A justiça a política e a guerra


 


Como já aqui referi, os diversos regimes políticos, em determinado momento da sua história, sempre tentaram usar os sistemas de Justiça para legitimarem, aos olhos dos cidadãos, as medidas mais penosas que, pelas mais diversas razões, entenderam tomar contra quem os contrariava.

Depois da Itália das «mãos limpas», ensaiaram-se, também, em muitos países europeus, aproveitamentos da ação da Justiça para os efeitos políticos mais diversos.

O que se passou, não há muito tempo, no Brasil e acontece, agora, nos EUA revela, também, a prioridade dada à utilização da Justiça na resolução de conflitos políticos.

Em França, um antigo presidente da República foi, entretanto, condenado a prisão efetiva.

O juízo político sobre os políticos e as medidas por eles prosseguidas passou, assim, a depender de juízos penais.

Em vez de se valorizar o debate de ideias e propostas, que, essas sim, importaria politicamente ponderar, instaura-se, agora, um processo.

Com efeito, de um regime de quase total imunidade que salvaguardava os políticos em exercício ou já retirados, passou-se, depois, a uma intervenção judiciária alargada e persistente sobre a sua atuação concreta.

Daí resultou um equívoco:  na verdade, uma ideia ou medida política não passam a ser boas se os que as tiveram e levaram a cabo não foram condenados em algum tribunal criminal por causa delas, sendo o contrário também é verdade.

A ação política passou, assim, a ser mediada e balizada pela Justiça, pela investigação criminal e pelo esquadrinhar dos autos de processo que revelem os comportamentos pessoais – e mesmo privados e íntimos – dos que a ela se dedicam.

A Justiça – e principalmente os que, de dentro ou de fora, a manipulam – já não necessita, assim, como antes acontecia, de encenar julgamentos espetáculo, de onde resultavam, em regra, penas exemplares e com propósitos de prevenção geral quase exclusivamente políticos.

Basta, agora, deixar saber nos media que uma investigação criminal está a decorrer contra o senhor A ou B e que ela se dirige ao apuramento de crimes indiciariamente praticados por eles, no âmbito e por causa do exercício de tais funções.

O simples enunciado do objeto de tais investigações e do nome dos suspeitos conduz, de imediato, aos resultados políticos pretendidos: a demonização da Política e dos políticos, o afastamento dos adversários.

Do espetáculo forense ensaiado com fins políticos, passou-se, pois, à insinuação letal.

Esse não é, contudo, o único ou sequer o mais importante campo de interseção entre a Justiça e a política.

Infelizmente, há, no plano internacional, situações bem mais graves e arrevesadas no que respeita à manipulação da Justiça.

Com a criação do Tribunal Penal Internacional (TPI), procurou-se concretizar um sistema de Justiça internacional para crimes praticados na execução de decisões políticas ou militares que, dada a sua danosidade para os mais elementares direitos humanos, poderiam ficar impunes, face à inação ou conivência das justiças nacionais dos perpetradores de tais crimes.

A criação cuidada de um aparelho de Justiça internacional independente – pensavam os que o imaginaram – pretendia evitar, além disso, os vícios de legitimidade que sempre foram apontados ao Tribunal de Nuremberga, o qual, na sequência da vitória dos aliados, julgou alguns dos responsáveis pelo regime nazi.

Vícios, entre outros, respeitantes à composição desse tribunal por juízes e MP originários das potências vencedoras, que, obviamente, não mostravam ser terceiros desinteressados em relação à ação dos suspeitos em investigação.

De um lado, com o TPI, procurou criar-se um tribunal legal, internacionalmente reconhecido, legitimado e pré-estabelecido e, assim, apenas competente para julgar crimes praticados depois do início das suas funções.

De outro, estabeleceu-se, ainda, o quadro de crimes da competência de tal tribunal, definindo-se, também, com algum rigor, os próprios tipos legais dos crimes para cujo julgamento o TPI passaria a ser competente.

Consagrou-se, ainda, uma solução que devia assegurar uma composição descomprometida dos membros do tribunal chamado a julgar os casos em causa; enfim, as normas que garantissem a isenção e a idoneidade dos magistrados que integram o tribunal.

Acontece que, precisamente, os países mais implicados na prática de ações político-militares que, por norma, conduzem à concretização de tais crimes, não aderiram ou não assinaram o tratado que instituía o TPI: por exemplo, nem os EUA, nem a Rússia, nem a China aceitam hoje a jurisdição do TPI.

