Nuno Jacinto. “Temos uma crise na obstetrícia. Não se lembraram de pôr outros médicos a fazer partos”

Nuno Jacinto. “Temos uma crise na obstetrícia. Não se lembraram de pôr outros médicos a fazer partos”


Mais de 100 novos médicos de família não ficaram a trabalhar no SNS. Associação marcou protesto para sábado e pede à tutela que lhes pergunte porquê.


A Associação Portuguesa de Medicina Geral Familiar (APMGF) convocou para este sábado um protesto inédito em frente ao Ministério da Saúde. A nova regra que permite a médicos indiferenciados substituir especialistas em medicina geral e familiar nos centros de saúde está no centro da contestação.

Mas antecipa-se uma nova fratura nos cuidados primários: novo bónus salarial para unidades com menor cobertura vai duplicar salários de alguns médicos, enquanto colegas, até na mesma zona ou unidade, estão há anos a ganhar o salário base.

Nuno Jacinto, médico de família em Évora, à frente da APMGF desde 2020, traça o retrato do descontentamento dos médicos que deviam ser a porta de entrada no SNS, com a perspetiva de quem há 14 anos saiu de Lisboa para ir trabalhar para o interior.

Numa entrevista feita antes de saírem os resultados definitivos do concurso para a colocação de novos médicos de família, que terão deixado mais de metade das vagas em Lisboa desertas com pelo menos 70 médicos a abandonar o SNS, insiste que insistir em remendos não vai resolver os problemas. Acredita que será possível todos os portugueses terem médico de família, mas não pelo atual caminho, que arrisca fazer o país recuar para os anos 60, afirma.

Não há memória recente de um protesto convocado pelos médicos de família. O que vos fez avançar para esta manifestação?

Possivelmente é a primeira. O que nos fez avançar foram as últimas medidas do Governo no que toca aos cuidados de saúde primários e aos médicos de família, em especial a Lei do Orçamento de Estado, que prevê como solução para os locais que tenham uma baixa cobertura de médicos de família, e onde não se consiga contratar especialistas em Medicina Geral e Familiar, a colocação de médicos sem esta especialidade a assumirem a responsabilidade por uma lista de 1900 utentes.

Para dar algum contexto, até aqui já havia centros de saúde que faziam estes contratos para tapar buracos, como os tarefeiros dos hospitais. A diferença era que não eram médicos de família e não tinha utentes a seu cargo.

Sim. A questão é que até agora o que acontecia era estes colegas serem colocados, por exemplo, a fazer a consulta aberta, a consulta do dia, a renovação de receituário. Agora temos uma lei que coloca preto e branco que é como se fossem médicos de família e que diz que ficam responsáveis por uma lista de 1900 utentes. E apesar de se dizer que preferencialmente ou predominantemente será para as situações agudas de carência de profissionais, o que é facto é que está lá escrito que ficam responsáveis por uma lista de 1900 utentes. E para um médico ser responsável por uma lista de 1900 utentes tem de ser médico de família, por isso não o podemos aceitar.

Ficarão responsáveis sem supervisão, independentemente da experiência e formação?

Sim, sem supervisão. São autónomos e não têm supervisão absolutamente nenhuma, que para que se perceba o que está em causa é uma realidade diferente do que acontece na maioria dos sítios em que se recorre a médicos indiferenciados. E podem dizer que já há exceções no país onde há colegas sem especialidade com listas a cargo. Sim, é verdade. Isso aconteceu há dez, 15 anos e também foi contestado na altura. Mas são situações excecionais e que deveriam ser resolvidas progressivamente. O que estamos a fazer agora é exatamente o caminho oposto, que é pegar no que deviam ser exceções e começar a torná-las a regra.

Pode haver sempre a reação de que é uma posição corporativista.

