Um mundo pós-urbano?


Em 2017, só 29 cidades no mundo podiam ostentar o título de ser a casa de mais de 10 milhões de habitantes. Mas em 2030, o clube crescerá para 43 cidades, das quais 14 terão mais de 20 milhões de pessoas.


Livros são para todos os meses. Mas, em Agosto, isto é ainda mais verdade.

Cruzei-me recentemente com um título que – perceberá imediatamente o leitor por que razão – me despertou curiosidade: “Survival of the City: living and thriving in the age of isolation”. 

Os autores, Edward L. Glaeser e David Cutler, são duas estrelas na Universidade de Harvard. Ambos economistas, um é especialista em desenvolvimento urbano e o outro em saúde pública. Autoridades na matéria. Glaeser e Cutler juntaram-se para avaliar as transformações que estão a ocorrer nas cidades, sobretudo depois do embate da pandemia. Os desafios, sublinham os autores, são “existenciais”. E já o eram antes da pandemia. A covid-19 veio apenas acelerar e alargar a escala de mudança. 

Estaremos, ou não, à beira de um mundo pós-urbano? A reflexão de Glaeser e Cutler parece contraintuitiva. Afinal de contas, como explica outro autor, Mauro Guillen, noutro excelente livro, “2030”, as cidades contam apenas 1% da massa terrestre do planeta mas são a casa de 55% da sua população, de 75% do consumo global de energia e de 80% das emissões de CO2. Até 2020, a população das cidades crescia à média de 1,5 milhões de pessoas por semana. Em 2017, só 29 cidades no mundo podiam ostentar o título de ser a casa de mais de 10 milhões de habitantes. Mas em 2030, o clube crescerá para 43 cidades, das quais 14 terão mais de 20 milhões de pessoas. 

Números como estes mostram aquilo que por diversas vezes aqui tenho escrito: as cidades são a mais bem-sucedida forma de governo dos homens, são a melhor invenção política da humanidade. São berços de prosperidade, de inovação, de criatividade. São, como cantava Zeca na nossa Vila Morena, a sede da liberdade e da cidadania por inteiro. 

Todavia, a pandemia pode ter mudado todas estas dinâmicas urbanas, com novos desafios à forma como trabalhamos e como socializamos. Com o avanço das soluções tecnológicas, nunca como agora as pessoas puderam abdicar da vida na cidade, criando novos equilíbrios vida/trabalho que obliteram idas ao escritório, viagens diárias nos transportes públicos ou perdas de tempo no trânsito. 

Todavia, são sobretudo os trabalhadores do conhecimento, os mais qualificados e com maiores rendimentos, os que têm ao seu dispor a escolha do trabalho remoto. Isto é, em si mesmo, uma linha de profunda desigualdade perante todos os outros trabalhadores que levam as nossas economias para a frente e que, na esmagadora maioria dos casos, foram a linha da frente no combate à pandemia nos serviços essenciais. 

Esta questão da desigualdade é central para o futuro das cidades. E outro dos sublinhados que os autores fazem está na exigência de respostas das cidades ao nível da saúde e da educação para manter a coesão do tecido social da urbe e a própria sobrevivência da cidade enquanto organismo político vivo.   

Ao longo das últimas três semanas, trouxe às páginas deste jornal as medidas que implementámos em Cascais em três eixos críticos para o nosso desenvolvimento presente e futuro: saúde, educação, ambiente. Muito em linha com aqueles que são, também, os fatores chave apontados por Glaeser e Cutler. 

A estes somam-se outros valores que fazem parte do nosso património identitário em Cascais. Como a abertura ao mundo: as cidades mais bem-sucedidas no futuro são aquelas que mais forem capazes de incluir aqueles que as procurem para realizar os seus projetos de vida. Com as suas redes que não conhecem fronteiras, com as suas mini-sociedades de nações dentro de bairros ou freguesias, com as suas empresas, universidades e agentes culturais, as cidades são o melhor antídoto para essa crescente tendência isolacionista que observamos no domínio das nações.

Ou como a solidariedade:  a ideia de que somos uma comunidade em que todos contam, em que nenhum de nós pode ficar para trás, que somos mais fortes não no individualismo radical mas na soma de todas as partes que nos compõem. 

Estaremos num ponto de inversão que nos encaminhe para um mundo pós-urbano? Ficaremos a saber a resposta à pergunta de Glaeser e Cutler dentro de pouco tempo.

O que sabemos, já, é que vivemos, nos últimos dois anos, uma aceleração histórica de efeitos ainda desconhecidos. À pandemia, somaram-se processos de de-globalização e retoma do nacionalismo económico, do agravamento das alterações climáticas (com efeitos bem notórios nos fenómenos climáticos extremos que temos testemunhado em todo o mundo), e a rutura do mais longo período de paz na Europa, com o regresso da guerra e, com ela, da inflação, da carestia de vida e da crise humanitária e social. 

Os decisores políticos têm estado focados na gestão da emergência. 

Porém, nunca como agora foi tão crucial pensar e planear o futuro. Ter uma estratégia. Só quem conseguir fazê-lo terá condições para emergir mais forte desta tempestade perfeita. 

Eu sei, por experiência própria, que os municípios são ágeis, solidários, trabalhadores e resilientes. E que, por isso mesmo, vencerão mais um desafio que a história lhes colocou. 

Presidente da Câmara Municipal de Cascais
Escreve à quarta-feira

Um mundo pós-urbano?


