Teresa Lago. “A astronomia é como um puzzle que levanta sempre novas perguntas”

Teresa Lago. “A astronomia é como um puzzle que levanta sempre novas perguntas”


A melhor forma de inspirar jovens “é convidá-los a deitarem-se na relva numa noite escura e olhar para o céu”, diz a antiga secretária-geral da União Astronómica Internacional. 


Teresa Lago, pioneira da astronomia em Portugal, que encabeçou a União Astronómica Internacional entre 2018 e 2021, conversou com o i antes de ir buscar os netos à escola. Era de dia, por isso felizmente não lhe tirámos tempo em que podia a estar a olhar para o céu noturno, a observar as estrelas a que dedicou a sua carreira. Ao contrário de outros objetos de estudo, os corpos celestes são “um puzzle em que não é possível mexer nas peças, mudá-las de posição e ver no que dá”, descreve esta professora catedrática reformada da Faculdade de Ciências da Universidade do Porto (FCUP). Lá em cima há condições extremas de temperatura, densidade, campos magnéticos, “as leis da física que usamos cá em baixo, a que estamos habituados, estão no limite”, continua, com um certo brilho nos olhos. É um entusiasmo que quer partilhar com os outros enquanto embaixadora do FIC.A – Festival Internacional de Ciência 2022, que decorre agora, entre 10 e 16 de outubro, no Hub-ACT, um futuro hub de arte, ciência, tecnologia e incubação de indústrias criativas em Porto Salvo, no município de Oeiras. O festival pretende “mostrar que a ciência continua a desenvolver-se, a ter questões fabulosas a responder”, descreve Lago. E incentivar ao interesse do público é essencial, “porque a ciência não produz bens. As engenharias produzem”, ressalva. Mas “a ciência produz conhecimentos”. 

O cenário da astronomia em Portugal é muito diferente de quando a professora começou. Quão maior é o entusiasmo com esta área da ciência, há um apoio mais concreto?
É um cenário completamente diferente. Quando eu era aluna na faculdade praticamente não existia astronomia. Havia uma disciplina ou outra, que tive como aluna de matemática na Universidade do Porto, mas depois não havia projetos de investigação, aí era zero. E em termos de ensino era uma astronomia muito clássica, muito ligada à matemática. Fui fazer um mestrado e doutoramento em Inglaterra porque era a única hipótese para aprender astronomia, quando regressei a Portugal, em 1979, éramos só dois astrónomos, passado um ano ou dois chegou um outro. Naturalmente que assim não havia projetos de investigação, a astronomia não era uma área reconhecida como de interesse nacional. As coisas mudaram bastante no início da década de 80, a mudança crucial foi com o José Mariano Gago, quando ele foi presidente da JNICT, da FCT de hoje, e permitiu que houvesse um programa para o desenvolvimento da astronomia em Portugal. Em 1989 houve a criação do centro de Astrofísica da Universidade do Porto e depois em 1994 foi criada uma licenciatura em astronomia na Universidade do Porto. Acho que a licenciatura foi um momento de mudança, abrimos a licenciatura com 20 vagas e nos anos seguintes fomos tendo quase trezentas candidaturas, o que significava que os vinte que recebíamos era a nata da nata. E são os astrónomos que hoje já constituem uma comunidade científica. Temos 87 astrónomos profissionais, inscritos na União Astronómica Internacional, possuímos uma dimensão simpática, comparável à de outros países europeus tendo em conta a nossa população. 

Muitas áreas de investigação tratam de coisas tangíveis, no sentido de que as conseguimos agarrar e tocar. Como é que explicaria a uma pessoa não envolvida na área a paixão pela astronomia, por algo que é literalmente tão distante?
A astronomia tem essa diferença em relação às outras áreas da ciência. É que nós não podemos experimentar no sentido tradicional. Nós observamos, medimos as observações, tiramos resultados e construímos modelos. Depois temos de testar esses modelos com novas observações. Fazer previsões, ir observar para ver se estão corretas. As condições são extremas, não são como as da Terra, o nosso laboratório conta com condições extremas de temperatura, densidade, campos magnéticos, tudo o que quiser. As leis da física que nós usamos cá em baixo, a que estamos habituados, estão no limite. A astronomia é essencialmente como um puzzle. Há questões que nos aparecem e que temos de compreender. É um puzzle em que não é possível mexer nas peças, mudá-las de posição e ver no que dá. É preciso resolvê-lo. E esse puzzle levanta sempre novas perguntas, nunca é completo, está em evolução constante. E a astronomia é extremamente dependente da tecnologia, sempre que há um avanço na instrumentação, nos detetores, nos telescópios, abre-se uma área nova. Daí que a astronomia seja tão dinâmica. Acho que tive sorte em viver numa época em que, quando eu comecei a fazer observações, os maiores telescópios tinham um espelho de quatro metros de diâmetro. Hoje têm 8,2 metros de diâmetro, mas juntos podem simular um espelho com 130 metros, no caso Very Large Telescope, do ESO, no Chile, a que Portugal tem acesso. E ainda temos o ALMA, a cinco mil metros de altitude, nos Andes, que na parte submilimétrica, uma área completamente nova, que não se conhecia até 2013, tem 62 antenas que no conjunto cobrem uma superfície de vinte e tal quilómetros. É como se eu tivesse uma única grande antena que pode ser deslocada. Isto permite-nos resoluções com um detalhe e precisão que é mais de cem vezes superior à que era possível quando comecei. E, sobretudo, podemos ver com olhos diferentes. Para ver no ultravioleta e no raio-x temos que ir para o espaço, temos observatórios lá, para ver no submilimétrico temos de ir para mais de cinco mil metros, para os locais mais altos acessíveis na Terra. Há muitas janelas que nos permitem ver de maneiras diferentes os mesmos objetos. 

