Mas, afinal, qual é o critério?


Só mesmo a tradicional complacência lusa permite a desmultiplicação de situações em que o critério seguido não é inteligível, aceitável ou justo, implicando súbitas alterações dos quadros de referência individuais ou comunitários, sem qualquer tipo de transparência ou explicação.


Num país em que a previsibilidade é um bem escasso, apesar do quadro de referência de Estado de Direito Democrático e dos inúmeros instrumentos de planeamento e gestão da coisa pública, a arbitrariedade do critério subjacente às ideias, projetos e iniciativas da governação das comunidades e dos territórios é perturbador. Só mesmo a tradicional complacência lusa permite a desmultiplicação de situações em que o critério seguido não é inteligível, aceitável ou justo, implicando súbitas alterações dos quadros de referência individuais ou comunitários, sem qualquer tipo de transparência ou explicação. Há mesmo protagonistas políticos que se dão ao desplante de acharem que, em democracia, podem determinar o fim da discussão pública de um determinado tema ou situação. E o grave é que conseguem fazê-lo, com lançamento de manobras de diversão mediática – cortinas de fumo –, lançamentos de barro à parede de medidas muito gravosas para depois a solução final ser mitigada e outras estratégias de modelação das expectativas e atenções, onde se integra o anúncio de medidas positivas para o futuro, próximo ou mais longínquo.

Num país com reduzida propensão para o planeamento e para o estudo dos impactos e das tendências como pressupostos importantes das decisões estratégias e políticas, a amplitude da margem de arbítrio na definição do critério é preocupante em diversos planos da vida em comunidade. Por vezes, parece resultar da realidade concreta uma perceção de que as definições dos critérios de ação não têm nada a ver com o bem comum ou têm-no de forma marginal. O primeiro-ministro tem pretensões de um futuro nas instituições europeias ou no plano internacional, então boa parte da configuração das opções governativas é feita na geração de um estado de Portugal bom aluno de Bruxelas para impressionar terceiros sobre o inquestionável nível de compromisso nas orientações gerais ou na transposição de diretivas.

Na justiça, para quem conhece o funcionamento da sociedade, são recorrentes as ações e as omissões com critérios que não são inteligíveis. Porque se age nuns casos e se deixam outros similares de fora da alçada da investigação judicial ou porque alguns carros marinam anos e anos sem que tenham fim à vista, para depois os responsáveis brandirem com a incontornável insuficiência de meios para tudo justificar. Porque se persiste em geometrias variáveis, na opacidade em relação aos casos arquivados, em enviesadas perseguições individuais face ao laxismo generalizado e em recorrentes violações de segredo de justiça a coberto da promiscuidade entre a justiça e os media, tudo a bem do direito de informação e do interesse público, sabendo que tudo isso são perversões que destroem os pilares do Estado de Direito? Porque não há verdadeiramente lei nem comando. Não há a adequada aplicação dos critérios.

Na governação, à falta de uma visão integrada para o país, triunfa a gestão do quotidiano, pelo que a consagração das agendas do dia (pessoais, de interesses ou mediáticas) transformam tudo numa urgência, à medida que se acumulam as disfunções, os casos, as contradições e perigosas sinalizações para a sociedade sobre uma espécie de salve-se quem puder. É assim que chegamos a um quadro de ação contraditório e imprevisível nos sinais que dão à sociedade, entre a ambição de querer o Estado presente em tudo, a realidade da insuficiência da sua capacidade de resposta e a cedência total à desregulação do mercado. Então, quando existem e persistem problemas que foram ignorados durante anos ou em relação aos quais não se conseguem concretizar transformações positivas para os portugueses, a solução é apostar na regulação, às vezes, por mesquinhas pegas pessoais entre o decisor político e um interlocutor social. O Estado não se conforma com a relevância legal dos municípios na escolha da localização do aeroporto, altera-se a lei. O Estado não conseguiu impor atempadamente uma visão de acordo como a tendência de envelhecimento da população e dos próprios profissionais de saúde, não consegue reter o talento dos novos profissionais, desregule-se o papel da Ordem.

O Estado não consegue resolver os problemas da burocracia na construção de habitação, remova-se a intervenção preventiva dos arquitetos nos processos de configuração das soluções gerais e técnicas. Mas ao mesmo tempo que desregula, introduz impulsos contraditórios de proibição ou maior regulamentação, sem mínimos de respeito por quem concretizou soluções no território quando o estado esteve ausente, como acontece com os vistos gold, o alojamento local ou a lei do tabaco.