Pode, mas a questão não é sermos corporativistas. Temos de oferecer cuidados com qualidade aos nossos utentes e para termos isso nos centros de saúde existe uma especialidade que é a de medicina geral e familiar. Tem 40 anos de história, não tem quatro dias. É uma formação que é feita após o curso e após a formação geral e a formação específica ao longo de quatro anos. E existe por um motivo.

Sendo uma especialidade generalista, ela não é uma especialidade simplista, tem muitas particularidades. Essa formação reflete-se nos utentes e doentes, reflete-se na prevenção de doenças, reflete-se no controlo de inúmeras doenças crónicas, reflete-se no envio de doentes à urgência e na referenciação a consultas hospitalares.

E tem outro princípio básico: a medicina hoje em dia não é compatível com o médico que faz tudo. Isso já não existe. Claramente com a evolução da medicina o caminho é o da especialização. E mesmo dentro das especialidades começa a haver cada vez mais subespecialidades e áreas de interesse. Este é o caminho dos países civilizados. Não podemos ter outra vez a ideia que um médico é um médico e basta. Até porque isto abre a porta a que, no futuro, possamos assumir que qualquer médico pode fazer as tarefas de qualquer especialidade, basta que tenha ali um treinozinho. Não pode ser.

O problema da escassez de profissionais de saúde não é exclusivo do SNS português. Há algum país que tenha avançado por aqui?

Não há, não pelo menos a nível europeu e nos países com que nos comparamos. E este recuo torna-se ainda mais estranho e incompreensível quando Portugal não tem falta de especialistas em Medicina Geral e Familiar. Se isso ainda fosse verdade, se pudéssemos dizer que não há, que não estamos a conseguir formar e que era impossível nas próximas décadas termos especialistas, era uma coisa. Mas os especialistas existem, o que acontece é que eles não ficam no SNS. Que, aliás, é o que está a acontecer mais uma vez no concurso que está a decorrer para recém-especialistas.

Têm noção de quantas das 432 vagas ficaram por preencher? [Ontem ficou a saber-se que metade das vagas ficaram por preencher em Lisboa, e vão ser colocados mais de 270 médicos]. 

Não consigo dizer números finais, que ainda não são conhecidos, mas há dois dias já tínhamos informação de que havia pelo menos 70 colegas que não tinham escolhido vaga e tudo aponta para que mais de uma centena tenham acabado por não ficar numa vaga no SNS.

No caso de medicina geral e familiar, abriram as vagas a coincidir com os médicos que se formaram?

Os candidatos são um bocadinho menos do que as vagas e saírem 70 já é um impacto brutal. Vamos outra vez para uma proporção gigantesca do que é a incapacidade de reter estes médicos no SNS. E depois vamos ouvir: os médicos são muito exigentes com aquilo que pedem para trabalhar no SNS. Não, os médicos não são muito exigentes. Agora o que pedimos é que, seja os mais novos, seja os mais velhos, haja condições de trabalho e sejam valorizados. Valorizados já percebemos que não fomos nem somos porque agora até nos dizem que qualquer um pode fazer o nosso trabalho. Logo aí, a desmotivação cresce exponencialmente quando o que precisávamos era de estar a fazer o percurso contrário.

E depois, quando falamos de condições de trabalho, são vários fatores. Claro que existe a questão salarial, e essa é uma matéria dos sindicatos, mas é óbvio que temos de falar de salário, das tabelas remuneratórias e da progressão na carreira, que em muitos casos não existe. Temos colegas ainda à espera de fazer exame para o concurso de consultor de 2017! Estamos em 2022. Não faz sentido absolutamente nenhum. 

Para quem não está por dentro das carreiras no Estado, estamos a falar de médicos de família que estão há dez anos a ganhar o mesmo?

Há mais de 10 anos. Estamos a falar de colegas que estão há 11, 12, 13 anos, desde quando acabaram a sua especialidade e ingressaram na carreira especial médica, a ganhar o mesmo.

Que no início da carreira médica são cerca de 1800 euros líquidos por mês.

