Ponzi como metáfora, ou papas e bolos


O criminoso promete alta remuneração (e, o mais das vezes, rápida) e a vítima, crismada de investidor, acredita e investe; depois, recebe durante um tempo e mais tarde, quanto tudo arde (porque o esquema não dura e não se alimenta para sempre), perde. Ora, qual o móbil do criminoso: a ganância. E qual o móbil…


Dizem que Charles Ponzi inventou o esquema que consiste na promessa de pagamento de rendimentos altos a quem invista, à custa dos investimentos de quem vem depois, e assim sucessivamente, até que tudo um dia rebenta, porque o que entra já não chega para remunerar quem chegou antes. Talvez tenha sido invenção sua, e pelo menos assim passou a chamar-se à artimanha, embora os ingredientes para esta forma de burla (que outra coisa não é) sejam tão velhos quanto o mundo. Sim, claro – pensará o leitor -, é verdade, pois esses ingredientes são astúcia e maldade, por um lado, e crendice e bondade, por outro. E pensa bem o leitor, mas só parcialmente, pois nenhum desses é o ingrediente essencial (e bondade até duvido que seja elemento da coisa). O que dá mesmo, mesmo corpo aos docinhos ponzianos e afins é a ganância. E nessa ganância pecam quer o algoz quer a vítima. Aqui d’El Rei, que eu ao dizer isto estaria a desvalorizar a perda das vítimas e/ou a desculpar o comportamento dos meliantes. “Pois claro, só podia, o advogado da malandragem” – diriam as três ou quatro alminhas do costume, que nada mais sabem balir no exercício da sua profissão de bobos ou bobas da corte. Nada disso, digo-vos eu, não estou a desvalorizar nada, nem a desculpar. E nem sequer estou a ser irónico, coisa que muitas vezes sou, mesmo sabendo que há quem diga que a ironia pode ser sintoma de sobranceria. E talvez seja (Susan Sontag escreveu-o, e de mania de superioridade ela sabia), há que admitir todas as hipóteses e mesmo quem sofra de sobranceria deve fazer um esforço de humildade intelectual. Porém, acho que a ironia é mais uma forma de dizer as coisas tentando não ofender e/ou de pôr o dedo na ferida sem que doa tanto quanto doeria se se dissesse as coisas de uma forma mais crua. Tenho para mim que é uma questão de estilo, que privilegia o efeito terapêutico de uma mordedura que deixe os dentes marcados, mas não rasgue a carne.

 Mas neste caso não é ironia. Repare o leitor, se tiver paciência e a bondade (aqui sim, bondade) de dar um minuto de atenção: a burla é, por definição, um crime com a participação da vítima, ou seja, alguém, induzido em erro por manobra astuciosa do criminoso, faz alguma coisa que lhe gera uma perda ou um empobrecimento. E nos esquemas Ponzi também é assim. O criminoso promete alta remuneração (e, o mais das vezes, rápida) e a vítima, crismada de investidor, acredita e investe; depois, recebe durante um tempo e mais tarde, quanto tudo arde (porque o esquema não dura e não se alimenta para sempre), perde. Ora, qual o móbil do criminoso: a ganância. E qual o móbil da vítima: a ganância. Está mal o primeiro? Está, claro, e deve ser punido. Está mal a segunda? Não, não está, e deve ser protegida. Mas não deixa de ser verdade que só um grande desejo de ganhar, e de preferência muito e depressa, pode levar alguém a acreditar no contrário daquilo que sabemos, ou deveríamos saber desde que o mundo é mundo: não existem muitas formas de enriquecer, sobretudo depressa, e perante promessas de tais enriquecimentos o melhor é franzir o sobrolho, duvidar, franzir outra vez, duvidar de novo, e, mesmo que seja para avançar, avançar aos poucochinhos, porque a pólvora só se descobriu uma vez, e mesmo assim os resultados de tal descoberta nem sempre têm sido famosos. Mas os tempos não estão para grandes pensamentos e desconfianças sobre investimentos que são fáceis, rápidos e dão milhões, e talvez por isso sobejem notícias sobre casos Ponzi: é que, por um lado, o mundo moderno venera e cultiva, além da riqueza, a rapidez, e tudo é bom se for para amanhã, ou mesmo para hoje; e, por outro lado, somos cada vez mais dados à crendice, embora nos tenhamos por muito espertos e informados. Pois se as pessoas acreditam nas encenações do que veem nas redes sociais, por exemplo, porque não haveriam também de acreditar nos esquemas de pirâmide? Com papas e bolos…, lá diz o aforismo. 

