António Félix da Costa. “Não gosto de ser apenas mais um”

António Félix da Costa. “Não gosto de ser apenas mais um”


António Félix da Costa é um piloto extremamente rápido e consistente, capaz de ganhar corridas com qualquer carro e em qualquer pista. Foi assim que venceu dois títulos mundiais em diferentes categorias, algo que só está ao alcance dos fora de série.


por João Sena

Começou a correr de karting por influência dos irmãos e do pai. Na primeira corrida, em 2000, ficou em último lugar, ainda assim um familiar ofereceu-lhe uma taça que guarda com grande carinho. Tomou o gosto pelos troféus e, aos 32 anos, António Félix da Costa é o piloto português com melhor palmarés internacional. Conversámos com o piloto de Cascais a seguir às férias, e poucos dias antes de viajar para o Japão, onde vai disputar as 6 Horas de Fuji, penúltima prova do Campeonato do Mundo de Resistência. Ao longo da conversa, abordou a mudança de equipa, a Fórmula 1 atual e o pior momento da sua carreira.

Como são as férias de um piloto profissional que passa o ano a viajar? São idênticas às de qualquer outra pessoa. Estive com a família e amigos e depois fui uma semana para as Maldivas fazer surf, é uma viagem que faço há seis anos. A forma como a época está a decorrer é que pode ter alguma influência. Já fui de férias a seguir a ser campeão do mundo e, nessa altura, pensei que merecia esse descanso, mas também já estive de férias depois de épocas más e sentia que não devia estar de férias. É uma atitude errada, o meu psicólogo de desporto diz-me para desligar e aproveitar, porque é a única maneira que tenho de recuperar forças e energia.

As Maldivas são o destino de eleição? É um local lindíssimo, tem excelentes ondas, mas faz-se pouco. Mesmo de férias, tenho de estar ativo, não consigo estar uma semana só a apanhar sol. Passava seis horas por dia a surfar e queimava 4000 calorias, quase tantas como em metade das 24 Horas Le Mans, foi a maneira de acordar o corpo. Mas também gosto muito de fazer férias em grandes cidades como Los Angeles ou Nova Iorque.

As férias são, por vezes, aproveitadas para fazer um balanço. Pensou no modo como tem decorrido a época? Odeio que as coisas me corram mal, não gosto de ser apenas mais um. Só que os campeonatos onde participo são extremamente competitivos, e se não estiver na perfeição em todos os aspetos torna-se difícil obter os resultados, foi isso que aconteceu este ano. Tive algumas corridas boas, mas no geral foi um ano mediano. 

Está a disputar o Campeonato do Mundo de Fórmula E e o Mundial de Resistência. Consegue ter tempo para a vida pessoal? Sou piloto profissional, há dez anos que faço dois ou três programas em simultâneo, e adoro o que faço, se puder fazer corridas todos os fins de semana seria ótimo. Mas é verdade que se torna difícil ter uma vida para além das corridas porque passo muito tempo fora de casa. Gostava de ter mais tempo para a minha família, para a namorada, às vezes falto ao aniversário de familiares e a casamentos de amigos. Daqui a 30 anos, quando olhar para trás, acredito que vou dizer que o sacrifício compensou.

A entrada na equipa oficial da Porsche foi o concretizar de um sonho. Foi mais difícil do que esperava? Chegar a uma equipa nova exige um período de habituação às pessoas e ao modo de trabalhar. Podia ter feito algumas coisas de maneira diferente na Fórmula E. A Porsche trabalha de uma maneira distinta, a linguagem que se usa para afinar o carro é diferente do que acontecia na DS. Tive apenas três dias de testes antes de começar a época e não deu para aprender tudo. Depois, estar numa equipa alemã, com um colega alemão, não é fácil, há muita politiquice pelo meio. Não basta chegar lá, colocar o capacete e acelerar. É importante ter uma visão periférica e plantar “sementes” para cobrir todas as áreas. 

Há alguma frustração? Não, até porque considero que foi das minhas melhores épocas em corrida, o problema é que muitas vezes não consegui a melhor afinação para ser rápido na qualificação e tinha de arrancar de lugares secundários, mesmo assim terminei quase todas as corridas no top 5. Se recuperar o segundo lugar de Londres [a Porsche recorreu da penalização] termino o campeonato em quinto lugar. Não foi um ano espetacular, mas sei que há potencial para melhorar muito no próximo ano.