Sim. E depois estão anos sem progressão ou, quando há, é mínima. Ao final de cinco anos, devia ser possível a todos os médicos que foram exercendo as suas funções subir um grau, passarem a ter o grau de consultor, que é atribuído após um exame público. E digo isto porque esse é outro mito que às vezes passa: de que os médicos não têm avaliação.

Temos e se calhar até muito mais rigorosa do que a de outras carreiras da função pública. A questão é que o último concurso abriu em 2017, e já abriu com atraso, e ainda não foi concluído. Para os graus superiores da carreira há coisas ainda piores. Há colegas que no seu local de trabalho, no seu agrupamento de centros de saúde, nunca tiveram um concurso aberto para a progressão nas últimas décadas. Portanto a carreira não existe.

E mesmo quando existe, o que vemos é que na prática não existe, porque se devíamos poder fazer outras coisas, estar mais ligados ao ensino dos internos, à gestão da unidade, fazemos todos exatamente a mesma coisa numa carreira completamente estagnada. Portanto, a questão salarial, carreiras, autonomia das equipas, é isto que precisamos de mudar. A autonomia das equipas aparece agora no novo estatuto do SNS mas ninguém sabe muito bem o que é.

Andamos a bater-nos por isto há não sei quanto tempo, temos outra vez palavras bonitas, mas não sabemos o que é que por aí vem. Será semelhante à dos hospitais? Os hospitais também não conseguem resolver os seus problemas.

É uma autonomia sempre balizada pelo orçamento e contratualização definido no início do ano.

E como se define nem sempre é claro.

Há entretanto um novo despacho do Governo que avança com um bónus salarial de 60% para os novos médicos de família colocados em unidades com uma cobertura abaixo da média, que será acumulável com o bónus de 40% no caso de médicos que ocupam as chamadas vagas. Esta diferença de salários, que já acontecia só com as vagas carenciadas, entre pessoas que vão chegar às equipas e pessoas que já lá estão não pode criar um enorme desconforto?

Claro. O problema aqui é que nós andamos sempre com remendos. Este é mais um. Em vez de valorizarmos o salário base e deixarmos de andar sempre com acrescentos, que ainda por cima são soluções temporárias, persistimos nisto. E está à vista o que vai acontecer.

Com esta alteração, passamos a ter colegas que até dentro do mesmo ACES, em unidades contíguas e às vezes até dentro da mesma unidade, recebem o salário base e mais nada; outros que estão a receber o base mais 40% porque entraram numa vaga carenciada e estão assim seis anos e outros que vão entrar a receber o base mais 40%, mais 60% porque apanham uma vaga carenciada e este novo incentivo durante três anos.

Em ambos os casos de bónus mensais de mais de mil euros, no caso das vagas carenciadas 1.111,78 euros brutos mensais e, no caso do novo suplemento remuneratório de 60%, 1857,49 euros brutos mensais por três anos. Isso dá diferenças de que ordem nos vencimentos?

Significa que há vagas em que se pode duplicar o ordenado durante alguns anos.

Alguns médicos estão há anos a ganhar 1800 euros líquidos e outros que vão começar a ganhar 3 mil euros líquidos.

Sim, depende dos impostos, mas podemos ter uns a ganhar 1800, outros 2500, outros 3100, a fazer o mesmo.

Não há o risco de isso levar a uma debandada dos centros de saúde?

É óbvio que o risco é esse. A lógica não pode ser esta e já se provou que os incentivos por si só não funcionam, se não as vagas eram ocupadas. Tem de haver uma mudança de valorização daquilo que é o trabalho médico de base, que é o que não vemos.

Mesmo assim, com este novo incentivo, podem ficar desertas mais de uma centena de vagas. O incentivo não funcionou ou essas vagas que dão um salário maior serão ocupadas?

