De Santo Tirso para o mundo. Fomos ter com os Triunfo dos Acéfalos, duo de electro-punk desta cidade nortenha, ao Lounge, em Lisboa, no passado dia 25 de junho, onde o grupo esteve a atuar e a apresentar o seu último EP, Vivemos num Inferno, lançado no ano passado.
Em entrevista, o grupo falou sobre a origem deste projeto e abordou as frustrações que surgiram durante a criação da sua mais recente obra, um trabalho onde tentaram exprimir as frustrações com a falta de apoios que receberam. Pelo meio, ainda houve tempo para falar com este jovem e promissor projeto de algumas das inspirações para a sua música, como a desvalorizada e às vezes esquecida banda portuguesa Repórter Estrábico.
Podem explicar a origem do Triunfo dos Acéfalos?
Luís Barreto: Este projeto teve início em 2015, quando comecei a fazer umas gravações em casa e a publicá-las no Bandcamp. Era algo que ainda não tinha muito foco, estava apenas a gravar músicas e a partilhar para quem pudesse ter interesse. Passado algum tempo, fui recebendo cada vez mais atenção e comecei a dar alguns concertos, mas percebi que não gostava de o fazer sozinho porque era muita pressão e confusão. Pouco tempo depois conheci o Bugs e percebi que estávamos no mesmo espaço mental e começámos a fazer música juntos durante a quarentena, que foi quando fomos viver juntos. Fizemos um primeiro disco, o OX (2020), e começámos a levar este projeto mais a sério enquanto nos apresentávamos como dupla.
Vocês tiveram algum tipo de formação musical?
Bugs: Sempre gostei muito de música, mas nunca tive qualquer tipo de aulas. Lembro-me que o meu pai, quando eu tinha 18 anos, comprou-me uma guitarra. Foi algo inesperado, porque eu nem sequer sabia tocar (risos). Mas tinha um amigo que tocava baixo para esquerdinos, tal como eu, e acabou por me ensinar algumas coisas, despertando assim um novo interesse pela música. O Luís também me ajudou a perceber alguns elementos de como fazer música eletrónica.
LB: Os meus irmãos eram músicos, um é baterista e outro é guitarrista, então tive de ocupar o lugar de baixista porque era o extra (risos). Acabei por gostar imenso de tocar este instrumento e cheguei a ter várias bandas quando era mais novo, mas comecei a explorar outros estilos musicais e instrumentos, a gravar mais em casa e acabei por me interessar mais pela música eletrónica, o que me levou a fundar o Triunfo dos Acéfalos e a fazer o que faço agora.
O nome da vossa banda é um dos mais inspirados da música portuguesa, como é que chegaram a essa expressão?
LB: Obrigado (risos). Honestamente, não me lembro. Houve uma altura em que estava hiperfixado em música e em bandas e todos os dias apontava dezenas de nomes possíveis para um projeto musical. O único que me ficou na cabeça foi Triunfo dos Acéfalos e foi o que me fez mais sentido, mas não me lembro exatamente de onde é que veio…
Bugs: Não era porque uma professora tua costumava dizer que a tua turma era uma cambada de acéfalos?
LB: Os meus irmãos também me costumavam insultar com essa expressão. Eles escolhiam sempre insultos um bocado caricatos e esse era um dos que colava mais. Mas a parte do Triunfo foi algo que veio mais tarde. Soava bem, suponho…
O vosso estilo é um pouco específico e de nicho, o electro-punk. Como se apaixonaram por este género musical?
LB: Para mim, foi quando descobri Death Grips quando estava na faculdade. Isso deu-me vontade de ouvir e descobrir todos os precursores deste estilo musical e prestar mais atenção a todos esses grupos. Bandas como LCD Soundsystem e Repórter Estrábico também tiveram uma influência enorme. Mas, acima de tudo, é uma música que é muito divertida de fazer e de tocar. Chegámos a este estilo porque é algo divertido de se fazer em conjunto.
