devem agir com objetividade, independência e de acordo com o princípio da legalidade – não participam, nem, de qualquer modo, devem participar nos processos em «lutas» contra qualquer tipo de crimes e criminosos.

Devem sim, limitar-se a procurar a verdade, seja ela qual for, e, de acordo com a mesma, permitir aos juízes do julgamento, punir, quando se impõe, os responsáveis pelos crimes praticados.

A política criminal não é vertível, em concreto, para uma determinada ação penal já em curso.

A verdade que a Justiça deve fixar é, assim, afinal, um diamante já bem lapidado e não uma pedra bruta, que outros, como por exemplo as polícias, podem, legitimamente, exibir, para, em tempo certo, justificar ante a sociedade, a função de prevenção do crime e afirmação da paz pública, que, primordialmente, lhes compete assegurar.

É, por isso, necessário explicar – sobretudo no debate público – como, no essencial, a Justiça, realmente, funciona e, melhor, poderia funcionar.

Isto, antes que alguns, mesmo aqueles que dispõem de uma cultura mais sólida e abrangente, emitam os agora muito frequentes juízos do tipo: «eu disso não sei nada, mas acho que …».

Disse-o já, com razão e o seu peculiar humor, Orlando Afonso, um antigo presidente da Associação dos Juízes portugueses.

A surdez, ante a vozearia do mundo, designadamente a autoprovocada pelos nossos gritos mais estridentes, pode tranquilizar-nos e às as nossas consciências, mas não consegue ocultar a realidade a que outros, quando realmente querem, conseguem, mesmo assim, aceder.

Nada os impede, portanto, para nossa vergonha, de dizerem que o rei vai nu.