Não sei dizer a esta altura quantas foram ocupadas, mas se não forem pode ser por vários motivos fáceis de perceber. As pessoas podem não viver sequer perto de onde são essas vagas, ou não querem estar sujeitas a uma situação que dura três anos e depois não sabem bem o que lhes acontece, ou porque não querem estar num regime que sabem que é díspar em relação ao que têm os colegas da mesma unidade e não querem sujeitar-se a isso ou porque têm melhores alternativas cá fora, apesar dos 60% de bónus. Temos aqui várias hipóteses e insisto, o problema não é só dinheiro. A questão económica é importante e não pode ser escondida. Agora não é a única.

Se só atirarem dinheiro para cima do problema, as pessoas vão continuar descontentes em muitos locais. Aliás, esta diferenciação que agora vai acontecer entre os dos 40% e os dos 60% e os que acumulam os dois incentivos só vem juntar-se às diferenças que hoje já existem entre quem trabalha em USF A, B, que já vem de trás a criar um enorme mal-estar.

Está à espera que a recusa dessas vagas se vire contra os médicos?

Sim e por isso é bom lembrar que este incentivo não abrange todas as vagas, estamos a falar de 50 ou 60 colegas. É preciso ir à raiz dos problemas. Hoje o mapa de vagas de internato que é aberto no ano x não tem em conta as necessidades especialistas no ano x mais quatro, que é quando vão acabar a especialidade.

E isso tem levado a quê?

Abrimos vagas quando já sabemos que muitas vezes os colegas não serão precisos nas unidades onde se vão formar e depois não estimulamos nada que nos sítios onde sabemos que vão ser precisos médicos passe a haver uma maior capacidade de formação. E agora já nem sequer podem dizer que isto é da responsabilidade de outro Ministério, porque as vagas destes colegas que agora acabaram a especialidade já foram abertas por este Ministério, noutro Governo, mas por este Ministério. Portanto não podemos continuar a andar como se os problemas caíssem todos de paraquedas e o mal viesse todo de trás.

Já sabemos que é assim e que este sistema não funciona a reter especialistas no SNS. Sabemos que a solução não é imediata, isto não se resolve amanhã. Mas se nunca fazemos nada o amanhã está sempre longe de mais. Esta questão do planeamento das vagas é absolutamente essencial. Outro problema incompreensível é, por exemplo, num determinado ACES (agrupamento de centros de saúde) acabam de formar-se dez especialistas, dez novos médicos de família. O ACES precisa de 15, mas a tutela só autoriza a abertura de cinco vagas, na esperança de que os outros cinco se mobilizem por exemplo para ir para Lisboa ou Vale do Tejo ou para Algarve onde faltam médicos.

Portanto o local onde os médicos até podiam ficar não os retém. E eles não vão para outro lado, porque não é nessa fase da vida que as pessoas, já com mais de 30 anos, com família, se mobilizam. E por cima disto essa confusão de um regime de incentivos que para uns é por seis anos, para outros agora por três.

As vagas carenciadas por definição não deviam abrir em todos os sítios onde faltam médicos?

Isso é outra coisa que não se percebe. Temos vagas carenciadas que não estão em unidades com média de cobertura inferior à nacional e temos vagas nessas unidades que não são carenciadas. Quem é que definiu essas vagas? Bom, não foram os médicos de família nem foram os ACES.

Que reações lhe estão a chegar dos médicos? E mesmo os diretores dos ACES? Imagino que seja complicado gerir estas diferenças salariais no dia-a-dia. 

Os colegas sentem-se perdidos e os diretores executivos e os presidentes dos conselhos clínicos andam todos perdidos com isto. Quando um ACES diz que precisa de dez vagas é porque precisa delas, não precisa delas por capricho. E nisto vem alguém, que normalmente é a ACSS, que diz “não, não, vocês não vão ter dez vagas, vão ter seis”. Mas porquê? Porque é que tiram quatro? E depois pedem cinco carenciadas e das cinco são duas. Mas porquê? Com base em quê? “Porque, pelas contas, pelos rácios…”.