Os Repórter Estrábico são uma referência interessante de mencionar porque são um nome um pouco esquecido e desvalorizado na música portuguesa. Como nasceu o vosso interesse por esse grupo?
Bugs: O Luís é que me mostrou, ele é que é fanático por eles.
LB: Lembro-me de um rapaz que conhecia ser muito viciado numa música dos Repórter Estrábico que era a Mnemónica. Ele mostrou-me e eu fiquei muito interessado no que tinha acabado de ouvir. Depois mostrei a uns amigos mais velhos e eles ficaram e eles reconheceram imediatamente. Fui imediatamente conhecer o resto da discografia deles, após ter tido este momento de poser (risos), e fiquei completamente viciado na música deles. São uma banda muito inovadora e foram muito importantes na cena musical onde estavam inseridos.
São tão importantes para vocês que até chegaram a fazer uma cover da Mnemónica.
LB: Sim, foi esse o nível que a música me contagiou.
Vocês são naturais de Santo Tirso, tendo feito até várias músicas sobre a cidade. Como está a cena musical em Santo Tirso?
Bugs: Já houve, agora nem tanto.
LB: É por fases. Vai havendo, mas, com o passar do tempo, sinto que tem havido cada vez menos interesse por parte dos jovens em fazer bandas de garagem. Bugs: Sim, para não falar de que existem bandas que acabaram, outras que se recusam a admitir que são de Santo Tirso.
LB: E existem também casos de pessoas que começam a perder o interesse ou, simplesmente, deixam a cidade e acabam por se dispersar. Atualmente, o que existe está mais relacionado connosco e com os nossos amigos. Criámos um coletivo artístico multidisciplinar, o Culetivo Feira. Ainda estamos a começar, já gravamos algumas coisas, apesar de ainda não terem sido lançadas, mas vamos tendo alguma atividade. Um dos grandes problemas é que não existem muitos sítios para tocar.
É interessante, porque vários músicos que tenho entrevistado queixam-se de que a cena musical da sua cidade está a morrer precisamente pelas mesmas razões que enunciaram, falta de espaços para tocar, incapacidade para manter os jovens a viver nas suas cidades…
Bugs: É um problema destas cidades mais pequenas.
LB: Mesmo que exista um núcleo de músicos e outras pessoas que estejam interessadas por bandas e que estejam dispostas a apoiar, o facto de a cidade em si não querer saber da cena musical tem um impacto bastante grande. E, em Santo Tirso, eles não querem mesmo saber. A Câmara nunca falou connosco…
Bugs: Nem querem falar. Apesar de já termos recebido elogios de algumas bandas mais conceituadas, como os Glockenwise, eles não querem mesmo saber de nós.
No ano passado lançaram o vosso EP mais recente, Vivemos Num Inferno, e na descrição do disco falam um pouco das dificuldades e obstáculos que existiram a criar esse trabalho. O que aconteceu?
LB: Foi um processo que teve algumas dificuldades porque não temos nenhum contacto e porque não conhecemos muitas pessoas do meio. Também somos pessoas um pouco introvertidas e pouco sociais. Isso torna um bocado difícil por o pé na porta para termos mais concertos. Muitas vezes temos de recorrer ao e-mail e mandar centenas de e-mails para depois recebermos duas respostas.
Bugs: E essas respostas serem negativas, quando recebemos…
LB: Tentamos fazer música para nossa própria diversão, mas claro que queremos tocar e fazer outras coisas, é difícil levar com isto. Também está a acontecer uma questão: no final da pandemia todos estavam desejosos de regressar aos concertos, mas os concertos que estavam a patrocinar era apenas de artistas mais estabelecidos e de nomes que ajudassem a recuperar o prejuízo do confinamento. Se fosse alguém como os Linda Martini ou o Legendary Tigerman, esses conseguem um concerto em qualquer lado; agora, o Triunfo dos Acéfalos, que ninguém conhece, é muito mais complicado.
Bugs: Eu percebo que seja complicado dar a oportunidade a uma banda que não se sabe se vai encher um sítio ou não ter ninguém a vê-los, mas é um bocado triste.