Outros, como a Ucrânia, não tendo aderido ao tratado que instituiu o TPI, aceitam a sua jurisdição, na condição de os visados por ele não serem nacionais.

Queira-se ou não, tal jurisdição está hoje limitada a julgar os responsáveis de países pouco influentes ou os potenciais vencidos nos conflitos que voluntariamente quiseram travar ou em que foram envolvidos pela intriga, mais ou menos descarada, de outros países.

O que era inicialmente uma ideia boa, transformou-se, assim, num instrumento que corre o enorme risco de ser manipulado ao sabor das circunstâncias e conveniências políticas de uns poucos Estados mais poderosos que, por outro lado, a ele não se submetem, nem permitem que seus nacionais possam neles responder.

Alguns deles ameaçam mesmo o TPI e os seus magistrados com sanções, se isso acontecer.

A instrumentalização da Justiça para fins políticos tem vindo, assim, a desenvolver uma dimensão perigosa para os valores que, aparentemente, a justificam: a pretensão de assegurar a igualdade de todos perante a lei.

Acresce que, hoje-em-dia, a utilização da Justiça para fins políticos não passa, necessariamente – como antes referimos – apenas, pela eventual e tendenciosa formulação de uma acusação ou por um julgamento pouco imparcial dos crimes imputados aos seus autores materiais e morais.

Hoje, basta divulgar, oportunamente, nos media, que tais crimes estão a ser investigados e quem são os suspeitos.

O efeito que de tais notícias resulta basta-se com isso mesmo: em muitos casos, produz mesmo a morte cívica do visado, sem que este venha sequer a ser acusado ou julgado na Justiça pelos factos pirateados pelos media na investigação judicial e relatados depois livremente por eles.

Uma das outras dimensões da utilização política da Justiça – nacional ou internacional – é, na mesma linha, a da indicação pública prévia de quem serão os futuros alvos (exclusivos ou prioritários) das próximas iniciativas da Justiça internacional.

Tal atuação comprometida agrava-se quando, desde logo, se escolhem e nomeiam, para órgãos que devem agir com isenção no apoio às autoridades judiciárias nacionais ou às equipas internacionais de investigação já existentes, grupos de magistrados/investigadores que provêm, apenas, de uma das partes do conflito.

Com isso se contraria, aliás, toda a lógica que presidiu à criação de instrumentos de Justiça internacional independentes.

A apropriação, real ou aparente, dos órgãos de Justiça e a sua utilização como uma arma de guerra à disposição de, apenas, uma das partes – aconteça ela no plano internacional ou nacional – longe de garantir a imagem de isenção que de tais órgãos se exige, tende, assim, e pelo contrário, a neutralizar o sentido dos valores políticos e éticos que justificam a sua criação.

Enfim, deslegitima tais órgãos aos olhos dos cidadãos e põe em causa os princípios do Estado de Direito.

E isso é, também, um risco para a credibilidade da atividade dos órgãos judiciais ou judiciários que atuam relativamente a outros crimes socialmente graves mas que não têm especialmente a ver com o exercício da Política.

Numa guerra, todos sabemos, qualquer das partes envolvidas comete crimes suscetíveis de serem julgados pela Justiça nacional ou internacional.

Não há, assim – não deve haver – crimes bons ou maus, conforme a simpatia que nos possa merecer uma outra causa: crimes que devam ser investigados e outros que, de antemão, se considerem justificados.

Limitar a investigação aos crimes cometidos apenas por uma das partes compromete, aos olhos dos cidadãos, a isenção das autoridades judiciais que assim atuam.

Daí, também, a mais moderna Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, que consagrou explicitamente, pela primeira vez no âmbito deste tipo de declarações internacionais, que é proibida no seio da UE a criação de tribunais com a competência para julgar crimes cometidos anteriormente ao início das suas funções.

É essa preocupação que exprime, também, mesmo que de forma mais simplista, o popularizado dito: «à Justiça o que é da Justiça, à Política o que é da Política.»

Para que a Justiça seja feita sem subordinação ao primado da Política é, porém, necessário que ela seja e pareça isenta e não, como começa a acontecer com alguma regularidade, empenhada e militante: para a Justiça ser Justiça tem de ser feita por quem é independente, objetivo e terceiro face ao caso a investigar ou a julgar.

