Fora do país, Zelensky ainda podia ser um símbolo de resistência; nas mãos dos russos, seria um troféu de guerra, se o conservassem vivo, ou um mártir, se o matassem.
Em qualquer caso, era para mim claro que, se os russos tomassem o poder em Kiev, pouco já haveria a fazer. O Exército ucraniano capitularia, por falta de chefia, e os focos de resistência que surgissem aqui e ali não teriam capacidade para sobreviver muito tempo.
Quando o Ocidente acordasse, tudo estaria praticamente resolvido.
Ao ser anunciado que uma coluna de tanques russos com mais de 60 Km de extensão avançava sobre a capital, fiquei a aguardar a notícia da ocupação da cidade. No dia seguinte, ao ligar de manhã o televisor, esperava ouvir: “A Rússia ocupou Kiev”. Mas não. Passaram as horas e os dias – dois, três, cinco… –, e a notícia não chegava. Os pivôs dos telejornais iam repetindo monotonamente “a ocupação de Kiev está iminente”, os majores-generais-comentadores davam-na como certa, mas eu via outra coisa: o Exército russo parecia um carro a patinar na lama: as rodas giravam mas não avançava.
Comecei a suspeitar que a estratégia russa tinha falhado. Pensei: e se Putin errou os cálculos? Se pensou que a tomada da capital seria uma questão de dias e as contas lhe saíram furadas? Se assim for, vai ter de refazer todo o plano.
Mas como poderia um homem experiente como ele cometer um erro tão básico? Pensar que chegaria à capital sem resistência e num abrir e fechar de olhos ganharia a guerra? Como poderia um antigo chefe do KGB estar tão mal informado sobre a situação com que o seu Exército se iria deparar na Ucrânia?
Todos os déspotas têm este problema. A sua entourage tem medo de os contrariar, de lhes dizer a verdade. Se Putin ordenasse aos generais: “Vamos chegar a Kiev em seis dias (soube-se depois que era este o cálculo), ocupar a cidade, tomar o poder e a seguir controlar o território”, nenhum deles teria coragem para o contrariar. E, se o fizesse, seria imediatamente demitido, pois mostraria não ter a convicção necessária para cumprir o objetivo traçado.
Ao fim de um ano, a guerra está mais ou menos como estava ao fim de 15 dias: Kiev resiste, Zelensky resiste, o Exército ucraniano resiste, o Exército russo patina. E, entretanto, houve centenas de milhares de mortos.
Não vejo saída para isto. Zelensky não pode ceder pedaços do país, porque isso seria abrir um terrível precedente; e Putin não pode sair da Ucrânia de rabo entre as pernas, porque isso seria o seu fim.
Ao cabo de um ano de guerra devastadora, já há heróis, vilões e assim-assim. O grande herói é sem dúvida Zelensky: ele é o símbolo e a alma da resistência do seu povo. O grande vilão é Putin, o símbolo da agressão russa e a alma negra que gizou esta operação.
Mas há outros heróis: o povo mártir ucraniano, que tem mostrado uma fibra gigantesca, o Exército ucraniano, que tem resistido ao que se supunha ser um dos maiores exércitos do mundo, a Polónia, que acolheu sem pestanejar três milhões de refugiados ucranianos, Joe Biden, que tomou a decisão histórica de ir a Kiev, Boris Johnson, que foi o mais enérgico apoiante da Ucrânia no Ocidente, Ursula von der Leyen, que manteve a União Europeia unida contra a agressão russa.
Do lado dos vilões, temos o abominável Lavrov, que vira constantemente a verdade do avesso, o ridículo Medvedev, um fanfarrão que ameaça bater em todos mas é um capacho do presidente russo, Kadyrov, o carniceiro checheno que acaba de se proclamar “herói”, Lukashenko, o matulão da Bielorússia que se encolhe perante o pequeno Putin, o grupo Wagner, cujo símbolo – uma caveira –, mostra bem o que é: um bando de mercenários a soldo de quem mais lhes paga para matar. Gente do pior que há na Terra.
Assim-assim tem estado a misteriosa China. Dá uma no cravo e outra na ferradura. Tanto se aproxima como se afasta da Rússia. E nela pode estar a chave desta guerra.
A China decidiu-se finalmente a agir, apresentando um plano de paz. E não apoiou a Rússia na última votação na ONU – o que é um estupendo sinal. Esta guerra não interessa à China, que tem no Ocidente o seu grande mercado externo, que aqui tem milhares de cidadãos a trabalhar e a fazer negócio, e não pode assumir o odioso de ficar ao lado de Putin.
Neste momento, na sombra dos bastidores, o grande diálogo deve ser mesmo entre Putin e Xi Jinping – um a exigir armas e apoio político, o outro a dizer: arranjem maneira de acabar com essa guerra, que só nos está a trazer problemas.
Putin está entre a espada e a parede.