Ana Lua Caiano. A nova tradição portuguesa

Ana Lua Caiano. A nova tradição portuguesa


As regras foram feitas para serem quebradas, a tradição para ser reinventada – e, em Se Dançar É Só Depois, Ana Lua Caiano propõe uma visão modernizada da música tradicional portuguesa. Com batidas mais contemporâneas e letras que expressam os seus dilemas pessoais, esta promessa da música portuguesa apresenta algumas das mais interessantes canções do ano.


Bjork, Zeca Afonso, Portishead ou Zé Mário Branco podem parecer nomes que vivem em universos completamente distintos, mas, no imaginário e música de Ana Lua Caiano, convivem harmoniosamente, formando as influências da música original desta jovem artista.

Considerada uma das maiores promessas da música portuguesa, entre metáforas que nos transportam para um Portugal rural, melodias que nos fazem recordar a nossa tradição e batidas modernas, o segundo EP de Ana Lua Caiano, Se Dançar É Só Depois, é uma contagiante lufada de ar fresco nos nossos ouvidos.

À conversa com a LUZ, a jovem artista que, no passado dia 5 de maio, lançou este seu mais recente registo, falou sobre o seu percurso, as suas influências e o processo de criação deste trabalho.

Podia explicar um pouco o início do seu percurso musical?

Estudo música desde que sou muito nova. Comecei a estudar piano aos seis anos numa escola com um registo um pouco informal. Mais tarde, quando entrei no quinto ano, entrei no primeiro grau de estudo de piano clássico, coro e formação musical, algo que continuei a estudar até ao nono ano.

Continuou a estudar neste regime mais clássico?

Não, quis sair desse estilo porque era algo muito rígido em termos de regras e eu não me identificava tanto, queria algo um pouco mais livre e, por isso, acabei por entrar no Hot Club. Comecei por fazer uns cursos que tinham apenas uma aula por semana, mas, mais tarde, entrei num curso regular e frequentei-o durante quatro anos.

Nessa altura já criava o seu próprio material musical?

Quando tinha 15 anos comecei a compor música ao piano. Inicialmente, compunha com partituras porque era o que sabia fazer (risos). Ainda não sabia utilizar programas de edição de áudio, por isso, tinha de recorrer a este método, com os meus cadernos ou até no computador. Quando passei a trabalhar com estes programas, os DAW (Digital audio workstation), encontrei uma facilidade gigante na criação musical porque podia gravar imensos sons e melodias diferentes. Comecei a explorar lentamente esta tecnologia, depois, com a pandemia, tive mais tempo para me dedicar a ela e acabei por fazer um curso na ETIC para aprofundar os meus conhecimentos.

A abertura a esta tecnologia deu-lhe uma maior liberdade criativa?

Ainda tenho os dossiers onde guardava as partituras onde escrevia as vozes, as flautas e todos os outros instrumentos, mas havia uma limitação enorme. De repente, quando passei para estes softwares já podia gravar tudo, nomeadamente, instrumentos mais tradicionais, como o bombo, mas também o som de copos ou de plásticos, coisas que, normalmente, não dão para meter numa partitura. Isto foi um passo gigante em termos de oportunidades criativas.

Parece que escrever à mão permite a criatividade fluir de uma maneira mais natural do que no computador. Isto não acontece com a música?

Quando escrevia no papel sentia que isso me limitava. Fazer uma partitura no digital permite-me ouvir todos os instrumentos ao mesmo tempo, o que é uma grande ajuda. Apesar da escrita de letras ser mais interessante manualmente, porque é um processo mais fluido, no caso de escrever música não é bem assim.

Uma das principais componentes da sua música é a influência da música tradicional portuguesa. Quando é que este estilo musical entrou na sua vida?

Desde muito nova. Os meus pais tinham muitas cassetes de cantautores portugueses como o Zeca Afonso, o Fausto ou o Zé Mário Branco, que são artistas que também tinham muitas influências deste estilo musical. Além disso, eles são autores cujas suas músicas são uma reinvenção da tradição, porque esta vertente do folclore tem uma forte componente de oralidade. Eu tive este contacto desde muito cedo e foi algo que sempre ficou comigo. Quando comecei a compor sinto que já tinha uma forte influência da música tradicional.

Tem uma relação próxima com a música tradicional? Por exemplo, tinha por hábito assistir a este tipo de concertos ao vivo?

Cheguei a ver alguns, mas as memórias que tenho mais presentes são as viagens de carro com os meus pais. A maior parte da minha família é de Aveiro e, durante as deslocações, ouvíamos este discos completamente diferentes. Diria que este foi o meu primeiro contacto com a música tradicional.