Em 2017, só 29 cidades no mundo podiam ostentar o título de ser a casa de mais de 10 milhões de habitantes. Mas em 2030, o clube crescerá para 43 cidades, das quais 14 terão mais de 20 milhões de pessoas.


Livros são para todos os meses. Mas, em Agosto, isto é ainda mais verdade.

Cruzei-me recentemente com um título que – perceberá imediatamente o leitor por que razão – me despertou curiosidade: “Survival of the City: living and thriving in the age of isolation”. 

Os autores, Edward L. Glaeser e David Cutler, são duas estrelas na Universidade de Harvard. Ambos economistas, um é especialista em desenvolvimento urbano e o outro em saúde pública. Autoridades na matéria. Glaeser e Cutler juntaram-se para avaliar as transformações que estão a ocorrer nas cidades, sobretudo depois do embate da pandemia. Os desafios, sublinham os autores, são “existenciais”. E já o eram antes da pandemia. A covid-19 veio apenas acelerar e alargar a escala de mudança. 

Estaremos, ou não, à beira de um mundo pós-urbano? A reflexão de Glaeser e Cutler parece contraintuitiva. Afinal de contas, como explica outro autor, Mauro Guillen, noutro excelente livro, “2030”, as cidades contam apenas 1% da massa terrestre do planeta mas são a casa de 55% da sua população, de 75% do consumo global de energia e de 80% das emissões de CO2. Até 2020, a população das cidades crescia à média de 1,5 milhões de pessoas por semana. Em 2017, só 29 cidades no mundo podiam ostentar o título de ser a casa de mais de 10 milhões de habitantes. Mas em 2030, o clube crescerá para 43 cidades, das quais 14 terão mais de 20 milhões de pessoas. 

Números como estes mostram aquilo que por diversas vezes aqui tenho escrito: as cidades são a mais bem-sucedida forma de governo dos homens, são a melhor invenção política da humanidade. São berços de prosperidade, de inovação, de criatividade. São, como cantava Zeca na nossa Vila Morena, a sede da liberdade e da cidadania por inteiro. 

Todavia, a pandemia pode ter mudado todas estas dinâmicas urbanas, com novos desafios à forma como trabalhamos e como socializamos. Com o avanço das soluções tecnológicas, nunca como agora as pessoas puderam abdicar da vida na cidade, criando novos equilíbrios vida/trabalho que obliteram idas ao escritório, viagens diárias nos transportes públicos ou perdas de tempo no trânsito. 

Todavia, são sobretudo os trabalhadores do conhecimento, os mais qualificados e com maiores rendimentos, os que têm ao seu dispor a escolha do trabalho remoto. Isto é, em si mesmo, uma linha de profunda desigualdade perante todos os outros trabalhadores que levam as nossas economias para a frente e que, na esmagadora maioria dos casos, foram a linha da frente no combate à pandemia nos serviços essenciais. 

Esta questão da desigualdade é central para o futuro das cidades. E outro dos sublinhados que os autores fazem está na exigência de respostas das cidades ao nível da saúde e da educação para manter a coesão do tecido social da urbe e a própria sobrevivência da cidade enquanto organismo político vivo.   

Ao longo das últimas três semanas, trouxe às páginas deste jornal as medidas que implementámos em Cascais em três eixos críticos para o nosso desenvolvimento presente e futuro: saúde, educação, ambiente. Muito em linha com aqueles que são, também, os fatores chave apontados por Glaeser e Cutler. 

A estes somam-se outros valores que fazem parte do nosso património identitário em Cascais. Como a abertura ao mundo: as cidades mais bem-sucedidas no futuro são aquelas que mais forem capazes de incluir aqueles que as procurem para realizar os seus projetos de vida. Com as suas redes que não conhecem fronteiras, com as suas mini-sociedades de nações dentro de bairros ou freguesias, com as suas empresas, universidades e agentes culturais, as cidades são o melhor antídoto para essa crescente tendência isolacionista que observamos no domínio das nações.

Ou como a solidariedade:  a ideia de que somos uma comunidade em que todos contam, em que nenhum de nós pode ficar para trás, que somos mais fortes não no individualismo radical mas na soma de todas as partes que nos compõem. 

Estaremos num ponto de inversão que nos encaminhe para um mundo pós-urbano? Ficaremos a saber a resposta à pergunta de Glaeser e Cutler dentro de pouco tempo.

O que sabemos, já, é que vivemos, nos últimos dois anos, uma aceleração histórica de efeitos ainda desconhecidos. À pandemia, somaram-se processos de de-globalização e retoma do nacionalismo económico, do agravamento das alterações climáticas (com efeitos bem notórios nos fenómenos climáticos extremos que temos testemunhado em todo o mundo), e a rutura do mais longo período de paz na Europa, com o regresso da guerra e, com ela, da inflação, da carestia de vida e da crise humanitária e social. 

Os decisores políticos têm estado focados na gestão da emergência. 

Porém, nunca como agora foi tão crucial pensar e planear o futuro. Ter uma estratégia. Só quem conseguir fazê-lo terá condições para emergir mais forte desta tempestade perfeita. 

Eu sei, por experiência própria, que os municípios são ágeis, solidários, trabalhadores e resilientes. E que, por isso mesmo, vencerão mais um desafio que a história lhes colocou. 

Presidente da Câmara Municipal de Cascais
Escreve à quarta-feira