No espaço de uma semana, concretizaram-se ajustes à medida que reforça a ideia da ausência de critério fiável, transparente e escrutinável nas opções políticas. Os certificados de aforro reduto de colocação das poupanças dos portugueses, remuneradas pelo Estado, acima da oferta bancária, foram recondicionados a uma solução menos favorável, agora também disponível nos bancos que estavam a perder os depósitos.

A proposta de lei do tabaco, a toque de Sonae e de Galp, deixou de ter limitações à venda de tabaco nos postos de abastecimento de combustíveis. E querem que levemos isto a sério, enquanto os poderes se entretêm em jogos mediáticos de recados uns aos outros em modo de gaiatos.

A falta de critério inteligível, de transparência e de explicação minam a confiança nas opções e no funcionamento das instituições democráticas, mas isso, são notas de rodapé para muitos dos que têm atualmente funções públicas. A pandemia da falta de critério está aí, veio para ficar, a bem de alguns que são beneficiados, em prejuízo da generalidade alheada ou conformada com essa triste realidade.

 

NOTAS FINAIS

OS COMBOIOS EM DESANDAMENTO. O estatuto de empresa pública deveria ser ponto de partida para a existência de capacidade de gerar diálogo e compromisso para não colocar em causa a natureza da prestação do serviço. A persistência de greves nos transportes públicos como nas escolas é a consagração dessa incapacidade de compromisso, no quadro de uma maioria absoluta e com recursos, naturalmente finitos. Neste quadro, onde houver uma oportunidade, haverá sempre um oportunista. Na CP, agora são os picas, porque o acordo de empresa dispõe da obrigatoriedade de haver, pelo menos, dois revisores, para que os comboios circulem. São milhares com a vida do avesso, só porque não há capacidade de gerar compromisso. E pensar que na anterior solução de governo, quase não existiam problemas.

 

ENTRÁMOS EM MODO DE ÂNIMO. A brutal receita fiscal do Estado – a antecipar metas do fim de ano – e a rota de aproximação ao bom tempo, à praia, às festas populares e às férias – para quem as tem – gera um quadro mental positivo. Não resolve nenhuma das dificuldades do quotidiano, nem o bloqueio dos governantes marcados para a oportuna remodelação, mas anima.

Mas, afinal, qual é o critério?


Só mesmo a tradicional complacência lusa permite a desmultiplicação de situações em que o critério seguido não é inteligível, aceitável ou justo, implicando súbitas alterações dos quadros de referência individuais ou comunitários, sem qualquer tipo de transparência ou explicação.


Num país em que a previsibilidade é um bem escasso, apesar do quadro de referência de Estado de Direito Democrático e dos inúmeros instrumentos de planeamento e gestão da coisa pública, a arbitrariedade do critério subjacente às ideias, projetos e iniciativas da governação das comunidades e dos territórios é perturbador. Só mesmo a tradicional complacência lusa permite a desmultiplicação de situações em que o critério seguido não é inteligível, aceitável ou justo, implicando súbitas alterações dos quadros de referência individuais ou comunitários, sem qualquer tipo de transparência ou explicação. Há mesmo protagonistas políticos que se dão ao desplante de acharem que, em democracia, podem determinar o fim da discussão pública de um determinado tema ou situação. E o grave é que conseguem fazê-lo, com lançamento de manobras de diversão mediática – cortinas de fumo –, lançamentos de barro à parede de medidas muito gravosas para depois a solução final ser mitigada e outras estratégias de modelação das expectativas e atenções, onde se integra o anúncio de medidas positivas para o futuro, próximo ou mais longínquo.

Num país com reduzida propensão para o planeamento e para o estudo dos impactos e das tendências como pressupostos importantes das decisões estratégias e políticas, a amplitude da margem de arbítrio na definição do critério é preocupante em diversos planos da vida em comunidade. Por vezes, parece resultar da realidade concreta uma perceção de que as definições dos critérios de ação não têm nada a ver com o bem comum ou têm-no de forma marginal. O primeiro-ministro tem pretensões de um futuro nas instituições europeias ou no plano internacional, então boa parte da configuração das opções governativas é feita na geração de um estado de Portugal bom aluno de Bruxelas para impressionar terceiros sobre o inquestionável nível de compromisso nas orientações gerais ou na transposição de diretivas.

