“O insecto pensa que é estranho e louco/ o homem não comer os seus livros”, escreveu Rabindranath Tagore. E não é por não os comer que isso implique forçosamente que os leia. Hoje, os livros têm vindo a adquirir uma função quase talismânica, são objectos que acompanham uma variação supersticiosa, ficando isto a dever-se em grande parte ao facto de a leitura ter gozado ao longo dos séculos de um prestígio extraordinário, de uma certa aura.
Se hoje o valor ritual da leitura de certos textos começa a perder-se, este tem vindo a tornar-se cada vez mais um acto social e culturalmente ambíguo, havendo até uma suspeita de uma certa alienação livresca, isto num ambiente em que se dá primazia a formas de socialização dos indivíduos em que estes renunciam à sua autonomia e singularidade para estarem sempre a fim de acompanhar a pauta dos consumos que supostamente promovem o nosso bem-estar público. Se a maioria dos divertimentos sociais são bastante inofensivos, ler impõe algum risco, desde logo o de se perder na consciência de outro, de gozar de um fôlego contemplativo que tende a relativizar a pressão do presente sufocante em que vivemos imersos. Não sendo uma actividade vital, nem no plano fisiológico nem social, é algo que vem depois, e exige uma atenção especialmente consciente e voluntária da parte do leitor.
Ler é, portanto, uma competência que leva anos. George Steiner defende que ler bem significa correr grandes riscos, que passa por fazer da nossa identidade algo vulnerável, abrir mão das noções que nos foram inculcadas e, portanto, do nosso autocontrolo. Ele diz-nos que quem tenha lido A Metamorfose de Kafka e seja capaz de se olhar no espelho sem sentir tomado de um estranho sobressalto pode até ser tecnicamente capaz de ler os caracteres impressos, mas é analfabeto no único sentido que realmente importa. Por isso, ler bem não é um feito técnico, não tem a ver com seguir os protocolos da análise ou da interpretação, mas é uma qualidade que apenas se adquire pela experiência e o confronto com os textos. Um bom leitor também ergue as suas defesas, assume reservas, constrói o seu próprio sistema de valores, mas sem deixar de estar receptivo a outros riscos, outros horizontes e às especulações fantasistas mais improváveis.
Hoje, no chamado campo literário, está um silêncio já sem estrelas. Essas zonas de perigo em relação às quais em tempos os homens guardavam um tamanho fascínio hoje aparecem-nos como estações de comboios desactivadas, com velhas composições tomadas pela ferrugem e a vegetação, abrigando nos meses quentes algum vagabundo. Talvez porque se tenha confundido o valor daquilo que dizem os livros com os próprios livros, quando o objecto não nos garante nada a esse respeito e só vale alguma coisa se a sua leitura implica alguma deslocação da perspectiva do leitor. E, como nos lembra o crítico Alfonso Berardinelli, perante a actual sobreprodução de livros, os piores inimigos desses livros que realmente vale a pena ler são os inumeráveis outros volumes que os sepultam, e do qual é essencial que nos possamos defender.
Para cada livro que se abre num descuido de quem não espera grande coisa, quebrando-lhe a espinha sem sentir qualquer remorso, isto até que uma frase se destaque e o atinja, fazendo dos seus dedos pequenos muros, que impedem que o texto avance demasiado depressa sobre ele, deixando de estar em causa uma possibilidade de mero saque, para o leitor se sentir dominado por um estado de espírito tão raro que a sensação é de estar a decifrar uma língua desconhecida, penetrando num caos de palavras, perseguindo sombras, detendo uma compreensão ao mesmo tempo frágil, mas tensa e tão prometedora do que lhe soa como estalidos em línguas celestes, línguas luzentes. O leitor descobre sempre num estado de exaltação essa sua capacidade de seguir o que o outro lhe dirige nessa língua íntima, como se pudesse aceder à memória dele, reflexos de sangue contrário, e, preso no papel, o próprio rumor da árvore cantando, uma dura luz de carta… Esse gosto que sente cada leitor ao trocar a sua cela por um espelho.
Esse pacto que se tece nalgum inquietante desvio da imaginação é um laço fortíssimo, e é a favor disto que Susan Sontag defendia a leitura como uma percepção intensificada, e isto contra mania de interpretar escavando a superfície das obras literárias e artísticas com instrumentos de algum tipo de arqueologia ou ciência para profanar os canais do mistério e ficar apenas perante os pertences desconexos que se acham nos túmulos. Hoje, como vinca Berardinelli, muitos desses que aparecem como leitores especializados querem fazer desta uma actividade exclusiva para historiadores e filólogos: “estuda-se para manter as coisas à distância, não para se criar um vínculo de identificação profunda”.