O mundo não são folhas de excel, há coisas que não se coadunam com essas contas de régua e esquadro. Zonas com uma grande dispersão geográfica, como é aquela em que eu trabalho ou como Trás os Montes, ou um ACES na Grande Lisboa, que é muito mais pequeno em área, mas que tem muito mais utentes, são realidades diferentes, com problemas e necessidades diferentes.

E é esta falta de adaptação e de ouvir quem está no terreno, ao mesmo tempo que se decidem coisas completamente distintas, que depois leva a que os mapas de vagas, por muitas vagas que tenham, não sejam atrativos e não tenham as vagas que na realidade era preciso.

Há a garantia do Governo de que os novos médicos de família vão começar a trabalhar no final de julho. Entretanto há quase 1,4 milhões de utentes sem médico de família, quase tantos como em 2014, embora seja preciso lembrar que na altura baixaram porque o Governo de então tirou das listas quem não ia ao médico há três anos, uma redução administrativa das pessoas sem médico. Sendo agora de novo para todos, parece-lhe realista pensar que vai ser possível atingir essa meta?

Acredito que sim, sabendo que não se resolve amanhã. Agora só é possível se for feito alguma coisa de diferente. Se cativarmos os médicos a ficar no SNS, vamos ter especialistas em medicina geral e familiar suficientes para suprir as necessidades. Estamos a formar 500 médicos de família por ano, grosso modo. Provavelmente para o ano até vamos ter 550 vagas de internato. Essa é outra coisa curiosa: quando se diz que os médicos não querem que se forme mais gente, há dez ou 15 anos formavam-se 200 médicos de família e hoje estamos a formar mais do dobro.

Vamos viver um pico de reformas em 2022, 23 e 24, é verdade, mas a partir de 2025 vamos ter um número de reformas residual. Há anos em que vamos ter poucas dezenas de colegas reformadas nesses anos – 30, 40, 50, 80 – isto quando fazemos os cálculos em função da idade e sabendo que poderão sempre sair mais alguns colegas por outros motivos. Formamos, em média, 500 novos médicos de família por ano por isso há folga mais do que suficiente. Só não resolveremos o problema se não tivermos a capacidade de os fixar no SNS. Mas para isso é preciso querer.

E não é só dizer que queremos, é preciso fazer alguma coisa para os valorizar, e certamente que não valorizamos os médicos e não os atraímos quando dizemos “então, vocês não querem, vamos pôr outro médico sem especialidade”.

Nos últimos anos via-se mais jovens médicos a optarem por medicina geral e familiar, por uma vocação até mais por uma medicina de proximidade. Esta indiferenciação pode cortar esse movimento? 

É uma das coisas que mais me preocupa. Hoje a esmagadora maioria dos médicos vai para Medicina Geral e Familiar porque quer. A realidade já não é aquela que era há 30 anos, em que se ia para MGF porque não havia mais nada. Claro que também havia colegas que escolhiam a especialidade por vocação, mas era uma realidade diferente. Hoje temos colegas que têm notas altíssimas na prova de seriação para a escolha da especialidade e que escolhem medicina geral e familiar.

Podiam ser oftalmologistas ou cirurgiões, ganhar mais…

Sim, dermatologistas, cirurgiões cardiotorácico e escolheram medicina geral e familiar. E voltando à questão das vagas, muitos escolhem fazer a especialidade longe dos grandes centros urbanos, em Castelo Branco, em Évora, em Portalegre, em Faro. Não escolhem só Lisboa, Porto e Coimbra. E depois nós não somos capazes, no final dos quatro anos de especialidade, de lhes dar as condições de os reconhecer e de garantir que conseguem fixar-se no SNS nesses locais para onde mudaram as suas vidas, que é uma coisa absolutamente extraordinária.