Como é o dia a dia num fim de semana de corridas? Na Fórmula E é complicadíssimo. Começo o dia às 6h30 com a reunião de equipa, os primeiros treinos são uma hora depois e a corrida às quatro da tarde. Depois tenho as entrevistas com a imprensa e, no final do dia, o defrief com a equipa. Há eventos com duas corridas, o que quer dizer que o programa se repete no sábado e domingo. No final há sempre a after party de que gosto bastante, mas muitas vezes estou completamente estoirado.

Como é que um piloto se prepara fisicamente para uma temporada tão desgastante? Durante a semana trabalho a força física, a endurance e a mobilidade. Faço também muita fisioterapia para recuperação. A parte psicológica é também muito importante. Trabalho com um psicólogo de desporto que tem sido muito importante para ajudar a lidar com corridas difíceis, na relação com os engenheiros e como dar a volta a um fim de semana mau.

Muitos pilotos são supersticiosos, também é? Não. Tenho algumas rotinas antes de entrar no carro, como fazer alongamentos, e a única coisa que sempre faço é entrar pelo lado esquerdo, mas não é por nada de especial, mas faz-me confusão entrar pelo lado direito, até porque no DTM e agora no Hypercar tenho de entrar obrigatoriamente pelo lado esquerdo.

Quais são as maiores dificuldades em disputar duas competições no mesmo ano? Além de conduzir dois carros completamente diferentes, há também muita informação que tenho de aprender, assimilar e dominar ao mesmo tempo.

Que ensinamentos tirou? Tenho de criar a minha caixa de ‘ferramentas’ para poder atuar melhor e mais rapidamente nas qualificações e corridas.

A época ficou também marcada por um acidente assustador. O que passa pela cabeça de um piloto numa situação dessas? Fechei os olhos e pensei: desta vez, vou-me magoar a sério. Atingi um nível de adrenalina que nunca tinha alcançado antes. A minha sorte é o carro ter Halo [sistema para proteção da cabeça do piloto]. Quando regressei à boxe a primeira coisa que fiz foi rezar um Pai Nosso. O acidente em Roma foi assustador, saí da curva a 220 km/h e apanho um piloto parado à minha frente, desviei-me para não lhe acertar e ao mesmo tempo levo com outro carro em cima. Embora as corridas sejam muito mais seguras depois do acidente do Ayrton Senna, o perigo existe e perdi alguns amigos em pista nos últimos anos.

Depois desse violento acidente como foi voltar à pista? Foi uma reação natural. Lembrei-me da lição que tinha aprendido com os pilotos de motos em Macau. Há acidentes mortais no treino da manhã e à tarde colocam o capacete e vão correr. O desporto motorizado tem riscos e temos consciência disso. Agora, reconheço que não tenho a mesma coragem que tinha com 16 anos, não vou a 200 km/h na reta a “assustar” outro piloto, estou noutro nível de maturidade, e vejo isso como uma coisa positiva.

António Félix da Costa participa também no Campeonato do Mundo de Resistência com o Hypercar da Porsche feito para correr em Le Mans. Essa passagem é difícil? Quando corria com o LMP2 era mais fácil porque conhecia bem o carro, com o Hypercar as coisas são um pouco diferentes. Fizemos apenas um dia de testes e tenho um manual de 60 páginas para aprender. Foi um ano de aprendizagem e ainda estamos muito longe de conhecer a fundo o Hypercar, que é um carro híbrido e muito complexo. A parte boa é que estamos a andar depressa e estivemos à frente nas 24 Horas Le Mans e em Monza.

Em termos de pilotagem, quais são as grandes diferenças entre um fórmula e um protótipo? Muda muita coisa, mas a adaptação é imediata, tem de ser! O Hypercar é um carro mais potente e pesado e com mais aerodinâmica. Além disso, o desgaste dos pneus também é diferente.

Tem alguma preferência? Para ser sincero, não diferencio um do outro. Vejo um volante e quatro rodas, a única coisa que muda é que no Hypercar não sujo o capacete porque é um carro fechado.

O piloto fez parte da estrutura da Red Bull e conheceu bem Max Verstappen. Ele é assim tão melhor do que os outros? É um fora de série, neste momento é imbatível. Na Fórmula 1, não conta só o piloto, o carro tem grande importância e a Red Bull está muito à frente das outras equipas. O Max consegue extrair todo o potencial do carro ao contrário do Sérgio Perez. Depois, tem uma autoconfiança incrível. No jantar de celebração do primeiro título, o De Vries [outro piloto de Fórmula 1] disse-lhe que tinha tido sorte com a entrada do Safety Car ao que o Max respondeu: contigo, em qualquer pista, com qualquer carro, escolhe o dia. Isto é o Max.