É interessante como em campos que à partida nos parecem mais distantes do quotidiano, como a astronomia ou a exploração espacial, se desenvolvem tantas tecnologias com efeitos práticos. Lembramo-nos muitas vezes que alguns dos avanços mais importantes apareceram devido a pesquisas militares. Mas a curiosidade científica parece-me um motor tecnológico muito mais saudável para qualquer sociedade. 
Claramente. No que toca a essa tecnologia que desenvolvida por razões meramente científicas, de curiosidade, dou muitas vezes como exemplo o caso dos raio-x, do Riccardo Giacconi, que ganhou um prémio Nobel por essa descoberta. Conheci-o muito bem, até foi ao Porto três vezes. Giacconi construiu o primeiro detetor de raio-x, para conseguiu detetar a emissão de raio-x vindos do espaço. Era minúsculo, construído há umas três décadas apenas para servir uma curiosidade científica. Mas hoje é a base de todos estes detetores que nós usamos nos aeroportos, nas lojas. Obviamente que ele não estava a pensar nessas aplicações, só queria medir a radiação-x emitida por uma fonte espacial. 

Quando discutimos temas como orçamentos de Estado para a áreas científicas, sobretudo áreas sem um fim prático imediato, às vezes são quase apontadas como um filho renegado. A pergunta é sempre: ‘Qual é a aplicação’. 
Acho que hoje já não é tanto assim. A diferença, essencialmente, é que a astronomia atual faz-se com base em colaborações internacionais de grande dimensão, sobretudo por causa da exigência tecnológica. E nós na Europa temos um caso muito positivo, que é o Observatório Europeu do Sul, que foi criado inicialmente por quatro ou cinco países, há uns sessenta anos para desenvolver telescópios para um observatório onde as condições atmosféricas eram melhores. O ESO hoje tem 14 países membros, todos europeus exceto o Chile. Os países investem dinheiro, pagam a sua cota equilibrada, uma percentagem calculada com base no seu PIB, e Portugal também é membro do ESO desde 2000. Embora nós tenhamos começado com uma associação nos anos 90. Foi isso que nos permitiu desenvolver a comunidade científica da astronomia. Porque conseguimos negociar com o ESO um contrato de associação que dizia que nós, portugueses, que tínhamos pouquíssimos astrónomos, podíamos usar os observatórios deles pagando. Por exemplo, quando íamos ao Chile pagávamos as viagens. E em retorno Portugal comprometia-se a investir aquilo que pagaria como membro pleno do ESO no desenvolvimento da astronomia cá. Essa contribuição, que na altura era cerca de 1% do orçamento deles, podia ser usada em bolsas para formação de astrónomos e na criação de centros de investigação, que foram crescendo. Foi com base nesse financiamento. Era uma migalha do nosso orçamento de Estado, mas ter esse dinheiro todos os anos fazia diferença. Às vezes, quando esse tal dinheiro não aparecia, o diretor-geral do ESO lá fazia um telefonema para um ministro, a dizer: ‘Então, parece que este ano o dinheiro está atrasado’. E o dinheiro reaparecia [risos]. Era uma garantia de desenvolvimento sustentado. 

É engraçado que quando penso em organizações como a União Astronómica Internacional, que liderou, enquanto leigo a primeira coisa que me vem à cabeça foi toda a polémica em torno de reclassificar Plutão como planeta anão.
Foi a grande celeuma [risos]. Foi numa assembleia-geral, em Praga. Por acaso não participei nessa assembleia-geral. Porque apesar de só reunirem de três em três anos, ainda são duas semanas e estava demasiado ocupada cá. 