A justiça a política e a guerra


 


Como já aqui referi, os diversos regimes políticos, em determinado momento da sua história, sempre tentaram usar os sistemas de Justiça para legitimarem, aos olhos dos cidadãos, as medidas mais penosas que, pelas mais diversas razões, entenderam tomar contra quem os contrariava.

Depois da Itália das «mãos limpas», ensaiaram-se, também, em muitos países europeus, aproveitamentos da ação da Justiça para os efeitos políticos mais diversos.

O que se passou, não há muito tempo, no Brasil e acontece, agora, nos EUA revela, também, a prioridade dada à utilização da Justiça na resolução de conflitos políticos.

Em França, um antigo presidente da República foi, entretanto, condenado a prisão efetiva.

O juízo político sobre os políticos e as medidas por eles prosseguidas passou, assim, a depender de juízos penais.

Em vez de se valorizar o debate de ideias e propostas, que, essas sim, importaria politicamente ponderar, instaura-se, agora, um processo.

Com efeito, de um regime de quase total imunidade que salvaguardava os políticos em exercício ou já retirados, passou-se, depois, a uma intervenção judiciária alargada e persistente sobre a sua atuação concreta.

Daí resultou um equívoco:  na verdade, uma ideia ou medida política não passam a ser boas se os que as tiveram e levaram a cabo não foram condenados em algum tribunal criminal por causa delas, sendo o contrário também é verdade.

A ação política passou, assim, a ser mediada e balizada pela Justiça, pela investigação criminal e pelo esquadrinhar dos autos de processo que revelem os comportamentos pessoais – e mesmo privados e íntimos – dos que a ela se dedicam.

A Justiça – e principalmente os que, de dentro ou de fora, a manipulam – já não necessita, assim, como antes acontecia, de encenar julgamentos espetáculo, de onde resultavam, em regra, penas exemplares e com propósitos de prevenção geral quase exclusivamente políticos.

Basta, agora, deixar saber nos media que uma investigação criminal está a decorrer contra o senhor A ou B e que ela se dirige ao apuramento de crimes indiciariamente praticados por eles, no âmbito e por causa do exercício de tais funções.

O simples enunciado do objeto de tais investigações e do nome dos suspeitos conduz, de imediato, aos resultados políticos pretendidos: a demonização da Política e dos políticos, o afastamento dos adversários.

Do espetáculo forense ensaiado com fins políticos, passou-se, pois, à insinuação letal.

Esse não é, contudo, o único ou sequer o mais importante campo de interseção entre a Justiça e a política.

Infelizmente, há, no plano internacional, situações bem mais graves e arrevesadas no que respeita à manipulação da Justiça.

Com a criação do Tribunal Penal Internacional (TPI), procurou-se concretizar um sistema de Justiça internacional para crimes praticados na execução de decisões políticas ou militares que, dada a sua danosidade para os mais elementares direitos humanos, poderiam ficar impunes, face à inação ou conivência das justiças nacionais dos perpetradores de tais crimes.

A criação cuidada de um aparelho de Justiça internacional independente – pensavam os que o imaginaram – pretendia evitar, além disso, os vícios de legitimidade que sempre foram apontados ao Tribunal de Nuremberga, o qual, na sequência da vitória dos aliados, julgou alguns dos responsáveis pelo regime nazi.

Vícios, entre outros, respeitantes à composição desse tribunal por juízes e MP originários das potências vencedoras, que, obviamente, não mostravam ser terceiros desinteressados em relação à ação dos suspeitos em investigação.

De um lado, com o TPI, procurou criar-se um tribunal legal, internacionalmente reconhecido, legitimado e pré-estabelecido e, assim, apenas competente para julgar crimes praticados depois do início das suas funções.

De outro, estabeleceu-se, ainda, o quadro de crimes da competência de tal tribunal, definindo-se, também, com algum rigor, os próprios tipos legais dos crimes para cujo julgamento o TPI passaria a ser competente.

Consagrou-se, ainda, uma solução que devia assegurar uma composição descomprometida dos membros do tribunal chamado a julgar os casos em causa; enfim, as normas que garantissem a isenção e a idoneidade dos magistrados que integram o tribunal.

Acontece que, precisamente, os países mais implicados na prática de ações político-militares que, por norma, conduzem à concretização de tais crimes, não aderiram ou não assinaram o tratado que instituía o TPI: por exemplo, nem os EUA, nem a Rússia, nem a China aceitam hoje a jurisdição do TPI.

