Testemunho de uma jornalista ucraniana de 38 anos


 minha família, os meus antepassados, os meus amigos, eu mesmo tenho pago um preço tão alto pela opção de falar a minha própria língua, viver na minha terra natal, aproveitar tudo o que é nativo ao meu redor. Assim como a liberdade de viajar, conhecer pessoas maravilhosas por perto, desfrutar de uma comunicação respeitosa. Porque…


Como sabem, a guerra na Ucrânia começou em 2014. Primeiro a anexação da Crimeia, depois parte das regiões de leste da Ucrânia (Donetsk e Luhansk), onde a batalha continua desde então. E onde, desde o colapso da URSS, não construímos muros, tão forte foi a nossa crença na amizade que tínhamos pelo nosso vizinho. Assim como confiamos nas garantias da nossa soberania de acordo com o memorando de 1994 em Budapeste, onde abrimos mão das nossas armas nucleares e outros equipamentos!

Para mim, tudo começou há muito tempo. Tive a sorte de nascer e crescer numa família de cidadãos ucranianos muito conscientes e ativos, os que participaram na Revolução do Granito (1990, pela Independência da Ucrânia), os que sempre se ergueram pelas questões da língua, tradições, cultura… aqueles cujos pais e familiares foram reprimidos e até mortos aquando da escolha da nacionalidade nos tempos da URSS… e devo confessar, na minha infância, quando tinha 5-6 anos, às vezes não entendia por que razão defendiam tão convictamente essas questões nacionais! Acho que foi devido aos protestos dos meus pais que até me tornei numa cientista política liberal. No entanto, sempre estive entre aqueles que realmente amam e protegem tudo o que é nativo, nosso, ucraniano e único! O meu pai sempre insistiu que em todas as casas que construiu na sua vida existisse total abastecimento independente de água, eletricidade, lareiras… no carro dele tinha sempre (e ainda tem) uma tenda, um saco-cama, uma panela, uma toalha, comida… Pensei que ele era tão romântico e espontâneo para passar a noite no meio da floresta ou na margem de um lago. Mas há poucos meses ele disse-me que estava preparado e à espera desta guerra desde o Dia da Independência: ele sabia que a Rússia nunca ignoraria o facto de sermos tão diferentes, felizes, livres, trabalhadores sem eles, o nosso “irmão mais velho” que só sabe parasitar, mentir, roubar e matar… A minha avó sobreviveu à fome artificial em 1932-33. Sempre vivi rodeada por essas memórias e histórias. De como o povo ucraniano cumprimentou os alemães em 1939 na esperança que eles os ajudassem a acabar com o regime da URSS na Ucrânia… para se livrarem de russos cruéis que tiram casas, filhos, matam, com um único objetivo: acabar com as nossas raízes, com as nossas famílias. Eles mudam o nosso nome e mentem sobre quem somos. E nas aldeias, onde eles matam e substituem toda a gente, mentem e dizem que esses lugares são autenticamente russos onde se fala a língua russa.

Eu sei como é ser humilhado pela língua ucraniana no meu próprio país. Eu sei como é ser marginal com as tradições ucranianas no meu próprio país. Nós chamamo-la de “quinta coluna”: pessoas integradas nas partes mais altas da sociedade ucraniana, apoiadas com dinheiro russo, com o objetivo de desacreditar valores importantes, promover pessoas com posições pró-russas, para retirar prestígio aos ucranianos. Por exemplo, quando chamam Tchaikovsky e Gogol de russos, quando eles são da região de Poltava, na Ucrânia.

Lembro-me de todas as conversas sobre uma possível invasão em grande escala a partir de novembro de 2021.

Tive um evento em janeiro onde fui apresentadora (estou a trabalhar como apresentadora de TV e rádio na emissora nacional SUSPILNE). Nenhum dos diplomatas convidados de várias embaixadas apareceu. Já tinham saído da Ucrânia. Honestamente, tentamos não acreditar. Tentamos fazer piadas, mas ainda assim todos os tanques dos nossos carros estavam cheios, passaportes e comida preparada para fugir, em caso de guerra. E aconteceu. Na noite de 23 para 24 de fevereiro todos nós fomos acordados pelos sons de explosões…

Agora já sabemos: quando a embaixada americana manda embora o seu pessoal e a inteligência britânica diz que vai haver um ataque, podemos fazer piadas (já que ajuda a não enlouquecer), mas também temos de estar preparados.

