50 anos de quimeras


50 anos após a sua invenção e descrição, a tecnologia do rDNA impulsionou numerosos avanços científicos com impacto na medicina, e alterou radicalmente a nossa sociedade.


Em 2023 celebram-se os 50 anos de um marco fundador da Biotecnologia moderna: a invenção da tecnologia do DNA recombinante. À data revolucionária, esta técnica permite unir moléculas de DNA de origens diversas e criar quantidades ilimitadas de combinações genéticas artificiais. Idealizada por Stanley Cohen e Herbert Boyer, a tecnologia depressa saiu da academia, tornando-se na pedra angular de uma nova indústria. O impacto foi tremendo, sendo hoje inúmeros os produtos e terapias baseados na criação e replicação de quimeras de DNA. Adicionalmente, a descoberta e a sua industrialização originaram controvérsias, disputas, lições e episódios que são hoje parte integrante da história da Biotecnologia.

Em 1972, Boyer e Cohen eram jovens professores nas Universidades da Califórnia e de Stanford, respectivamente. Interessados na novíssima disciplina da Biologia Molecular, a região de S. Francisco era o local certo para estar. A actividade científica fervilhava, impulsionada pelo trabalho de cientistas de renome como Joshua Lederberg, Arthur Kornberg e Paul Berg. Este último, em particular, desenvolvera um processo para colar dois fragmentos de DNA de origens distintas. Contudo, ninguém criara ainda um método eficiente para copiar (i.e., clonar) essas quimeras moleculares, um objectivo essencial para estudar sistematicamente o funcionamento dos genes. Ora esse foi precisamente o desafio que, de forma inesperada, Cohen e Boyer acabariam por vencer [1].

Cohen descobrira como transformar bactérias para que produzissem inúmeras cópias de um tipo particular de DNA circular. Boyer, por seu lado, desenvolvera um método bioquímico de cortar segmentos de DNA em locais bastante precisos. A oportunidade de juntarem estes esforços isolados surgiu em novembro de 1972, quando se conheceram numa conferência no Havai [1]. De acordo com os registos, a colaboração iniciou-se num passeio fortuito junto à praia de Waikiki, em busca por uma cafetaria. Enquanto andavam, discutiram os resultados obtidos nos laboratórios respetivos e acordaram que seria uma boa ideia combinarem a técnica de transformação de bactérias de Cohen com as tesouras moleculares de Boyer. Ao jantar, esboçaram um projeto experimental num guardanapo, lançando as bases de uma colaboração frutuosa. Durante a primeira metade de 1973, Cohen, Boyer e os seus colegas demonstraram a exequibilidade e fiabilidade da estratégia de clonagem delineada meses antes. Tinham inventado um modo simples de propagar quimeras de DNA em bactérias. A descrição daquela que viria a ser conhecida como a tecnologia do DNA recombinante (rDNA) viria a ser publicada em novembro de 1973, um ano após o encontro inspirado no Havai [2]. 

O artigo de Cohen e Boyer atraiu a atenção dos media, originando uma série de acontecimentos e controvérsias. Logo em 1974, e prevendo o potencial comercial da tecnologia, as universidades da Califórnia e Stanford submeteram uma patente, que viria a ser concedida em 1980. No decurso dos anos subsequentes, a chamada patente Cohen-Boyer viria a ser licenciada centenas de vezes, gerando um retorno de mais de 100 milhões de dólares [3]. Boyer envolveu-se também ativamente na exploração comercial da tecnologia, cofundando a empresa Genentech, Inc. em 1976 com Robert Swanson. Esta decisão inusitada provocou uma reação negativa de vários colegas, que o acusaram de conflito de interesses, e de comprometer a sua investigação e integridade científica [1]. Adicionalmente, inúmeras vozes advertiram para os perigos da manipulação genética, o que originou uma suspensão voluntária da investigação em rDNA. Estas preocupações foram discutidas por vários cientistas liderados por Paul Berg na Conferência de Asilomar de 1975. Daí resultou um conjunto de orientações destinadas a garantir a segurança da tecnologia do rDNA, o que permitiu que a ciência progredisse. A Conferência de Asilomar marcou o início de uma era excecional para as ciências da vida e constitui um exemplo de discussão pública de ciência e dos seus impactos [1].

