Miniaturas que contam grandes histórias

Miniaturas que contam grandes histórias


Aquilo que faz é raro: modelismo de réplicas de coches que funcionam tal e qual como os modelos originais. José Cardoso Brito, atualmente com 70 anos, começou a fazer as suas construções aos seis. Hoje podemos apreciar as suas peças primorosas no Museu Nacional dos Coches, com direito a explicação de viva voz por quem…


Apaixonou-se pelo modelismo pouco tempo antes de aprender a escrever, aos seis anos. Ao observar os barcos utilizados pelo pai no trabalho, surgiu-lhe a ideia de reproduzir o que via com os materiais que encontrava. A sua primeira peça foi construída com casca de pinheiro e folhas de abóbora. Mas o passar do tempo foi-lhe atiçando a criatividade e a exigência. Os coches começaram a ser o seu fascínio e a forma como os constrói mostra a genialidade deste autodidata. Réplicas que funcionam, componentes construídas ao pormenor, ferramentas que têm de ser inventadas porque não existem à venda.

José Cardoso Brito tem 70 anos e as suas miniaturas podem ser apreciadas no Museu Nacional dos Coches – na exposição temporária Modelismo de Coches -, perto dos originais que lhes serviram de inspiração, até ao final do ano. Todos os domingos, o artista encontra-se no espaço, para falar com os visitantes e explicar todo o processo criativo de cada um dos seus ‘filhos’. «Não penso em vendê-los nem desfazer-me deles! São 21 e têm todos uma história que me fascina por trás. Deram todos muito trabalho e são parte de mim. Gosto de mostrá-los, expô-los, explicar às pessoas como os faço e ajudar quem tem a ambição de fazê-los», explica à LUZ.

As réplicas são feitas à escala 1/10, atingindo um comprimento entre 50 e 70 cm. E, ao contrário do que muitas pessoas pensam quando as veem, as miniaturas funcionam mesmo, tal como os originais. Todas as peças foram construídas por José Cardoso Brito, desde as rodas aos candeeiros, portas e janelas. Para as crianças, segundo o artista, «só faltam os cavalos».

Recentemente, duas delas viajaram para a Alemanha, para figurar na exposição Dar um Rosto à Paz, no Museu Diocesano de Osnabruck. «É para mim motivo de grande satisfação e regozijo ter sido convidado a participar em tão importante evento com alguns dos meus trabalhos», admite o autor. A exposição terá início a 22 de maio e pode ser visitada até novembro na sala do tesouro da Catedral de Osnabruck. 

Um autodidata persistente 

Mas voltemos ao princípio. De que forma uma criança se apaixona pelo modelismo e, sozinha, se torna um especialista nesta arte que vive do detalhe?

José Cardoso Brito nasceu a 27 de fevereiro de 1953 no Casal da Lapa, concelho da Pampilhosa da Serra. Terra que deixou quando tinha treze anos de idade para ir viver para casa de uns tios em Lisboa e aí começar a trabalhar. Antes disso, já a paixão havia tomado conta dele. «Desde pequenino que tenho habilidade para fazer qualquer coisa. No entanto, o meu pai era quem transportava as pessoas de um lado para o outro durante a construção da barragem de Santa Luzia. Eu via-o quando vinha com as pessoas e arrumava o barco. Comecei a ter um grande fascínio. A silhueta do barco a reproduzir-se na água quando esta estava calminha… Fiquei com a ideia de que um dia iria construir um barco», recorda. 

Além disso, aos seis anos José também já acompanhava os pais no tratamento dos pinheiros. «Comecei a arrancar a casca da árvore, um tipo de matéria que não afunda. Tirava uma faca à minha mãe e começava a cortar, fazendo o feitio de um barco. Pegava também uma folha de abóbora, porque são largas, e fazia a vela. Colocava aquilo na água e deliciava-me a ver o barco a flutuar», descreve. 

Depois, em Lisboa, já mais velho, deparou-se com uma loja na Baixa que vendia kits de réplicas de barcos, para construir. «Tinha na montra uma Caravela dos Descobrimentos, uma réplica da Caravela Bartolomeu Dias», lembra. «Aquilo era um kit de uma fábrica portuguesa que infelizmente já não existe, acho que se chamava Valentina. Eles tinham essa caravela, um moliceiro e um barco rabelo. Mas eu achei muita piada à caravela, porque de alguma forma tinha algumas semelhanças com o barco com que o meu pai trabalhava. Comprei o kit e levei para casa. Comecei a montar aquilo. Os meus tempos livres começaram a ser passados nisso. À primeira ninguém consegue, mas é tudo uma questão de persistência, de gosto, de amor por aquilo que se está a fazer», garante. 