LB: Essa frustração reflete-se no EP e a energia que conseguimos introduzir surge dos poucos concertos que conseguimos dar, porque acabavam por ser um pouco mais agressivos do que o habitual. Estávamos frustrados, queríamos tocar mais ao vivo. Por isso é que algumas das músicas acabaram por sair também um bocado mais aceleradas.
É por todas estas razões que estamos a ‘viver num inferno’?
LB: Sim, de um ponto de vista musical e cultural. Mas existem também imensas questões sociais que nos fazem pensar assim. Por exemplo, cada vez mais navegar na internet é mau para o cérebro (risos).
Bugs: Sim, isso também é um inferno diferente.
LB: Está a existir um surgimento tão grande e irritante da extrema-direita, e se não são de extrema-direita, é só pessoal apático que compactua com isto porque não está a questionar o que está a acontecer.
Bugs: Há uma grande apatia na população.
LB: E existe ainda pessoas que tu conheces ou que são teus familiares e que mostram completo desdém pela sua orientação sexual…
Bugs: Ou até em termos de género ou da sua raça.
LB: Às vezes iniciamos um diálogo com pessoas que estão tão convictas das suas ideias e acabas por dizer: "mas eu sou a pessoa que tu odeias e estou aqui à tua frente". E mesmo assim essas pessoas acabam por te insultar na cara. Pessoalmente, custa-me separar essas coisas.
Esse sentimento acaba por se transmitir nas vossas músicas, acabando por existir um certo niilismo, apesar de sempre misturado com humor. O humor é uma forma de escapar a este inferno?
LB: O humor funciona muito como mecanismo de defesa e ajuda-nos a lidar com este tipo de situações. No fim de contas, temos todos de nos divertir no nosso espaço seguro, apesar de tudo. Com os nossos amigos não vale a pena estarmos mal dispostos.
Por falar em humor, uma das referências mais caricatas na vossa música é na faixa Vivemos Num Inferno onde dizem "o Kramer é racista". Quando é que vocês descobriram que o Michael Richards era efetivamente racista?
LB: Não me lembro do momento preciso (risos). Acho que foi um dia em que me estava a questionar porque é que o ator nunca mais teve nenhum papel. Ele é um tipo engraçado, o Jason Alexander ainda fez umas coisas, o mesmo com o Seinfeld… Fui procurar e descobri o famoso incidente dele a gritar uns insultos racistas a uns fãs negros. É engraçado, porque esse foi um dos primeiros exemplos de algo que hoje é mais comum. Que é alguém pegar num telemóvel para filmar alguém a fazer algo de errado e esta acaba com a carreira arruinada merecidamente por causa de um vídeo na internet.
Enquanto fãs de Seinfeld, isto estragou-vos a experiência de ver a série?
Bugs: Mais ou menos, nunca gostei muito do Kramer, sempre o achei um otário. Isso era algo que eu esperava que ele fizesse na série.
LB: O Kramer é a única personagem de Seinfeld que tem uma cena a fazer blackface por isso não me surpreende (risos). Eu continuo a adorar Seinfeld, mas não consigo retirar a mesma piada do Kramer que tirava antes. Mas ele pelo menos fez uma coisa que eu respeito, face a outras pessoas que parece que fazem de propósito para serem cancelados para subirem na carreira. Ele nunca fez nenhum conteúdo a dizer: "Eu fui cancelado e quero ir falar a talk shows para me justificar". Ele continua calado, ele sabe que esteve mal.
Numa altura da vossa carreira em que apenas editaram EP's, existe alguma previsão para quando é que se vão estrear num formato de longa duração?
LB: Ainda não sabemos. Eu gosto do formato de EP, é curto e rápido, mas percebo a importância de lançar um álbum de longa duração, é mais fácil ser levado a sério com um álbum desse estilo. Se virmos que temos material suficiente e que temos material suficiente, porque gosto da ideia que os discos serem um conceito fechado, vamos ver… se calhar para o ano.