Escreve quinzenalmente à sexta-feira

Ponzi como metáfora, ou papas e bolos


O criminoso promete alta remuneração (e, o mais das vezes, rápida) e a vítima, crismada de investidor, acredita e investe; depois, recebe durante um tempo e mais tarde, quanto tudo arde (porque o esquema não dura e não se alimenta para sempre), perde. Ora, qual o móbil do criminoso: a ganância. E qual o móbil…


Dizem que Charles Ponzi inventou o esquema que consiste na promessa de pagamento de rendimentos altos a quem invista, à custa dos investimentos de quem vem depois, e assim sucessivamente, até que tudo um dia rebenta, porque o que entra já não chega para remunerar quem chegou antes. Talvez tenha sido invenção sua, e pelo menos assim passou a chamar-se à artimanha, embora os ingredientes para esta forma de burla (que outra coisa não é) sejam tão velhos quanto o mundo. Sim, claro – pensará o leitor -, é verdade, pois esses ingredientes são astúcia e maldade, por um lado, e crendice e bondade, por outro. E pensa bem o leitor, mas só parcialmente, pois nenhum desses é o ingrediente essencial (e bondade até duvido que seja elemento da coisa). O que dá mesmo, mesmo corpo aos docinhos ponzianos e afins é a ganância. E nessa ganância pecam quer o algoz quer a vítima. Aqui d’El Rei, que eu ao dizer isto estaria a desvalorizar a perda das vítimas e/ou a desculpar o comportamento dos meliantes. “Pois claro, só podia, o advogado da malandragem” – diriam as três ou quatro alminhas do costume, que nada mais sabem balir no exercício da sua profissão de bobos ou bobas da corte. Nada disso, digo-vos eu, não estou a desvalorizar nada, nem a desculpar. E nem sequer estou a ser irónico, coisa que muitas vezes sou, mesmo sabendo que há quem diga que a ironia pode ser sintoma de sobranceria. E talvez seja (Susan Sontag escreveu-o, e de mania de superioridade ela sabia), há que admitir todas as hipóteses e mesmo quem sofra de sobranceria deve fazer um esforço de humildade intelectual. Porém, acho que a ironia é mais uma forma de dizer as coisas tentando não ofender e/ou de pôr o dedo na ferida sem que doa tanto quanto doeria se se dissesse as coisas de uma forma mais crua. Tenho para mim que é uma questão de estilo, que privilegia o efeito terapêutico de uma mordedura que deixe os dentes marcados, mas não rasgue a carne.

 Mas neste caso não é ironia. Repare o leitor, se tiver paciência e a bondade (aqui sim, bondade) de dar um minuto de atenção: a burla é, por definição, um crime com a participação da vítima, ou seja, alguém, induzido em erro por manobra astuciosa do criminoso, faz alguma coisa que lhe gera uma perda ou um empobrecimento. E nos esquemas Ponzi também é assim. O criminoso promete alta remuneração (e, o mais das vezes, rápida) e a vítima, crismada de investidor, acredita e investe; depois, recebe durante um tempo e mais tarde, quanto tudo arde (porque o esquema não dura e não se alimenta para sempre), perde. Ora, qual o móbil do criminoso: a ganância. E qual o móbil da vítima: a ganância. Está mal o primeiro? Está, claro, e deve ser punido. Está mal a segunda? Não, não está, e deve ser protegida. Mas não deixa de ser verdade que só um grande desejo de ganhar, e de preferência muito e depressa, pode levar alguém a acreditar no contrário daquilo que sabemos, ou deveríamos saber desde que o mundo é mundo: não existem muitas formas de enriquecer, sobretudo depressa, e perante promessas de tais enriquecimentos o melhor é franzir o sobrolho, duvidar, franzir outra vez, duvidar de novo, e, mesmo que seja para avançar, avançar aos poucochinhos, porque a pólvora só se descobriu uma vez, e mesmo assim os resultados de tal descoberta nem sempre têm sido famosos. Mas os tempos não estão para grandes pensamentos e desconfianças sobre investimentos que são fáceis, rápidos e dão milhões, e talvez por isso sobejem notícias sobre casos Ponzi: é que, por um lado, o mundo moderno venera e cultiva, além da riqueza, a rapidez, e tudo é bom se for para amanhã, ou mesmo para hoje; e, por outro lado, somos cada vez mais dados à crendice, embora nos tenhamos por muito espertos e informados. Pois se as pessoas acreditam nas encenações do que veem nas redes sociais, por exemplo, porque não haveriam também de acreditar nos esquemas de pirâmide? Com papas e bolos…, lá diz o aforismo. 

Escreve quinzenalmente à sexta-feira