Terminada a caravela, José Cardoso Brito sentiu que precisava de algo mais complexo. Comprou uma Fragata do Tejo. «Chamava-se Arte Naval. Comecei a fazer… A partir daí comecei a fazer mais e melhor, maior, mais bonito, mais pormenorizado. Depois comprei um ainda mais complicado, que me demorou um ano e meio a construir. Seguiu-se outro barco que vivia no meu imaginário, das Aventuras do Tintim. Um barco veleiro que foi utilizado na banda desenhada. Fui montando, mas esses kits técnicos nunca têm aquele pormenor ao detalhe, porque se não não são rentáveis para as empresas que os constroem», explica. 

Foi colocando o grau de dificuldade numa fasquia cada vez mais alta. Deslocou-se ao Museu da Marinha onde se veem os planos de todos os barcos portugueses e comprou uma réplica da Fragata D Fernando II e Glória. «Fiquei apaixonado quando estive dentro dela na Expo 98. Na minha cabeça ouvia: ‘Tenho de fazer este barco. É tão bonito!’. Fui ao Museu, comprei os planos, que são feitos à escala 1/96, mas o modelo ficou grande. Ocupa muito espaço. O problema dos barcos é precisamente esse. A volumetria que têm, por causa das vergas, dos mastros, da retranca, etc.», lamenta. Construiu ainda outros, mas nenhum ficava com os detalhes de que tanto gosta. 

Dos barcos aos coches

«Queria fazer uma coisa que me desse ainda mais luta. Do que é que me lembrei? Ir ao Museu dos Coches antigo. Queria perceber se havia a possibilidade de entrar e ver se existia algum que fosse mais fácil de construir, porque em termos volumétricos são muito mais reduzidos que os barcos, ocupam menos espaço e são mais fáceis tanto de transportar como de arrumar», explica o artista. «Não foi fácil, porque como sabe uma pessoa não chega ao Museu e diz que gostava de ver as peças para fazer réplicas. Fui lá uma ou duas vezes, expliquei o que pretendia fazer, qual era a minha ideia. Lá consegui autorização para escolher o coche mais fácil de se fazer. A verdade é que nenhum era fácil!», admite. Optou pelo coche de Dona Maria Francisca de Saboia. 

Passou mais de cinco dias, quando o museu estava fechado, a tirar medidas. «Ficava lá o dia todo fechado, a tirar as medidas, fazer esboços, tirar fotografias de todos os pormenores. Depois, chegava a casa, passava aquilo a limpo e tentava fazer um plano mais próximo possível do original. Há partes que não são visíveis, estão blindadas, e aí é preciso um pouco de criatividade».

O problema desta área, diz, é que «não existem planos geométricos em parte nenhuma do mundo». A única solução é ser a própria pessoa a fazê-los. «Peguei na máquina fotográfica, numa prancha, numa folha de papel A4, uma régua e tirei as medidas todas para a construção. São centenas de medidas. Desde as rodas, que é a coisa pela qual gosto de começar sempre, ao chassis – estrutura inferior -, os eixos de trás e da frente e, por fim a caixa, ou corpo do coche – parte que requer mais concentração – que detém os tecidos, as janelas, as portas». Por gostar de reproduzir as peças com realismo, Nessa altura, tratou de obter todos os materiais necessários. «Os tecidos, por exemplo. Usava-se um tecido chamado damasco que hoje já não se encontra, veludo, pele natural», lembra. 

Todas as suas peças estão construídas à escala 1/10. «Optei por esta escala por duas razões fundamentais: a primeira porque é um tamanho relativamente pequeno, que ajuda no transporte, a guardar, na exposição e é um tamanho mais uniformizado; a segunda é o limite em que é possível reproduzir tudo o que tem o original, a funcionar. É uma particularidade minha. Se fosse mais pequeno já não seria possível construir», considera. Mas esta fidelidade ao detalhe compensa. «Tenho pessoas um pouco por todo o mundo, desde a Austrália, aos EUA, que gostam e admiram o meu trabalho. Isso acaba por ser um incentivo».

Peça a peça 

Infelizmente, as casas onde José Cardoso Brito habitualmente comprava os materiais para os seus modelos praticamente já não existem. As dificuldades em encontrar esses materiais são cada vez maiores. «Tive de chegar ao extremo de eu próprio fabricar cordoaria em miniatura, para ter todas aquelas decorações que envolvem os painéis, as janelas, as portas, com um cordão multicores. Não se encontrava cordoaria nem com a espessura, nem com as dimensões. As proporções são críticas neste aspeto, porque salta logo à vista. Uma porta com um portão grosso não faz sentido», exemplifica.