Deve ter sido dos momentos em que a astronomia esteve mais na agenda do dia.
Houve momentos mais interessantes. A União Astronómica Internacional foi criada em 1919, já tem mais de cem anos. E surgiu numa altura muito complicada, imediatamente a seguir à Grande Guerra, tiveram de lidar com assuntos como a proibição de astrónomos alemães participarem, com grandes restrições. Trabalharam em condições muito difíceis. E tinham como prioridade essencialmente promover a colaboração internacional na ciência astronómica. Mas na última década a União Astronómica Internacional mudou muito. Mantendo como prioridade a colaboração científica e o desenvolvimento da investigação, arranjou outras missões igualmente importantes. Incluindo a utilização da astronomia como instrumento para a educação, para a comunicação de conhecimento junto de um público mais alargado e no sentido do desenvolvimento. Até temos um gabinete que se ocupa da formação de astrónomos em regiões do globo onde não há condições para essa formação ocorrer numa universidade. A União Astronómica leva professores e alunos da região para uma escola que dura umas três, quatro semanas.

Sobre essa questão da educação, pelo menos pensando no meu próprio percurso escolar, há ali uma fase em que se fala muito de astronomia, no sentido mais básico, a nível do sistema solar, etc. Recordo-me de estar fascinado com o assunto, e ver muitos colegas a sentir o mesmo, mas depois parece que há ali um vazio nos programas de ensino a partir de certo ponto. 
E é verdade, foi por isso que nós, em 2020, criámos o Office for Astronomy in Education, que é uma parceria com a sociedade Max Planck, que tem uma rede com nove centros espalhados pelo mundo. E tem como objetivo usar a astronomia como instrumento na educação. Também entrando em diálogo com os ministérios, com quem define a política educacional nos vários países membros, para tentar que essas entidades considerem a astronomia como uma disciplina relevante no ensino, dentro de todos os níveis. Porque é de facto motivante. Os alunos, podem não querer ser astrónomos, mas sentem-se cativados. E para compreender a astronomia têm que estudar matemática, física, computação. Integra uma série de outras áreas muito importantes. 

Se, há mesmo um certo fascínio na astronomia, acho que não é por acaso que se costuma dizer que quem é distraído tem a cabeça na lua. E a profusão de filmes e séries de ficção científica mostra isso. A professora, pessoalmente, é fã do género? Ou enerva-a um pouco quando têm imprecisões astronómicas?
Não, acho piada a esses filmes, tento separá-los daquilo que conheço. São fantasias, mas nós também estamos sempre a aprender. É interessante. 

Houve algum filme de ficção científica em particular que a fez pensar: ‘Isto sim é um filme que pode fazer jovens interessarem-se pela astronomia’?
Propriamente como inspiração para a astronomia acho que isso não é necessário. Acho que a melhor maneira de inspirar jovens ou adultos de qualquer idade para a astronomia é convidá-los para, numa noite escura, deitarem-se na relva e olhar para o céu um bocado. Não são precisos filmes para isso, de certeza. 

Algo que me deixou fascinado com o espaço foi a notícia de a NASA ter lançado uma missão para desviar um asteroide. Que também é uma coisa digna de filme. O que pensa do assunto?
É algo perfeitamente possível e faz sentido. Mas admito que me impressionou muito mais a missão Giotto, da ESA [Agência Espacial Europeia], aqui há uns anos. Aí uma sonda apanhou uma amostra de um cometa, para ser analisada para podermos compreender como é a composição química de um cometa. Esse género de missões são muito mais interessantes. Por exemplo, quando vamos aos observatórios do ESO é incrivelmente fascinante. É num deserto onde não existe absolutamente nada, até a água tem de ser trazida todos os dias, levam 60 mil litros de água diariamente. Trabalham lá umas duzentas pessoas e só uns dez são astrónomos. O resto são técnicos, engenheiros, etc. 

Isso mostra uma área com grande diversidade de necessidades. 
A astronomia hoje essencialmente é um proposta que astrónomos fazem – vamos estudar isto e precisamos daquilo – e os engenheiros tentam resolver isso. Porque requer sempre nova tecnologia. Que depois nós, astrónomos, utilizamos para fazer novas perguntas. Veja, o Observatório Paranal, que foi desenvolvido devido a exigências desse tipo, quando começou a funcionar já estávamos a pensar no próximo telescópio. Era para ter um espelho único com cem metros de diâmetro. É exequível? Não sabíamos, mas fomos ver. Ele está agora a ser desenvolvido, mas o espelho já só tem 39 metros, não era exequível. O máximo que é possível fazer neste momento é um telescópio com um espelho desse tamanho. E isso é um espelho flexível, que se modela para corrigir as perturbações da atmosfera. Tal como os do VLT [Very Large Telescope], que só têm 8,2 metros. E têm esta espessura [gesticula], uns vinte centímetros. A ideia do espelho flexível é que seja todo bamboleante, porque depois tem suportes distribuídos que permitem a chamada ótica adaptativa. Ou seja, não é um espelho rígido, como eram os de 4,5 metros, deforma-se por comandos sobre os seus suportes, que resultam da análise que chega no momento, estão constantemente a adaptar-se. Os fotões recebidos pelo telescópio são analisados para perceber se sofreram alterações da atmosfera, para não haver cintilação das estrelas. Imagine. Consegue-se observar como se o telescópio estivesse no espaço, só que está no solo, que é muito mais barato. Nos VLT os telescópios até podem trabalhar isoladamente – ou seja, posso ter um apontado para aqui, outro para ali [gesticula] – ou em conjunto, combinando a radiação que ambos recebem e simulando um telescópio com espelho de 130 metros. Isto é tudo avanços na tecnologia. 