Por sua vez, Enzensberger deplorava qualquer método, qualquer lição prescritiva sobre o que deveria ser uma leitura correcta e ideal, preferindo essas leituras que se tornam marcantes mesmo quando são defeituosas, parciais, utilitaristas, hedonistas ou experimentais, contando que fossem actos individuais e irredutivelmente anárquicos e particulares. Mais vale esse leitor que entra por um livro tecendo o seu palimpsesto, delirando, alimentando-se para organizar as suas próprias vinhetas e digressões ou sonhos.
E, por estes dias, com a Feira do Livro de Lisboa uma vez mais a ocupar o Parque Eduardo VII, e com toda a propaganda em volta deste evento cultural, o confronto mais honesto que um leitor ainda pode fazer neste balanço anual que torna possível ler esse mapa físico de um território devastado, o que se torna mais pungente é dar com livros espantosos, dentro dos quais já nos beliscámos, livros que lemos e que de que temos alguma cópia, entre outros que se tivéssemos mais vidas gostaríamos de explorar, reencontrá-los sepultados em toda aquela massa informe, caduca, sujeitos aos piores destratos, a serem manuseados sem qualquer defesa contra o espírito cada vez mais arbitrário dos leitores, num ambiente de desordem em que fica claro como tem triunfado um regime de desgaste em que os livros valem sobretudo enquanto são o alvo de alguma campanha ou ritual fetichista. Valem sobretudo enquanto são encarados como novidades, e um certo registo guloso passa sobre eles os olhos e fala deles ficando-se por apressadas sinopses como se dissessem: se eu não fosse tão ocupado ia a correr ler este livro.
Não nos faltam desses pretensiosos animadores culturais com as suas pilhas de sugestões semanais, e todo o discurso à volta dos livros se reduziu a essa forma de exibição vulgar de títulos que não se leu, e com tanto entusiasmo e tamanho ardor à volta dos livros, com toda essa obsessão em divulgá-los e participar no esforço de promoção da leitura, tudo nos começa a dar náuseas, na medida em que pressentimos como os livros são apenas outro pretexto para essa forma de vanglória, sendo evidente o pouco tempo que sobra a estes que vão a todas para esse domínio da reclusão em que se afina e deseja aquilo que é mais difícil exprimir num discurso que não seja dirigido num registo mais íntimo. Torna-se, assim, desgastante o quão pouco realmente se entra nos livros, se discute, não os elementos de fanfarra e tráfico, mas aquilo de que neles se encontra. E se queremos deixar esse teor leviano que não vai além da leitura da contracapa e das badanas, que apenas cheira o miolo dos volumes, damos por nós aprisionados tantas vezes nos equívocos que força esta ideologia aberrante, essa promoção descerebrada que tantas vezes conduz a outro princípio de acumulação, outro expediente para os animais coleccionadores, os viciados em arquivos estéreis.
Perante essas tentações de impor uma cartografia idílica e sem grande margem para as tensões e os conflitos inerentes a qualquer apreciação crítica, a qualquer juízo valorativo, é sempre útil lembrar como Borges vincava sempre como a cultura nos devora, nos engole, nos aniquila, como também ela gera uma massa amorfa, indiferente, incapaz de ler algo que nos devolva a uma percepção intensificada da realidade.
Se os insectos chegam a estranhar a falta de apetite dos homens para os livros, não deixa de haver esse género de leitores que procuram os livros mais curiosos sobretudo pelas marcas do tempo, dedicando-se a observar os mosquitos e demais insectos embalsamados entre o papel, entre outros elementos que animal os leitores das mais extravagantes formas de marginália que os livros comportam. E uma parte decisiva e que mantém uma noção de perspectiva e uma relação temporal mais vasta sobre o campo da edição fica sempre a dever-se à secção dos alfarrabistas, esses que, entre outros méritos, alimentam a sanha do leitor de livros usados que surge mais como um cusco, um voyeur lendo em cada rastro de um seu antecessor uma marca crítica, a sombra de um juízo possivelmente devastador e que determinou o fim que o livro veio a ter.