Conhece bem a atual geração de pilotos de Fórmula 1, há alguém que se possa destacar no futuro? Corri com grande parte dos atuais pilotos de Fórmula 1 e há três ou quatro que são muito bons. O Leclerc, o Norris, o Russel, o Piastri são, igualmente, foras de série, mas não têm o melhor carro. O Hamilton continua a ser muito bom. Se o Max não estivesse a correr, o campeonato estava em aberto.

Há algum piloto que o tenha impressionado? Quando estive na Red Bull trabalhei com o Vettel, o Weber, o Ricciardo, o Kvyat e o Max. O nível técnico do Vettel impressionou-me bastante. Quando conheci o Max ele tinha acabado de chegar à equipa e estava muito fresquinho, penso que já atingiu o mesmo nível do Vettel. Ele cresceu de forma diferente de todos os outros pilotos, foi preparado para isto. Quando venceu a primeira corrida na Fórmula 1 festejou de forma tranquila, eu tinha dado um mortal para trás, para ele aquilo foi tudo normal, fazia parte do plano. Desde os oito anos que está formatado para vencer. 

Como foi o seu relacionamento com o Max Verstappen? Perfeito, temos respeito um pelo outro. Quando ele fez o primeiro treino livre de Fórmula 1 com a Toro Rosso eu era piloto de reserva da Red Bull e passámos o fim de semana a falar de corridas. Quando eu corria no DTM e o Max na Fórmula 3, ele vinha ver as corridas à boxe da minha equipa, nessa altura era meu fã.

Cada vez mais as equipas trabalham em simulador. Qual a sua importância? É um trabalho importantíssimo para encontrar a afinação correta do carro, cerca de 70% do trabalho é feito em simulador, em termos de preparação é semelhante à Fórmula 1. Permite-nos acertar o set up do carro, a afinação das suspensões, a gestão de energia e criar diferente cenários de corrida, como apanhar tráfego e paragens nas boxes. Mas é também um trabalho cansativo. Chego ao simulador as 8h30 da manhã e saio às 19h durante quatro dias, eu e o meu colega de equipa fazemos sessões de três horas cada.

O que podemos esperar de António Félix da Costa para 2024? Disse à Porsche que o ano foi razoável na Fórmula E e no WEC. Para o ano o programa será idêntico, mas os resultados têm de ser melhores.

Qual o grande objetivo de carreira? Já fui Campeão do Mundo de Fórmula E e de Resistência, o meu objetivo é vencer os dois títulos no mesmo ano. É um desafio para mim.

Em 2010, recebeu um convite da Force India para testar um Fórmula 1 e fez o terceiro melhor tempo atrás da McLaren e Red Bull. Depois foi piloto de testes e de reserva da Red Bull, mas o sonho da Fórmula 1 acabou de forma inesperada. O mundo das corridas é ingrato? Muito. O mundo gira à volta do dinheiro, essa é a grande verdade, e o desporto automóvel não é exceção. Não estou na Fórmula 1 apenas por uma questão financeira. Depois de ter realizado vários testes e de ter feito o banco e o fato para correr na Toro Rosso mudaram de planos porque apareceu um piloto russo e, nesse ano, a Rússia iria ter um Grande Prémio. Quando me ligaram a dizer que o lugar não era para mim chorei imenso. Apesar de não ter ficado na Fórmula 1 continuei ligado à Red Bull que me abriu portas para fazer uma carreira.

Fora das corridas, é fundador da Apex Capital, uma empresa de investimentos. É uma forma de assegurar o futuro depois das corridas? As corridas não vão durar para sempre e estou a preparar o fim de carreira, que espero que seja dentro de 10 anos. Quando as corridas acabarem quero ter um propósito e alguma coisa para fazer. Um amigo meu, o António Caçorino, teve a ideia de criar uma empresa que ajuda os atletas a rentabilizar o seu património e da forma como devem proteger os seus investimentos. A empresa nasceu há dois anos e meio e estamos a trabalhar com vários atuais e antigos pilotos de Fórmula 1, com jogadores de futebol, e com prestigiados construtores como a Porsche. Queremos tornar os atletas investidores ativos, mas de forma inteligente. A Apex Capital ajuda-os a alavancar a imagem que têm para obterem maior retorno.