Outros, como a Ucrânia, não tendo aderido ao tratado que instituiu o TPI, aceitam a sua jurisdição, na condição de os visados por ele não serem nacionais.

Queira-se ou não, tal jurisdição está hoje limitada a julgar os responsáveis de países pouco influentes ou os potenciais vencidos nos conflitos que voluntariamente quiseram travar ou em que foram envolvidos pela intriga, mais ou menos descarada, de outros países.

O que era inicialmente uma ideia boa, transformou-se, assim, num instrumento que corre o enorme risco de ser manipulado ao sabor das circunstâncias e conveniências políticas de uns poucos Estados mais poderosos que, por outro lado, a ele não se submetem, nem permitem que seus nacionais possam neles responder.

Alguns deles ameaçam mesmo o TPI e os seus magistrados com sanções, se isso acontecer.

A instrumentalização da Justiça para fins políticos tem vindo, assim, a desenvolver uma dimensão perigosa para os valores que, aparentemente, a justificam: a pretensão de assegurar a igualdade de todos perante a lei.

Acresce que, hoje-em-dia, a utilização da Justiça para fins políticos não passa, necessariamente – como antes referimos – apenas, pela eventual e tendenciosa formulação de uma acusação ou por um julgamento pouco imparcial dos crimes imputados aos seus autores materiais e morais.

Hoje, basta divulgar, oportunamente, nos media, que tais crimes estão a ser investigados e quem são os suspeitos.

O efeito que de tais notícias resulta basta-se com isso mesmo: em muitos casos, produz mesmo a morte cívica do visado, sem que este venha sequer a ser acusado ou julgado na Justiça pelos factos pirateados pelos media na investigação judicial e relatados depois livremente por eles.

Uma das outras dimensões da utilização política da Justiça – nacional ou internacional – é, na mesma linha, a da indicação pública prévia de quem serão os futuros alvos (exclusivos ou prioritários) das próximas iniciativas da Justiça internacional.

Tal atuação comprometida agrava-se quando, desde logo, se escolhem e nomeiam, para órgãos que devem agir com isenção no apoio às autoridades judiciárias nacionais ou às equipas internacionais de investigação já existentes, grupos de magistrados/investigadores que provêm, apenas, de uma das partes do conflito.

Com isso se contraria, aliás, toda a lógica que presidiu à criação de instrumentos de Justiça internacional independentes.

A apropriação, real ou aparente, dos órgãos de Justiça e a sua utilização como uma arma de guerra à disposição de, apenas, uma das partes – aconteça ela no plano internacional ou nacional – longe de garantir a imagem de isenção que de tais órgãos se exige, tende, assim, e pelo contrário, a neutralizar o sentido dos valores políticos e éticos que justificam a sua criação.

Enfim, deslegitima tais órgãos aos olhos dos cidadãos e põe em causa os princípios do Estado de Direito.

E isso é, também, um risco para a credibilidade da atividade dos órgãos judiciais ou judiciários que atuam relativamente a outros crimes socialmente graves mas que não têm especialmente a ver com o exercício da Política.

Numa guerra, todos sabemos, qualquer das partes envolvidas comete crimes suscetíveis de serem julgados pela Justiça nacional ou internacional.

Não há, assim – não deve haver – crimes bons ou maus, conforme a simpatia que nos possa merecer uma outra causa: crimes que devam ser investigados e outros que, de antemão, se considerem justificados.

Limitar a investigação aos crimes cometidos apenas por uma das partes compromete, aos olhos dos cidadãos, a isenção das autoridades judiciais que assim atuam.

Daí, também, a mais moderna Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, que consagrou explicitamente, pela primeira vez no âmbito deste tipo de declarações internacionais, que é proibida no seio da UE a criação de tribunais com a competência para julgar crimes cometidos anteriormente ao início das suas funções.

É essa preocupação que exprime, também, mesmo que de forma mais simplista, o popularizado dito: «à Justiça o que é da Justiça, à Política o que é da Política.»

Para que a Justiça seja feita sem subordinação ao primado da Política é, porém, necessário que ela seja e pareça isenta e não, como começa a acontecer com alguma regularidade, empenhada e militante: para a Justiça ser Justiça tem de ser feita por quem é independente, objetivo e terceiro face ao caso a investigar ou a julgar.