Nesta linha, o escritor mexicano Luigi Amara entende que há algo no pó colado às lombadas, nas inscrições e dedicatórias com tinta permanente ressequidas, que se ri da ideia de posteridade. Também por aqui se percebe como é vã todo essa enfatuação e esplendor propagandista dos pavilhões que apresentam as suas novidades fazendo da feira do livro sobretudo uma exposição sobre os métodos de fazer passar por uma panaceia esses escolhos que vão naufragando enquanto por ali se tece estreitamente uma fina teia na qual se entretece uma tradição antiquíssima e que desde sempre se foi esquivando aos best-sellers que representam as ansiedades que morrem com cada época. Como lembra Luigi Amara num proveitoso diálogo com Jorge Carrión incluído no livro “Contra a Amazon”, “um mundo em extinção também serve de refúgio, de ponto de referência, e às vezes é necessário pôr-se a salvo da esmagadora catarata de novidades – todas elas anunciadas como ‘festas da linguagem’, como a-derradeira-obra-que-ninguém-pode-perder (…). De certa maneira, esses livros empoeirados, carcomidos pelas traças, estão, por sua vez, carregados de futuro (…), esses livros amarelentos e frágeis que sobreviveram ao naufrágio encarnam, também, uma ideia de livro, da sua materialidade e discurso tipográfico, que vale como um duplo refúgio face à transbordante miséria editorial imperante, como esse contraponto ou distanciamento que permite ver a escuridão do presente e apontar, assim, noutras direcções”.
Assim, a feira do livro também pode ser encarada como uma biblioteca e um labirinto que representa o desgastante tracejado de um tempo e um lugar que nos revela as suas fixações e frivolidades, permitindo uma leitura distorcida, crua e sarcástica dos elementos que nos oferece naquela sua composição publicitária. E é quase à saída, no canto inferior e às esquerda, da perspetiva de quem desce o Parque Eduardo VII, que temos essa outra “linha descontínua e caprichosa de donos e revendas, de entusiasmos e desdéns”, livros que carregam outra experiência, e que sobreviveram também aos entusiasmos mais daninhos, e mantêm o seu vigor de promessa e são, ao mesmo tempo, relíquias de um tempo que passou, e respiram esse ar anacrónica das coisas que aguardam o seu tempo com uma paciência que é o testemunho mais vigoroso contra um mundo cambaleando pelas diversas misturas de veneno da sua pressa desoladora.
Terminando aquele percurso do lado dos alfarrabistas, damos com esses livros usados que se desfizeram já dos efeitos e das manigâncias do que nos aparece como uma “leitura obrigatória”. Estão ali, na sua grande maioria desvalorizados, com o seu ar inenfático e mais para o silvestre, frágeis como fruta tocada, trazem em si as marcas e os sinais dessa condição de coisas que passam pelas nossas estantes estando apenas de passagem, “uma vez que esse lugar que lhes confiamos não é mais que uma escala na longa peregrinação do acaso” (Amara).
É aí que, de ora em diante, é mais provável que venhamos a dar com o testemunho dessas vozes que podemos recuperar nessa vibração que, mesmo tão evanescente, perdura nos livros como o rasto audível de uma vida. A este propósito vale a pena recordar um poema de José Alberto Oliveira, autor e tradutor desaparecido há menos de um mês. “Noites longas. Repara/ como há quanto tempo/ és funcionário da vida/ e te arrepia o que o mercado/ possa fazer do teu produto –/ antes ficar quieto, a olhar/ para as estantes, tentando/ perceber se não escreves/ o poema por te faltar/ a inspiração (se é/ que gostarias/ de saber o que te falta)/ ou por todos os prazos/ terem sido vencidos/ e o que contemplas/ serem os avisos repetidos/ de uma derrota previsível.”
Também José Pinho, um desses fazedores desenfreados que tornam muitas vezes tão difícil perceber onde começa uma relação democrática e a resistência possível desses espaços onde impera o gosto pela leitura, e onde tudo isso dá lugar a mais um modelo do espectáculo que vem ajudar a essa expropriação simbólica ao veicular um regime arbitrário em que o conhecimento já não consegue sair vivo de todas as máscaras do invólucro. Nos últimos anos, com toda essa farândola de eventos em que os livros eram sobretudo empunhados como amuletos e emblemas, requerendo apoios e patrocínios que vinham gerar uma indistinção degradante dessas diferenças abissais que pode haver entre dois títulos, essa forma de caucionar tudo permitiu uma forma de inventariação em que o que menos interessava eram os livros, de tal modo que na Livraria Ler Devagar, o bestial fundo de que José Pinho tanto se orgulhava era constituído por livros em péssimas condições físicas, mas que continuavam a ostentar o preço que tinham quando foram adquiridos. Ou seja, em certa medida, não passava de uma grande encenação, livros que interessava menos propor e dar a ler do que exibir como uma infância genérica de modo a extorquir esses valores que a sociedade oferece a alguns no sentido de abater alguma da sua má-consciência.