Na justiça, para quem conhece o funcionamento da sociedade, são recorrentes as ações e as omissões com critérios que não são inteligíveis. Porque se age nuns casos e se deixam outros similares de fora da alçada da investigação judicial ou porque alguns carros marinam anos e anos sem que tenham fim à vista, para depois os responsáveis brandirem com a incontornável insuficiência de meios para tudo justificar. Porque se persiste em geometrias variáveis, na opacidade em relação aos casos arquivados, em enviesadas perseguições individuais face ao laxismo generalizado e em recorrentes violações de segredo de justiça a coberto da promiscuidade entre a justiça e os media, tudo a bem do direito de informação e do interesse público, sabendo que tudo isso são perversões que destroem os pilares do Estado de Direito? Porque não há verdadeiramente lei nem comando. Não há a adequada aplicação dos critérios.

Na governação, à falta de uma visão integrada para o país, triunfa a gestão do quotidiano, pelo que a consagração das agendas do dia (pessoais, de interesses ou mediáticas) transformam tudo numa urgência, à medida que se acumulam as disfunções, os casos, as contradições e perigosas sinalizações para a sociedade sobre uma espécie de salve-se quem puder. É assim que chegamos a um quadro de ação contraditório e imprevisível nos sinais que dão à sociedade, entre a ambição de querer o Estado presente em tudo, a realidade da insuficiência da sua capacidade de resposta e a cedência total à desregulação do mercado. Então, quando existem e persistem problemas que foram ignorados durante anos ou em relação aos quais não se conseguem concretizar transformações positivas para os portugueses, a solução é apostar na regulação, às vezes, por mesquinhas pegas pessoais entre o decisor político e um interlocutor social. O Estado não se conforma com a relevância legal dos municípios na escolha da localização do aeroporto, altera-se a lei. O Estado não conseguiu impor atempadamente uma visão de acordo como a tendência de envelhecimento da população e dos próprios profissionais de saúde, não consegue reter o talento dos novos profissionais, desregule-se o papel da Ordem.

O Estado não consegue resolver os problemas da burocracia na construção de habitação, remova-se a intervenção preventiva dos arquitetos nos processos de configuração das soluções gerais e técnicas. Mas ao mesmo tempo que desregula, introduz impulsos contraditórios de proibição ou maior regulamentação, sem mínimos de respeito por quem concretizou soluções no território quando o estado esteve ausente, como acontece com os vistos gold, o alojamento local ou a lei do tabaco.

No espaço de uma semana, concretizaram-se ajustes à medida que reforça a ideia da ausência de critério fiável, transparente e escrutinável nas opções políticas. Os certificados de aforro reduto de colocação das poupanças dos portugueses, remuneradas pelo Estado, acima da oferta bancária, foram recondicionados a uma solução menos favorável, agora também disponível nos bancos que estavam a perder os depósitos.

A proposta de lei do tabaco, a toque de Sonae e de Galp, deixou de ter limitações à venda de tabaco nos postos de abastecimento de combustíveis. E querem que levemos isto a sério, enquanto os poderes se entretêm em jogos mediáticos de recados uns aos outros em modo de gaiatos.

A falta de critério inteligível, de transparência e de explicação minam a confiança nas opções e no funcionamento das instituições democráticas, mas isso, são notas de rodapé para muitos dos que têm atualmente funções públicas. A pandemia da falta de critério está aí, veio para ficar, a bem de alguns que são beneficiados, em prejuízo da generalidade alheada ou conformada com essa triste realidade.

 

NOTAS FINAIS

OS COMBOIOS EM DESANDAMENTO. O estatuto de empresa pública deveria ser ponto de partida para a existência de capacidade de gerar diálogo e compromisso para não colocar em causa a natureza da prestação do serviço. A persistência de greves nos transportes públicos como nas escolas é a consagração dessa incapacidade de compromisso, no quadro de uma maioria absoluta e com recursos, naturalmente finitos. Neste quadro, onde houver uma oportunidade, haverá sempre um oportunista. Na CP, agora são os picas, porque o acordo de empresa dispõe da obrigatoriedade de haver, pelo menos, dois revisores, para que os comboios circulem. São milhares com a vida do avesso, só porque não há capacidade de gerar compromisso. E pensar que na anterior solução de governo, quase não existiam problemas.

 

ENTRÁMOS EM MODO DE ÂNIMO. A brutal receita fiscal do Estado – a antecipar metas do fim de ano – e a rota de aproximação ao bom tempo, à praia, às festas populares e às férias – para quem as tem – gera um quadro mental positivo. Não resolve nenhuma das dificuldades do quotidiano, nem o bloqueio dos governantes marcados para a oportuna remodelação, mas anima.