Eu tenho três filhos. Posso deixar o país com toda a minha família. Mas simplesmente não consigo. Os meus filhos sabem onde esconder-se quando ouvem o alarme de ataque aéreo. Estão a brincar com os jogos e bonecas de crianças que já não têm pais porque esses pais morreram após os ataques russos … e ainda assim não consigo imaginar-me a morar noutro lugar do mundo. A minha família, os meus antepassados, os meus amigos, eu mesmo tenho pago um preço tão alto pela opção de falar a minha própria língua, viver na minha terra natal, aproveitar tudo o que é nativo ao meu redor. Assim como a liberdade de viajar, conhecer pessoas maravilhosas por perto, desfrutar de uma comunicação respeitosa. Porque é isso que os ucranianos são no seu ADN.

Todos nós conhecemos a língua russa, pois é estrategicamente importante entender as intenções do nosso inimigo… e quais são os valores que ensino aos meus filhos? São os seguintes pontos:

1. Ser saudável e inteligente: este é o melhor investimento na vida e no futuro da Ucrânia.

2. O nosso dever cívico é ser feliz e tornar a Ucrânia um país próspero. Caso contrário, toda esta experiência será em vão…

E por último, mas não menos importante, quando a Revolução da Dignidade começou em 2013, na noite de agressão contra os estudantes ucranianos espancados pelas divisões especiais das forças de choque da polícia de Yanukovich, eu estava em Londres para o encontro europeu dos liberais. No dia seguinte, eu e a minha colega Natali começamos a pedir aos nossos colegas europeus que iniciassem um memorando sobre as sanções contra a Rússia. Era sobre a nossa integração europeia e o corte de relações com a Rússia. Dissemos que, se não nos apressassemos, uma guerra poderia começar. E muitas pessoas diziam que estávamos a exagerar. Mas conhecíamos o nosso vizinho há muito tempo. E não há como tentar fazer concessões com um maníaco. Ou confiar num maníaco. Temos que pará-lo e ser rápidos. Ficaria feliz em admitir, hoje, que estava a exagerar. Mas não estava. Aqui estamos dez anos depois. Com o mesmo maníaco e o genocídio que ele tem cometido na Ucrânia. E cada momento de hesitação custa milhares de vidas…

Infelizmente sabemos: nunca podemos confiar no inimigo. Nenhum compromisso jamais o satisfará até que ele consiga tudo. E, acreditem, a Ucrânia não é o destino final, se não o impedirmos. Ou estarei a exagerar de novo?

 

Jornalista e Ativista Política   

Testemunho de uma jornalista ucraniana de 38 anos


 minha família, os meus antepassados, os meus amigos, eu mesmo tenho pago um preço tão alto pela opção de falar a minha própria língua, viver na minha terra natal, aproveitar tudo o que é nativo ao meu redor. Assim como a liberdade de viajar, conhecer pessoas maravilhosas por perto, desfrutar de uma comunicação respeitosa. Porque…


Como sabem, a guerra na Ucrânia começou em 2014. Primeiro a anexação da Crimeia, depois parte das regiões de leste da Ucrânia (Donetsk e Luhansk), onde a batalha continua desde então. E onde, desde o colapso da URSS, não construímos muros, tão forte foi a nossa crença na amizade que tínhamos pelo nosso vizinho. Assim como confiamos nas garantias da nossa soberania de acordo com o memorando de 1994 em Budapeste, onde abrimos mão das nossas armas nucleares e outros equipamentos!

Para mim, tudo começou há muito tempo. Tive a sorte de nascer e crescer numa família de cidadãos ucranianos muito conscientes e ativos, os que participaram na Revolução do Granito (1990, pela Independência da Ucrânia), os que sempre se ergueram pelas questões da língua, tradições, cultura… aqueles cujos pais e familiares foram reprimidos e até mortos aquando da escolha da nacionalidade nos tempos da URSS… e devo confessar, na minha infância, quando tinha 5-6 anos, às vezes não entendia por que razão defendiam tão convictamente essas questões nacionais! Acho que foi devido aos protestos dos meus pais que até me tornei numa cientista política liberal. No entanto, sempre estive entre aqueles que realmente amam e protegem tudo o que é nativo, nosso, ucraniano e único! O meu pai sempre insistiu que em todas as casas que construiu na sua vida existisse total abastecimento independente de água, eletricidade, lareiras… no carro dele tinha sempre (e ainda tem) uma tenda, um saco-cama, uma panela, uma toalha, comida… Pensei que ele era tão romântico e espontâneo para passar a noite no meio da floresta ou na margem de um lago. Mas há poucos meses ele disse-me que estava preparado e à espera desta guerra desde o Dia da Independência: ele sabia que a Rússia nunca ignoraria o facto de sermos tão diferentes, felizes, livres, trabalhadores sem eles, o nosso “irmão mais velho” que só sabe parasitar, mentir, roubar e matar… A minha avó sobreviveu à fome artificial em 1932-33. Sempre vivi rodeada por essas memórias e histórias. De como o povo ucraniano cumprimentou os alemães em 1939 na esperança que eles os ajudassem a acabar com o regime da URSS na Ucrânia… para se livrarem de russos cruéis que tiram casas, filhos, matam, com um único objetivo: acabar com as nossas raízes, com as nossas famílias. Eles mudam o nosso nome e mentem sobre quem somos. E nas aldeias, onde eles matam e substituem toda a gente, mentem e dizem que esses lugares são autenticamente russos onde se fala a língua russa.