Mas uma verdadeira livraria deveria também submeter-se a critérios de composição literários, como um organismo em evolução, não se deixando petrificar nem funcionando como um museu decrépito ou um mausoléu com vista a vender velas e sacar rendas às viúvas. As livrarias, as bibliotecas e até mesmo as feiras de livros devem, tanto quanto possível, ser concebidos como engenhos capazes de articular relações dinâmicas e estabelecer afinidades mais e menos óbvias, não cedendo às facilidades de um mero arquivo em que as partes vivas foram embalsamadas. Estes espaços devem desdobrar-se, seguindo essas migrações, como as sinapses que se dão ao longo da trama que vai estabelecendo um leitor. Quanto mais possibilidades de reconstrução, quanto maiores forem as opções no sentido de configurar colagens provisórias em que os novos vínculos possam ser imaginados pelos leitores, mais esses espaços irão ter um papel instrutivo em relação às competências que desenvolve o leitor. Recorrendo ao exemplo de Aby Warburg, “autor da biblioteca mais fascinante do século XX, Carrión diz-nos que, para ele, uma biblioteca só tinha razão de ser se pudesse percorrer-se, passear-se. “No olhar do caminhante, as imagens e os textos disparavam entre elas flechas invisíveis, sinapses neuronais: a electricidade que nutre a história das formas e da arte”.
Depois de visitar essa mítica biblioteca, Toni Cassirer disse que não se tratava de uma mera colecção de livros, mas de uma colecção de problemas. “Uma biblioteca só tem sentido se acalmar o tempo que desassossega, se solucionar, mas sobretudo propuser enigmas, desafios”, acrescenta Carrión. Se os livros em companhia são cadeias de significado, contextos mutantes, perguntas que mudam de entoação e de respostas, o escritor espanhol sublinha que uma biblioteca tem de ser heterodoxa, uma vez que só a combinação de elementos diversos, de relações problemáticas, pode conduzir a um pensamento próprio. Hoje, e entre nós, as bibliotecas e as livrarias abdicam das possibilidades infinitas que nos oferece o monumental puzzle da edição, e assim constrangem ainda mais os já limitados orçamentos e os esforços de resistência destes “teatros da memória” que poderiam oferecer-nos uma espécie de desforra contra o presentismo que vigora entre nós com todo o seu optimismo imbecil e desvitalizado desses profissionais e oportunistas de um humanismo progressista que recusa sempre entrar em conflito com uma política de terra queimada.
É isto o que leva a que hoje se percorra aquele parque aonde os livros regressam a cada ano como aves migratórias em números que, mantendo-se estáveis, nos surgem organizados em esquadrões e segundo tendências da estação, e sempre com prejuízo ao nível da diversidade das espécies. Assim, é contra essa forma de degradação que Carrión nos lembra como, à semelhança das flores que, para se reproduzirem, se aliam aos insectos e ao vento, também as bibliotecas e estes certames ligados à difusão dos livros e da leitura, também eles precisam de leituras que assumam esse risco e essa necessidade de interromper o curso desta disciplina de fuga para a frente, impondo um tempo lento de modo a que tenhamos a possibilidade de nos informar, de contrastar as nossas experiências face às de outros espíritos ao longo do tempo, para que os livros não se tornem apenas mais outro elemento que ajuda à dissolução e à fugacidade, mas que se retome esse poder de suspensão como nos descrevia Eduarda Dionísio no seu “Retrato dum Amigo Enquanto Falo”: “Quando no pinhal começavam a ler livros, estendidas nos cobertores de listas ou de quadrados, ampliava-se o silêncio das árvores, das outras plantas e os insectos redobravam o permanente silvo – as cigarras.
O chão estava muitas vezes seco e duro e as plantas amoleciam ainda verdes e molhadas na manhã. Liam umas vezes com muito entusiasmo e outras vezes com um grande tédio, como se cumprissem um destino marcado por alguém. Liam como um dever sagrado muitas vezes sem compreender como se perdiam as guerras, em que momento começava o grande amor e a idade da personagem principal. Às vezes adormeciam por dentro e a atenção dormente só percorria as linhas sem entender o seu sentido, só viam letras até que a cabeça podia cair sobre os braços, ali ficavam a murmurando palavras que o azul do ar absorvia, ouvindo o zumbido das moscas e dos moscardos e às vezes mais longe um transístor que ou debitava umas poucas notícias – eram falsas nesta altura, sempre falsas, lembras-te? – ou então fados, guitarradas, músicas americanas, anúncios.”