Apesar do sucesso da tecnologia de rDNA, uma questão permanecia em aberto– poderiam as bactérias transformadas ler os genes de organismos complexos e produzir proteínas terapêuticas valiosas como a insulina ou a hormona de crescimento? Esta questão viria a ser respondida pelos cientistas da recém-formada Genentech que, em 1978, lograram produzir insulina humana utilizando a tecnologia de rDNA. Em 1982, a empresa obteve aprovação da entidade reguladora americana para comercializar o primeiro fármaco produzido por um organismo geneticamente modificado. Em breve outras empresas entraram em cena, começando a produzir fármacos com base em rDNA para tratar uma variedade de patologias, desde a anemia ao cancro.

50 anos após a sua invenção e descrição, a tecnologia do rDNA impulsionou numerosos avanços científicos com impacto na medicina, e alterou radicalmente a nossa sociedade. A tecnologia transformou micróbios e outras células em pequenas fábricas capazes de produzir uma gama ampla de produtos, incluindo medicamentos, vacinas e testes de diagnóstico. O impacto ultrapassou as indústrias biotecnológica e farmacêutica, estendendo-se a campos como a indústria alimentar ou a medicina forense. Paul Berg viria a receber o prémio Nobel da Medicina em 1980 pelo seu contributo inicial, exatamente no mesmo dia em que a Genentech se tornou uma empresa cotada na bolsa. Apesar da sua descoberta seminal, da patente milionária, dos numerosos prémios e de terem despoletado a criação da Biotecnologia moderna, Cohen e Boyer não receberam o mesmo reconhecimento. Considerada por muitos uma omissão clamorosa, esta injustiça radicou, provavelmente, na dificuldade dos membros do comité Nobel em reconciliar os interesses comerciais de Boyer com a cultura e normas inerentes à investigação académica [3]. 

[1] Hughes, S.S. Genentech: The Beginnings of Biotech. The University of Chicago Press. Chicago, 2011.
[2] Cohen, S.N., Chang, A.C.Y., Boyer, H.W., Helling, R.B. (1973) Construction of biologically functional bacterial plasmids in vitro. Proc. Natl. Acad. Sci. USA 70:3240–3244.
[3] Hughes, S.S. (2001) Making dollars out of DNA: The first major patent in Biotechnology and the commercialization of Molecular Biology, 1974-1980. Isis 92:541-75.

Professor do Instituto Superior Técnico
miguelprazeres@tecnico.ulisboa.pt

50 anos de quimeras


50 anos após a sua invenção e descrição, a tecnologia do rDNA impulsionou numerosos avanços científicos com impacto na medicina, e alterou radicalmente a nossa sociedade.


Em 2023 celebram-se os 50 anos de um marco fundador da Biotecnologia moderna: a invenção da tecnologia do DNA recombinante. À data revolucionária, esta técnica permite unir moléculas de DNA de origens diversas e criar quantidades ilimitadas de combinações genéticas artificiais. Idealizada por Stanley Cohen e Herbert Boyer, a tecnologia depressa saiu da academia, tornando-se na pedra angular de uma nova indústria. O impacto foi tremendo, sendo hoje inúmeros os produtos e terapias baseados na criação e replicação de quimeras de DNA. Adicionalmente, a descoberta e a sua industrialização originaram controvérsias, disputas, lições e episódios que são hoje parte integrante da história da Biotecnologia.

Em 1972, Boyer e Cohen eram jovens professores nas Universidades da Califórnia e de Stanford, respectivamente. Interessados na novíssima disciplina da Biologia Molecular, a região de S. Francisco era o local certo para estar. A actividade científica fervilhava, impulsionada pelo trabalho de cientistas de renome como Joshua Lederberg, Arthur Kornberg e Paul Berg. Este último, em particular, desenvolvera um processo para colar dois fragmentos de DNA de origens distintas. Contudo, ninguém criara ainda um método eficiente para copiar (i.e., clonar) essas quimeras moleculares, um objectivo essencial para estudar sistematicamente o funcionamento dos genes. Ora esse foi precisamente o desafio que, de forma inesperada, Cohen e Boyer acabariam por vencer [1].

