JMJ. Francisco sem papas na língua

JMJ. Francisco sem papas na língua


O Papa aterrou em Lisboa e disse logo ao que vinha. Aos políticos e individualidades, lembrou que a eutanásia promete ‘solução cómoda que parece doce, mas na realidade é mais amarga que as águas do mar’. Aos consagrados, que os abusos são para encarar de frente.


por Raquel Abecasis

O Papa Francisco não precisou de muito tempo em solo português para dizer ao que vinha. Num primeiro encontro com a classe política, corpo diplomático e personalidades da sociedade civil, Francisco agradeceu os aplausos e as boas vindas entusiásticas do Presidente da República, mas nada disso o fez recuar naquilo que tinha para dizer aos portugueses: «No mundo evoluído de hoje, paradoxalmente, tornou-se prioritário defender a vida humana, posta em risco por derivas utilitaristas que a usam e descartam. Penso em tantas crianças não-nascidas e idosos abandonados a si mesmos, na dificuldade de acolher, proteger, promover e integrar quem vem de longe e bate às nossas portas, no desamparo em que são deixadas muitas famílias com dificuldade para trazer ao mundo e fazer crescer os filhos. Também aqui apetece perguntar: Para onde navegais, Europa e Ocidente, com o descarte dos idosos, os muros de arame farpado, as mortandades no mar e os berços vazios? Para onde ides se, perante o tormento de viver, vos limitais a oferecer remédios rápidos e errados como o fácil acesso à morte, solução cómoda que parece doce, mas na realidade é mais amarga que as águas do mar?».

Esta era a parte do discurso que estava escrita. Mas, neste passo da sua intervenção, o Papa Francisco parou, fez uma pausa para olhar para a assistência, e esclareceu os que pudessem não ter entendido:_«Refiro-me à eutanásia!».

Com esta referência não quis apenas cumprir calendário. À semelhança do que já tinha feito a partir do Vaticano, logo no dia seguinte aos deputados portugueses terem aprovado a lei, Francisco fez questão de dizer à classe política que tal lei é iníqua e que acentua o abandono, particularmente dos mais idosos.

O momento causou evidente incómodo na sala do Centro Cultural de Belém, Marcelo Rebelo de Sousa, sentado mesmo ao lado do Papa, não conseguiu disfarçar o mal-estar. É sabido que o Presidente não concorda com a lei e, ao longo dos últimos anos, fez o que pode para atrasar o processo legislativo.Na perspetiva da viagem que o Papa realiza agora a Portugal, o Presidente terá mesmo tentado convencer o primeiro-ministro a atrasar a aprovação da lei na Assembleia da República. Não conseguiu, e esta terça-feira acabou por acontecer o que Marcelo menos desejava, uma censura ao país por ter aberto a porta à «cultura da morte».

António Costa, sentado na primeira fila do Auditório do CCB, manteve-se atento, mas sem mostrar particular reação à crítica que acabava de ouvir.

 

Encontro com vítimas e advertências a religiosos

Era a questão que os críticos exigiam que fosse abordada durante estes dias. Nos tempos que antecederam a chegada de Francisco, quando a festa juvenil já se sentia no país, a quase generalidade da Comunicação Social e os que se opuseram ao longo do tempo à organização da JMJ exigiam que o tema dos abusos sexuais na Igreja não fossem esquecidos. E o não lhe fugiu, antes enfrentou o tema logo nas primeiras horas em Lisboa. No recato da Nunciatura recebeu, uma a uma, em encontros privados, mais de uma dezena de vítimas de abusos a quem ouviu e pediu perdão. Na sede da embaixada do Vaticano em Lisboa, foi também recebido Pedro Strecht, o homem que coordenou os trabalhos da Comissão Independente que estudou o fenómeno em Portugal a pedido da Conferência Episcopal.

Mas o Papa não quis também deixar de abordar o assunto em público e escolheu fazê-lo quando se reuniu com bispos, padres, religiosos e religiosas e seminaristas. Aos  que representam o rosto da  hierarquia da Igreja em Portugal, o Papa disse: «Isto, a pouco e pouco, acentua-se, pela desilusão ou a raiva que alguns alimentam em relação à Igreja, nalguns casos pelo nosso mau testemunho e pelos escândalos que desfiguraram o seu rosto e que chamam a uma purificação humilde, constante, partindo do grito de dor das vítimas, que sempre devem ser acolhidas e escutadas».

Foi em tom severo que o Papa fez o alerta. Num encontro em que o chefe da Igreja pediu a todos os que se juntaram a ele para rezar as Vésperas nos Jerónimos para que não deixem que a desilusão os invada.

Francisco quer que os que entregaram a vida ao serviço da Igreja continuem a «lançar as redes», como Jesus pediu aos Apóstolos. O Papa apelou a todos os presentes nos Jerónimos para que não se fechem na sacristia e se lancem ao mundo, sem julgamentos nem barreiras. «Deixem entrar todos… não fiquem a avaliar se são bons ou não», disse Francisco aos consagrados, repetindo: «Todos… todos». Neste encontro, e nos que manteve já no segundo dia da Jornada, o Papa insistiu na ideia de uma Igreja que não é acidentada não é uma Igreja verdadeira. E ilustrou o que queria dizer, explicando que «a água destilada não tem sabor».

Aos universitários que se encontraram com Francisco na Universidade Católica, o Papa entregou uma missão: usem o conhecimento para mudar o mundo. O Sumo Pontífice sublinhou que o conhecimento é para ser posto ao serviço.

 

A guerra, o ambiente e o exemplo dos jovens

Numa cidade invadida por jovens vindos, literalmente, dos quatro cantos do mundo, Francisco prefere lançar desafios às novas gerações, dando-lhes a responsabilidade de fazerem o que as gerações que os antecederam não fizeram.

A agenda do Papa é clara, conhecida e não se altera, quer esteja a falar com os poderosos do mundo, com religiosos ou com os jovens. Ambiente, construir um futuro diferente e a fraternidade, sem barreiras e sem fronteiras são as suas prioridades e foram lançadas como «estaleiros comuns», a partir dos quais se pode reconstruir.

A guerra na Ucrânia é neste momento um dos temas que mais preocupa o Papa argentino, que, a partir de Lisboa, e citando o tratado europeu com o nome da capital portuguesa, lançou as perguntas que incomodam a Europa: «Para onde navegas, se não ofereces percursos de paz, vias inovadoras para acabar com a guerra na Ucrânia e com tantos conflitos que ensanguentam o mundo?». E, ainda, alargando o campo: «Que rota segues, Ocidente? A tua tecnologia, que marcou o progresso e globalizou o mundo, sozinha não basta; e muito menos bastam as armas mais sofisticadas, que não representam investimentos para o futuro, mas empobrecimento do verdadeiro capital humano que é a educação, a saúde, o estado social».