Há já muitos anos, ainda na ditadura, contaram-me uma anedota, que factos recentes e a polémica por eles gerada me recordaram.
Dizia, assim, a estória: numa noite de verão, andava um conhecido industrial português a passear na Avenida da Liberdade quando, subitamente, sentiu uma irreprimível vontade de urinar. Procurou uma árvore que o escondesse e concretizou a sua necessidade. Porém, para azar seu, ía um cívico a passar, viu o que sucedeu e decidiu interpelá-lo.
«Com que então a urinar na rua!? Sabe que é proibido e que vou ter de o multar? Diga-me o seu nome, por favor?»
«Boa noite, senhor guarda, chamo-me X.»
«Chama-se X, como o outro, ou é mesmo o conhecido industrial, senhor X?» – Indagou então o guarda.
«Sim, sou esse mesmo» – respondeu o industrial.
«Porque não disse antes? Escusava de ter começado a escrever o auto?» – atalhou, já enervado, o guarda.
«Não se preocupe, levante lá o auto, como é seu dever, que eu pago a multa» – Respondeu o senhor X.
«Desculpe, mas não passo» – retorquiu o guarda – «Sabe Senhor X, se o fizer, tenho de dar conta do auto ao meu superior e ele vai ler e vai perguntar: quem foi a besta do guarda que multou o Senhor X?»
«E, depois, sabe, vira para a direita, vira para a esquerda e quem, afinal, urinou na árvore da Avenida fui eu e não senhor, está a aperceber?» – concluiu, sensato, o guarda.
Muito do que se passa atualmente no nosso país, entre comissões de inquérito, e massacrantes e sempre oportunas reportagens e comentários televisivos, pode, de facto, resumir-se nesta anedota.
Quem, afinal, urinou na via pública, não foi na realidade quem o fez, mas, como insinuam os tudólogos e comentadores de serviço às TVs, fomos todos nós, os cidadãos comuns.
No momento atual, de acordo com o que dizem e repetem comentadores, analistas, repórteres e aqueles que, de facto, os inspiram, somos nós, os cidadãos, os culpados das faltas cometidas por todos os senhores X que existiram e seguem existindo no nosso país.
Foi isso, também, que o experiente guarda da anedota logo intuiu.
E, sim, somos culpados – à parte a questão das necessidades fisiológicas em que, queiramos ou não, todos nos igualamos – na medida em que consentimos que continuem a existir cidadãos com o especial estatuto do senhor X.
Na verdade, os senhores X dificilmente podiam, então, como dificilmente podem ainda hoje, ser responsabilizados pelas consequências dos atos ilegítimos que praticaram: pelo menos, no plano da realidade não anedótica das decisões que efetivamente contam, no âmbito das suas competências.
São elas, todavia, que – mais ou menos anedoticamente – condicionam a vida da maioria dos cidadãos.
Independentemente dos incontestáveis sucessos económico-financeiros alcançados recentemente, muitos – demasiados – cidadãos continuam, ainda, a não poder desfrutar, para si e para os seus, de uma vida decente.
A vida decente a que me refiro diz respeito à possibilidade de verem respeitados e materializados os direitos que a Constituição consagra e qualifica como fundamentais e não à possibilidade de apenas sobreviverem, alimentados que sejam pelos contributos excecionais que o Estado, de vez em quando, atribui e os cabazes que os bancos alimentares concedem com mais regularidade.
A vida decente significa, pois, uma posição de igualdade verdadeira, na participação justa de todos nos sucessos obtidos pela economia – de que, não esqueçamos, os cidadãos são os obreiros – e não, apenas, no plano da vida nua que, de imediato, remete para uma igualdade resultante apenas das inultrapassáveis necessidades fisiológicas que todos temos.
Para que a discussão política dos destinos do país seja levada a sério por todos é, pois, fundamental remeter para o campo das verdadeiras anedotas as mais fúteis discussões que se desenvolvem em torno dos comportamentos mais ou menos risíveis com que pretendem entreter os cidadãos, impedindo-os, assim, de discutir a realidade do país e as possibilidades que sempre existem de a mudar para melhor, de modo a todos beneficiar.
E, note-se, o país e a sua economia só têm sentido real, se tais conceitos se referirem à vida de todos e cada um dos seus cidadãos.
Não existe Portugal sem os portugueses e, se estes não progridem economicamente, não se pode dizer que o país progrediu; progrediram apenas, porventura, os senhores que detêm, hoje, o estatuto de senhores X.
Portugal só existe na pessoa dos seus cidadãos e na participação de todos eles nas vantagens que o país alcança através do seu trabalho; isto é, quem trabalha não deve necessitar de esmolas para viver decentemente.
Uma vida decente implica, pois, a realização de direitos constitucionais e a possibilidade de, por essa via, projetar a própria vida e a da família, expressão que, hoje, tantos gostam de invocar no discurso político para, precisamente, evitarem responder pela (não) realização dos direitos individuais que a Constituição consagra.
É já tempo de assumirmos, portanto, que as anedóticas faltas de uns – e, principalmente, as dos senhores X – não são para endossar levianamente àquela maioria de cidadãos que, quotidianamente, contribuem, na medida das suas possibilidades, para a existência deste país como uma realidade política e cultural autónoma e já com IX séculos de História.
Os êxitos do país são – e só podem ser – assim, o êxito dos portugueses e devem ser eles, todos eles, a recolher, por isso, os seus proveitos.
Os cidadãos portugueses merecem, por isso, antes do mais, que lhes seja permitido viver uma vida decente.
O lugar das anedotas é nos programas de humor e, felizmente, temo-los bons.