A memória que acaba de descrever é uma excelente forma de enquadrar a sua música. Esta lógica quase de MP3, onde todos os estilos musicais podem conviver e fundir-se.

Eles ouviam muito artistas como o Zeca Afonso, mas existiam outros discos completamente diferentes, como os Portishead ou a Bjork, que é uma artista que a minha mãe adora.

Atualmente, existem diversos artistas que também estão a trabalhar a música tradicional portuguesa procurando fundi-la com influências mais contemporâneas. Algum deles é uma inspiração para si?

Reparo que existem diversos músicos a recuperar a música tradicional e a misturá-la com estilos como o rock ou a eletrónica, o que acho bastante interessante, mas, quando fiz as minhas canções, não era algo que estivesse a ouvir. Estava mais ligada às raízes deste estilo, ouvindo os artistas de música de intervenção. Além disso, também consumia muita world music, como Chico Buarque, Cesária Évora, Mayra Andrade e, ao mesmo tempo, Portishead, Laurie Anderson, Bjork, Silver Apples… Ouvia muitas coisas diferentes e sinto que minha música surge muita desta junção de artistas mais modernos, alternativos e experimentais com a tradição portuguesa.

A Bjork é uma grande referência?

Sim, apesar de considerar que Portishead ocupa um espaço mais importante. Gosto muito das suas batidas eletrónicas. Os Silver Apples também foram fundamentais. Eles foram pioneiros neste som mais eletrónico e, além disso, há a componente de terem sido influenciados por um som mais tradicional dos Estados Unidos e do seu folclore.

Estava curioso com esta questão da Bjork porque queria perguntar-lhe se já tinha comprado bilhete para o concerto que ela vai dar no Altice Arena a 1 de setembro.

Por acaso não tenho, mas é só porque sou uma pessoa muito desorganizada (risos).

Regressando às suas influências. Projetos como A Música Portuguesa A Gostar Dela Própria também é algo que a inspira?

Gosto muito dos vídeos que o Tiago Pereira faz. Tenho acompanhado estes trabalhos há alguns anos, acho interessante a ideia de ouvir pessoas mais velhas a cantarem as músicas que marcaram a sua infância ou, simplesmente, a contarem histórias. Acho que é uma fonte muito boa para conhecer a música tradicional e a cultura.

Houve algum momento específico em que percebeu que era possível fazer esta mistura entre a música tradicional com elementos mais contemporâneos?

Surgiu durante a quarentena, quando me deparei com estes programas de gravação de áudio. Foi uma fase onde me estava a interessar por sintetizadores e, como tinha um, decidi explorar um pouco mais. Também tinha outros instrumentos, como um bombo, e, como era o que tinha perto de mim, foi o que decidi utilizar. Nesse período, senti que precisava de me expressar e, com todo este material que tinha disponível, comecei a experimentar e apercebi-me que era algo que me surgia muito naturalmente.

Estamos a ter esta conversa porque acabou de lançar o seu segundo EP, Se Dançar É Só Depois. O que a motivou a lançar agora este disco?

Na realidade, a minha ideia inicial era fazer logo um álbum de longa-duração, juntando músicas do primeiro (Cheguei Tarde A Ontem, 2022) e segundo EP. Contudo, é muito mais difícil criar um álbum, exige mais tempo e recursos. Assim, por uma questão de tempo e possibilidade de gravação, decidi separar estes dois trabalhos. Sinto que eles são trabalhos irmãos.

Mas este é o irmão mais velho.

Concordo. Apesar da maior parte das músicas terem sido feitas na mesma altura, existe uma grande diferença na produção de ambos. Agora, como estou mais familiarizada com os programas, sinto que consegui acrescentar novas componentes porque estou mais madura e confiante.

Além de mais velho, é também o irmão mais ‘estranho’. Estas novas músicas são mais desafiantes e experimentais.

Foi intencional. Quis largar-me um pouco do formato de canção, que estava bastante mais presente no primeiro EP. Continuo a gostar dessas músicas e a identificar-me com elas, mas neste novo trabalho existem músicas como a ‘Adormeço Sem Dizer Para Onde Vou’ onde não existe propriamente um refrão ou uma repetição. Quis também explorar mais as estruturas das canções.

Esta decisão partiu também de uma vontade de se desafiar?

Diria que sim. Cada música pede a sua própria estrutura. Por exemplo, a ‘Adormeço Sem Dizer Para Onde Vou’ desde o início nunca teve nada muito bem planeado, com o refrão a surgir em sítios pouco convencionais. Mas acho que a música pedia esta irregularidade e acabo por me aproveitar disso tornando-a ainda mais esquisita (risos).