Cohen descobrira como transformar bactérias para que produzissem inúmeras cópias de um tipo particular de DNA circular. Boyer, por seu lado, desenvolvera um método bioquímico de cortar segmentos de DNA em locais bastante precisos. A oportunidade de juntarem estes esforços isolados surgiu em novembro de 1972, quando se conheceram numa conferência no Havai [1]. De acordo com os registos, a colaboração iniciou-se num passeio fortuito junto à praia de Waikiki, em busca por uma cafetaria. Enquanto andavam, discutiram os resultados obtidos nos laboratórios respetivos e acordaram que seria uma boa ideia combinarem a técnica de transformação de bactérias de Cohen com as tesouras moleculares de Boyer. Ao jantar, esboçaram um projeto experimental num guardanapo, lançando as bases de uma colaboração frutuosa. Durante a primeira metade de 1973, Cohen, Boyer e os seus colegas demonstraram a exequibilidade e fiabilidade da estratégia de clonagem delineada meses antes. Tinham inventado um modo simples de propagar quimeras de DNA em bactérias. A descrição daquela que viria a ser conhecida como a tecnologia do DNA recombinante (rDNA) viria a ser publicada em novembro de 1973, um ano após o encontro inspirado no Havai [2]. 

O artigo de Cohen e Boyer atraiu a atenção dos media, originando uma série de acontecimentos e controvérsias. Logo em 1974, e prevendo o potencial comercial da tecnologia, as universidades da Califórnia e Stanford submeteram uma patente, que viria a ser concedida em 1980. No decurso dos anos subsequentes, a chamada patente Cohen-Boyer viria a ser licenciada centenas de vezes, gerando um retorno de mais de 100 milhões de dólares [3]. Boyer envolveu-se também ativamente na exploração comercial da tecnologia, cofundando a empresa Genentech, Inc. em 1976 com Robert Swanson. Esta decisão inusitada provocou uma reação negativa de vários colegas, que o acusaram de conflito de interesses, e de comprometer a sua investigação e integridade científica [1]. Adicionalmente, inúmeras vozes advertiram para os perigos da manipulação genética, o que originou uma suspensão voluntária da investigação em rDNA. Estas preocupações foram discutidas por vários cientistas liderados por Paul Berg na Conferência de Asilomar de 1975. Daí resultou um conjunto de orientações destinadas a garantir a segurança da tecnologia do rDNA, o que permitiu que a ciência progredisse. A Conferência de Asilomar marcou o início de uma era excecional para as ciências da vida e constitui um exemplo de discussão pública de ciência e dos seus impactos [1].

Apesar do sucesso da tecnologia de rDNA, uma questão permanecia em aberto– poderiam as bactérias transformadas ler os genes de organismos complexos e produzir proteínas terapêuticas valiosas como a insulina ou a hormona de crescimento? Esta questão viria a ser respondida pelos cientistas da recém-formada Genentech que, em 1978, lograram produzir insulina humana utilizando a tecnologia de rDNA. Em 1982, a empresa obteve aprovação da entidade reguladora americana para comercializar o primeiro fármaco produzido por um organismo geneticamente modificado. Em breve outras empresas entraram em cena, começando a produzir fármacos com base em rDNA para tratar uma variedade de patologias, desde a anemia ao cancro.

50 anos após a sua invenção e descrição, a tecnologia do rDNA impulsionou numerosos avanços científicos com impacto na medicina, e alterou radicalmente a nossa sociedade. A tecnologia transformou micróbios e outras células em pequenas fábricas capazes de produzir uma gama ampla de produtos, incluindo medicamentos, vacinas e testes de diagnóstico. O impacto ultrapassou as indústrias biotecnológica e farmacêutica, estendendo-se a campos como a indústria alimentar ou a medicina forense. Paul Berg viria a receber o prémio Nobel da Medicina em 1980 pelo seu contributo inicial, exatamente no mesmo dia em que a Genentech se tornou uma empresa cotada na bolsa. Apesar da sua descoberta seminal, da patente milionária, dos numerosos prémios e de terem despoletado a criação da Biotecnologia moderna, Cohen e Boyer não receberam o mesmo reconhecimento. Considerada por muitos uma omissão clamorosa, esta injustiça radicou, provavelmente, na dificuldade dos membros do comité Nobel em reconciliar os interesses comerciais de Boyer com a cultura e normas inerentes à investigação académica [3]. 

[1] Hughes, S.S. Genentech: The Beginnings of Biotech. The University of Chicago Press. Chicago, 2011.
[2] Cohen, S.N., Chang, A.C.Y., Boyer, H.W., Helling, R.B. (1973) Construction of biologically functional bacterial plasmids in vitro. Proc. Natl. Acad. Sci. USA 70:3240–3244.
[3] Hughes, S.S. (2001) Making dollars out of DNA: The first major patent in Biotechnology and the commercialization of Molecular Biology, 1974-1980. Isis 92:541-75.

Professor do Instituto Superior Técnico
miguelprazeres@tecnico.ulisboa.pt