Na semana passada, duas notícias sobre a Justiça interromperam o hiato comunicacional que, no verão, se ia fazendo sobre o tema.
Tal silêncio é já habitual, até devido à interrupção da maioria dos trabalhos dos tribunais, que, nesta época do ano, sempre acontece.
Refiro-me, pois, à notícia sobre os resultados de um inquérito europeu à confiança – seriedade – que os juízes têm no sistema português de Justiça, e ao elencar, sumário, que um órgão da comunicação social fez do programa da SEDES para a reforma do setor.
Algumas explicações circunstanciais foram, entretanto, dadas pelo presidente da associação dos juízes sobre o primeiro assunto, razões que, dada a sua razoabilidade, nos parecem pertinentes, mesmo que, claro, como ele mesmo reconheceu, não expliquem totalmente o resultado do inquérito.
Mais do que procurar saber se, face a um conjunto limitado – mas marcante – de casos, um número significativo dos juízes respondeu manifestando a sua desconfiança sobre o funcionamento do sistema de distribuição processual e a honestidade de alguns dos membros da magistratura judicial, o que importa é perceber como tal resposta pode ter sido influenciada e fazer alastrar, ou não, a já diminuída perceção pública sobre a fiabilidade da Justiça.
Queira-se ou não, esta última, aliada ao tal número pequeno, mas marcante, de casos conhecidos de uso indevido dos poderes judiciais, influi, também necessariamente, no juízo que os próprios magistrados vão fazendo sobre o sistema de Justiça e sobre o desfecho, por vezes inesperado, de alguns processos judiciais.
A ideia de que só agora isso acontece, não me parece, contudo, razoável.
Na verdade, desde que tomei contacto com a Justiça – e por razões familiares isso começou mesmo antes de frequentar a faculdade de Direito – que me dei conta de observações e comentários dos próprios juízes sobre a correção do desempenho de uns quantos colegas e sobre os motivos de tal conduta.
Acontece, porém, que, à época, havia censura e era impensável que tal tipo de rumores viesse a público e se espalhasse contribuindo para a formação de uma perceção pública negativa sobre a Justiça.
Mais tarde, com o 25 de Abril, vivemos todos encantados com a generosidade da democracia, entusiasmados com o processo político e, por isso, pouco fomos ligando ao que se passava no seio do sistema judicial, para além, naturalmente, do problema da sua notória morosidade.
Viviam-se, então, tempos de mudança: criaram-se concursos e estágios remunerados para o acesso às magistraturas e, depois, o Centro de Estudos Judiciários valorizou, também significativamente, o estatuto socioprofissional das magistraturas e recrutava-se, por isso, para elas os melhores quadros provindos das universidades.
Todo esse quadro favorável foi sendo, entretanto, erodido.
Os grandes escritórios de advocacia atualmente pagam bem melhor os estágios do que o Estado e oferecem mais entusiasmantes perspetivas de carreira aos recém-licenciados que se tenham destacado na Universidade.
O problema não é só uma questão de estatuto socioeconómico, mas também de condições materiais de trabalho e das possibilidades oferecidas de fixação e estabilidade, desde o início da carreira, nos grandes centos urbanos.
Não quero com isto significar que o problema da honestidade dos magistrados esteja associado às condições económicas e laborais: não está, nem nunca esteve.
O que pretendo é relembrar como se foi prescindindo do recrutamento dos melhores quadros e, portanto, de uma imagem de qualidade como apanágio da magistratura.
E digo imagem porque, na verdade, a realidade é muito melhor do que a perceção que, a partir de poucos e bem definidos casos, se faz de um corpo de magistrados, em geral sério, bem preparado e trabalhador.
O problema é que a tendência para uma certa funcionalização do estatuto dos magistrados, em simultâneo com a intervenção dos tribunais em matérias cada vez mais sensíveis do ponto de vista político-económico, cria tensões internas e externas, que conduzem à produção e reprodução de uma sua imagem desbotada e pouco apreciável.
Ora, lendo o sumário que os órgãos de comunicação social fizeram do programa da SEDES para a Justiça – e só dele tomei conhecimento e, portanto, posso estar a ser injusto – nada nele vejo que, inovatoriamente, possa contribuir para a elevação dos requisitos exigidos para o exercício da magistratura e, por isso, para a sua qualidade.
Grande parte do reduzido sumário de medidas que nos foi dado a conhecer parece, de facto, apontar, prioritariamente, para soluções superestruturais, cujos contornos e propósitos políticos não são enunciados, nem explicados.
Sobre as questões do recrutamento, apetrechamento, especialização, exigência, carreira e valorização das magistraturas – e é aí que nos parece dever incidir uma inevitável reforma da Justiça – nada a comunicação social apontou em tal programa.
A ideia do ranking dos tribunais parece-me até absolutamente lamentável: lembremos as injustas comparações e a clara demagogia que, com base em tal sistema, tem sido feita no caso das escolas.
Por outro lado, repito, nunca vi que sobre os magistrados que exerceram funções políticas – em governos de diferentes cores – tenha recaído, alguma vez, qualquer suspeição no que respeita às decisões judiciais que tomaram após o seu regresso à magistratura.
Não é por certo aí – dada até a visibilidade a que se sujeitam – mas na participação em outras atividades associativas e em filiações menos visíveis que se devem procurar os problemas e as soluções para a maior transparência da Justiça.
A interdição do exercício de funções políticas ou administrativas aos magistrados – e recordo: nunca exerci nenhuma – irá acentuar, além disso, uma ideia que começa a fazer caminho no seio de alguns setores da magistratura: a ideia de nós contra eles, a casta.
Ela contribui, também, para a diabolização da função política exercida em democracia, o que só pode favorecer populismos e autoritarismos em muitos setores da sociedade e mesmo, eventualmente, no exercício da função judicial.