Eu sei como é ser humilhado pela língua ucraniana no meu próprio país. Eu sei como é ser marginal com as tradições ucranianas no meu próprio país. Nós chamamo-la de “quinta coluna”: pessoas integradas nas partes mais altas da sociedade ucraniana, apoiadas com dinheiro russo, com o objetivo de desacreditar valores importantes, promover pessoas com posições pró-russas, para retirar prestígio aos ucranianos. Por exemplo, quando chamam Tchaikovsky e Gogol de russos, quando eles são da região de Poltava, na Ucrânia.

Lembro-me de todas as conversas sobre uma possível invasão em grande escala a partir de novembro de 2021.

Tive um evento em janeiro onde fui apresentadora (estou a trabalhar como apresentadora de TV e rádio na emissora nacional SUSPILNE). Nenhum dos diplomatas convidados de várias embaixadas apareceu. Já tinham saído da Ucrânia. Honestamente, tentamos não acreditar. Tentamos fazer piadas, mas ainda assim todos os tanques dos nossos carros estavam cheios, passaportes e comida preparada para fugir, em caso de guerra. E aconteceu. Na noite de 23 para 24 de fevereiro todos nós fomos acordados pelos sons de explosões…

Agora já sabemos: quando a embaixada americana manda embora o seu pessoal e a inteligência britânica diz que vai haver um ataque, podemos fazer piadas (já que ajuda a não enlouquecer), mas também temos de estar preparados.

Eu tenho três filhos. Posso deixar o país com toda a minha família. Mas simplesmente não consigo. Os meus filhos sabem onde esconder-se quando ouvem o alarme de ataque aéreo. Estão a brincar com os jogos e bonecas de crianças que já não têm pais porque esses pais morreram após os ataques russos … e ainda assim não consigo imaginar-me a morar noutro lugar do mundo. A minha família, os meus antepassados, os meus amigos, eu mesmo tenho pago um preço tão alto pela opção de falar a minha própria língua, viver na minha terra natal, aproveitar tudo o que é nativo ao meu redor. Assim como a liberdade de viajar, conhecer pessoas maravilhosas por perto, desfrutar de uma comunicação respeitosa. Porque é isso que os ucranianos são no seu ADN.

Todos nós conhecemos a língua russa, pois é estrategicamente importante entender as intenções do nosso inimigo… e quais são os valores que ensino aos meus filhos? São os seguintes pontos:

1. Ser saudável e inteligente: este é o melhor investimento na vida e no futuro da Ucrânia.

2. O nosso dever cívico é ser feliz e tornar a Ucrânia um país próspero. Caso contrário, toda esta experiência será em vão…

E por último, mas não menos importante, quando a Revolução da Dignidade começou em 2013, na noite de agressão contra os estudantes ucranianos espancados pelas divisões especiais das forças de choque da polícia de Yanukovich, eu estava em Londres para o encontro europeu dos liberais. No dia seguinte, eu e a minha colega Natali começamos a pedir aos nossos colegas europeus que iniciassem um memorando sobre as sanções contra a Rússia. Era sobre a nossa integração europeia e o corte de relações com a Rússia. Dissemos que, se não nos apressassemos, uma guerra poderia começar. E muitas pessoas diziam que estávamos a exagerar. Mas conhecíamos o nosso vizinho há muito tempo. E não há como tentar fazer concessões com um maníaco. Ou confiar num maníaco. Temos que pará-lo e ser rápidos. Ficaria feliz em admitir, hoje, que estava a exagerar. Mas não estava. Aqui estamos dez anos depois. Com o mesmo maníaco e o genocídio que ele tem cometido na Ucrânia. E cada momento de hesitação custa milhares de vidas…

Infelizmente sabemos: nunca podemos confiar no inimigo. Nenhum compromisso jamais o satisfará até que ele consiga tudo. E, acreditem, a Ucrânia não é o destino final, se não o impedirmos. Ou estarei a exagerar de novo?

 

Jornalista e Ativista Política