E a paixão, a dada altura, não se tornou um vício? «Acho que depois de fazer o primeiro realmente ganhei um vício. Comecei também a ganhar uma amizade e confiança com as pessoas que trabalhavam no Museu dos Coches. Claro que com o tempo, as réplicas também foram ficando melhores. Comecei a utilizar folha de ouro, um trabalho que requer uma especialidade muito grande», congratula-se.

Fazer cada peça demora em média entre seis meses e dois anos. «As pessoas ficam sempre surpreendidas porque, infelizmente, o mundo quer carregar no botão e que esteja tudo feito. Este é um trabalho que requer muito pormenor. Que requer muita paciência. Eu nunca tenho pressa para ver a peça terminada. Não posso ter. Estes trabalhos requerem também um espaço, para trabalhar madeiras, soldar a prata… Tudo isto faz parte. Aprendi tudo sozinho», reforça.

Relativamente à satisfação que sente no fim de cada construção, José Cardoso de Brito assume: «Nunca fico desiludido. Claro que, como em tudo na vida, surgem obstáculos no processo. Mas há sempre uma forma de contornar as situações. Há uns projetos que me acompanham na hora de dormir, parece que ficam debaixo do travesseiro. E, no dia seguinte, encontro uma solução para esse problema». A frustração só surge quando as pessoas não acreditam que foi ele a construir todas as peças. «Perguntam-me onde comprei os candeeiros, as rodas. Eu não compro nada. Eu tenho de fazer tudo!», exclama. 

Por outro lado, agradam-lhe os comentários e observações que as pessoas fazem ao seu trabalho: «Uns ficam muitos surpreendidos, outros vão ver a exposição imensas vezes. As crianças também colocam questões, o que é muito engraçado. Perguntam como é que eu faço, porque é que não lá estão os cavalos», brinca.

Cada miniatura, uma história

Sobre o que as peças significacam para quem as cria, José Cardoso Brito aponta que cada uma delas tem uma história para contar. «Tenho uma coleção da Malaposta que são réplicas fiéis da coleção dos correios. Essas faziam a ligação entre Lisboa, Coimbra e Porto. Faziam o transporte de correio, mas também de passageiros. Demoravam 43 horas a fazer o percurso e paravam em 23 estações para substituírem os cavalos, tirar bagagens, entrarem e saírem passageiros… Tudo aquilo era cronometrado ao segundo». 

E chama a atenção para o que Filipe III (de Espanha, II de Portugal) quando veio de Madrid para Lisboa. A viagem demorou dois meses e depois por cá ficou… É dos coches mais antigos do mundo no seu estado original. «A minha miniatura foi para a Alemanha juntamente com o coche de Maria Francisca de Saboia», adianta.

Além dos que estão expostos no Museu dos Coches, o artista possui muitos outros em casa. «Tenho a réplica do primeiro automóvel que veio para Portugal em 1895, comprado em Paris, pelo Conde de Avilez», afirma com orgulho. «Fez a primeira viagem entre Lisboa e Santiago do Cacém, de onde ele era natural. Demorou um dia e foi o primeiro acidente de automóvel. O Conde atropelou um burro». Este automóvel dos primórdios não tinha volante, mas apenas uma alavanca, nem sistema elétrico, substituído por dois sensores permanentemente acesos ao rubro dentro do cilindro que provocava a explosão e punha o motor a trabalhar. «Ele anda, os bancos, os assentos, estão iguais aos originais. Tenho também o coche em que foi assassinado o Rei D. Carlos, quando vinha de Vila Viçosa para Lisboa. Tenho por ele um carinho muito especial. Deu-me mesmo muito trabalho. A capota move-se», continua. Atualmente está a construir uma carroça para um amigo. «Pediu-me uma carroça de transporte de vinhos».

Esta já é a segunda vez que José Cardoso de Brito expõe as suas miniaturas no Museu Nacional dos Coches. No entanto, terá de deixar de construir os seus modelos, já que «já não se encontra o material que encontrava antigamente». 

Sobre o futuro das peças, diz que não tenciona vendê-las. «Fazem parte da minha pessoa. Gosto de mostrar, explicar, expor, ensinar. Tenho três blogs em que eu explico tudo, como se constrói, de que ferramentas precisam, etc. Também construo as minhas próprias ferramentas, porque não existem para este tipo de trabalho. Temos de construir e adaptá-las àquilo que estamos a fazer», conclui.

Agora verá, mais uma vez, as suas peças expostas no estrangeiro, divulgando a sua arte e fazendo com que outros se apaixonem – quem sabe, talvez possam seguir o seu legado, mantendo vivo este modelismo raro e requintado.