Sei que é embaixadora do FIC.A [Festival Internacional de Ciência de 2022]. É este género de abordagens multidisciplinares que podemos esperar no festival?
Acho que o FIC.A é uma excelente oportunidade para mostrar que a ciência continua a desenvolver-se, a ter questões fabulosas para resolver, não só a astronomia. E que depende de nós todos, da nossa contribuição, para dar pequenos passos, um de cada vez, e avançar um pouco mais longe. Um festival deste tipo pode ser uma oportunidade de motivação e de partilha desses conhecimentos. 

Ou seja, a sua perspetiva para o festival não é só juntar especialistas, cientistas, pessoas já envolvidas na área, mas galvanizar jovens. 
Sim, isso, galvanizar o público, de certa forma para pagar de volta o financiamento que nós temos, que é pago por todos, sai dos impostos. É uma partilha de conhecimentos. A ciência, em grande parte, não produz bens. As engenharias produzem, a área mais tecnológica sim. A ciência produz conhecimentos. Mas esse conhecimento, seja qual for a área, pode vir a ser extremamente relevante, como a covid-19 mostrou. Conseguimos ter rapidamente uma vacina para responder a uma urgência. Mas também importa motivar as pessoas, mostrar-lhes que a sua contribuição é bem aplicada. Tem de ter resultados, trazer coisas boas para todos nós. 

Há umas décadas seria fácil perguntarmo-nos porque estamos a explorar o espaço e hoje temos satélites que nos permitem ter GPS. 
Exatamente. Por exemplo, no que toca a isso, a astronomia enfrenta uma situação muito complicada neste momento, preocupa-nos muito a multiplicidade de pequenos satélites, porque prejudicam a observação astronómica. São milhares deles e são fontes muito mais intensas do que aquelas que nós observamos, porque estão muito mais perto. Mas temos o problema de que eles são úteis para diversas aplicações. A União Astronómica Internacional está neste momento envolvida com empresas que produzem esses satélites a tentar chegar ao compromisso de dar aos satélites revestimentos próprios, criar condições tecnológicas para que prejudiquem o mínimo a observação. Que não sejam aquelas fontes tão brilhantes, que parecem um colar de pérolas todas seguidas quando fazemos imagens astronómicas. Porque precisamos desses satélites, enquanto humanidade.

A questão do lixo espacial deve ser muito complicada. É difícil pensar nisso quando está tão longe, mas sei que é uma preocupação cada vez maior. 
É poluição, claro. Mas a União Astronómica Internacional de facto não tem poder para o enfrentar. A sua voz é relativamente pouco ouvida, mas alertamos constantemente. No que toca ao clima, claro que a astronomia não tem nada a ver com isso, porque olhamos para cima e o clima é abaixo da atmosfera. Mas achamos que podemos dar uma contribuição ao alertar para o facto de termos só um planeta habitável, que tem condições para a vida, e que está em risco de ser perturbado seriamente. 

Quanto a termos só uma terra, tenho visto a descoberta de superterras, planetas enormes e habitáveis, até na Via Láctea. É uma avanço na perspetiva de busca da vida lá fora, mas também do sonho distante da colonização espacial. O interesse crescente nisso reflete um certo desespero, como que assumindo que este planeta já não se salva?
Isso seria uma tolice, porque as superterras estão a quatrocentos, quinhentos ou mais anos luz. O que significa que, se tiverem uma atmosfera com condições para a vida como nós a conhecemos, estão a uma distância tal que, até do ponto de vista energético, são um desafio sem solução. É muito mais lógico proteger esta nossa única Terra. As outras não sei se chegamos lá. É natural que nos perguntemos porque é que haveríamos de estar sozinhos no universo. Não há justificação, o sol é uma estrela como milhões de outras, a Terra é um planeta como milhões de outros. Não há nada de peculiar. Daí essa curiosidade. Mas no que toca à colonização, nós nem a Marte conseguimos chegar e até à Lua temos dificuldades, quanto mais isso.