A imagem do rio é uma constante, nomeadamente, na ‘Mão na Mão’ ou na ‘Vou Abaixo, Volto Acima’. A natureza é uma inspiração para criar músicas?

Gosto sempre que as músicas não sejam muito diretas naquilo que querem dizer, recorrendo a metáforas ou a maneiras estranhas de me exprimir. A natureza, especialmente a figura do rio, surge bastante, mas até foi coincidência. Muitas músicas que componho surgem porque não consigo dormir ou porque estou frustrada por não ter conseguido criar nada de novo naquele dia. Começo a cantar e surgem ideias que acho interessantes. Depois, junto essas ideias a melodias que já tinha desenvolvido e começam a surgir palavras. Foi assim que surgiu a letra da ‘Vou abaixo, volto acima’. Isto fez-me pensar em imagens que podia associar a esta estrofe e imaginei o movimento de um barco. Desse momento, comecei a utilizar elementos da natureza, como o vento, o rio… mas foi tudo porque era aquilo que a melodia e a canção estavam a pedir.

Também fala muito de «dores» e de «ir ao médico». Isto é uma metáfora para o envelhecimento?

Há muitas coisas que escrevo que não são, necessariamente, autobiográficas. Existem coisas com que me identifico mais e até reconheço que já me senti assim de alguma forma. Mas nunca parte de uma vontade em que preciso mesmo de expressar algo. No caso da ‘Doi-me a Cabeça e o Juízo’, quando canto «dói-me tudo, senhor», foi algo que surgiu espontaneamente e que decidi continuar a explorar. Muitas vezes também sou inspirada por conversas que ouço entre a minha família ou amigos. As canções até podem parecer bastante pessoais, mas não têm necessariamente esse lado. A música Um Menos Um, do meu EP anterior, que tem um lado mais violento, é sobre uma relação que acaba, mas foi algo pelo qual eu nunca passei. São situações em que recorro mais à imaginação.

Considera-se uma alma velha?

Essa é uma pergunta difícil. Se calhar em alguns aspetos. Tenho hábitos que acho que já não são tão habituais para pessoas da minha idade. Ainda gosto de enviar álbuns inteiros e, muitas vezes, é-me difícil ouvir músicas soltas. Mas também me identifico com a minha geração. Gosto muito de tecnologia… quer dizer, depende da tecnologia, há alguma que agora começa a assustar, com a ameaça da inteligência artificial de poder vir a substituir artistas. Se calhar tenho a junção de alma velha com alma nova.

Acha que o ChatGPT um dia poderá escrever uma música sua?

Não sei, talvez um dia, mas também acho que ele tem mais que fazer (risos).

Já fez alguns concertos de apresentação para este novo EP. Como é que tem corrido?

Tem corrido bastante bem. Tenho tocado músicas dos meus dois trabalhos, portanto, tenho apresentado muitas músicas novas e tem sido bem recebida. É giro ver que, apesar das músicas terem sido lançadas há pouco tempo, já há pessoas a cantar as minhas letras.

Os seus espetáculos são feitos no formato de one-woman-band, isto não coloca uma pressão adicional em cima de palco?

Já toquei muito em bandas e outros projetos onde existiam sempre muitas pessoas. Apesar de isso me oferecer uma segurança extra, no sentido em que se cometer um erro está ali alguém para me ajudar, sentia-me estranha porque estava só a cantar e depois não sabia bem o que fazer. Mesmo tendo muito mais pressão, mais coisas para fazer e de ter de ensaiar muito mais, sinto-me muito mais segura porque tenho sempre tanta coisa para fazer que já não penso tanto no que tenho de fazer.

Também não pensa tanto naquilo que o público está a pensar?

Sim. Antes sentia-me muito mais exposta, agora, sinto-me muito mais segura e consigo abstrair-me mais enquanto estou a tocar. Tenho tantas preocupações que não estou preocupada com o facto de estar em cima de palco.

Já que estamos a falar de pressão: apesar de ter uma carreira recente, foi convidada para tocar no NOS Alive e a crítica aponta-a como uma das próximas grandes ‘cenas’ da música portuguesa. Isto coloca mais pressão na sua carreira?

De certa forma, sim. É sempre um bocado assustador ouvir outras pessoas a falar de mim desta forma, mas tento ao máximo não ligar a isso e focar-me naquilo que gosto de fazer, que é compor e transportar músicas para um contexto ao vivo. Todo este feedback tem de ser secundário porque, se não, pode vir a influenciar-me de uma forma que eu não queira. Quero ter controlo da situação, fazer as minhas músicas e o resto virá.