Só nos preocupamos com os números e não valorizamos quem escolheu ser médico de família no SNS. E digo mais: com estas alterações, nomeadamente a dos médicos indiferenciados, qual é o estímulo que os internos que estão já no internato têm para continuar? É porque se desistirem e forem para uma destas vagas através do Orçamento de Estado vão ganhar mais.

Como assim?

Se entrarem ao abrigo desta nova lei do OE, recebem um salário correspondente ao dos internos mais um suplemento remuneratório de 30%. Portanto recebem mais sendo médicos não especialistas do que sendo internos, sem terem de se sujeitar a provas de avaliação e a todo o processo formativo, aos cursos, aos concursos.

Se para um interno desistir numa altura em que já investiu o seu tempo e dedicação no internato mudar para este regime pode ainda assim não fazer muito sentido, o que pensarão médicos que estão agora a escolher o internato? Se forem para os quatro anos de internato, o que o sistema lhes diz é que no final nem sabem onde terão vaga e uns vão ganhar uma coisa e outros outra. Se optarem por não entrar no internato, têm agora esta alternativa, com muito mais autonomia e flexibilidade e já a ganhar mais.

É uma implosão da medicina familiar?

É, depois de uma aposta durante 40 anos numa formação que é exigente e difícil. Pode haver quem diga que isto é tudo muito fácil. Convido-os a fazer o internato de medicina geral e familiar.

Além das questões de carreira, uma consequência desta indiferenciação não poderá ser uma medicina ainda mais defensiva e, consequentemente, mais onerosa para o Estado, com mais exames ou referenciações evitáveis por coisas que podiam ser resolvidas nos cuidados primários? 

Obviamente, e sabemos que muitas vezes essa ideia de que o médico bom é o que passa muitos exames e muitas análises é a que, erradamente, as pessoas têm. A formação serve para alguma coisa, dá treino e experiência. Se não tínhamos lá um robô: o doente chega a dizer que tem a dor x nas costas, quer este exame e o robô passa. A medicina, com imensa ciência pelo meio, com imensa atualização contínua, continua a ter uma componente de arte, se quiser, que tem a ver com treino, com dedicação e com trabalho.

Isso não se consegue de um dia para o outro, mesmo para os especialistas. Saltar esta etapa de base é comprometer tudo aquilo que será a nossa prestação de cuidados no futuro. E atenção que quando nós falamos disso, o nosso problema não são os colegas não especialistas.

São médicos com autonomia reconhecida pela Ordem dos Médicos. Agora não têm a preparação para exercer as tarefas de um especialista de medicina geral e familiar. Tal como eu, enquanto médico de família, não estou preparado para ser pediatra de um qualquer hospital ou cirurgião geral ou obstetra. “Ah, mas eu vejo crianças”. Ver crianças é diferente de ter formação como pediatra. “Vi duas ou três cirurgias”. Sim, mas isso não me habilita a ir tirar vesículas para o hospital amanhã.

Quando olhamos para especialidades que não têm uma componente cirúrgica como a nossa, que não tem um componente imediatista, admito que o impacto pode ser mais difícil de observar, mas é um erro e um retrocesso.

Acha que esta decisão transporta um preconceito em relação à medicina familiar? Médicos indiferenciados a substituir cirurgiões não seria aceite da mesma forma.

Também é por aí. O que nos preocupa é que este estigma vem de quem deveria combatê-lo e de quem deveria apostar na medicina geral e familiar como a base do sistema de cuidados de proximidade. Andamos há décadas a ouvir dizer isto:

“Os médicos de família são muito importantes, são basilares”. É tudo muito bom, mas depois não há investimento, não há valorização, não há reconhecimento. E quando temos uma tutela que é quem deve zelar pela prestação de cuidados de qualidade que diz “bem, são a base do sistema, mas se não estiverem lá vocês o que interessa é que esteja um médico qualquer” está tudo dito.

Basta dizer que o secretário de Estado da Saúde, nosso colega, chegou a dizer que um médico é um médico. Isso significa que, para ele, a medicina geral e familiar tem um peso igual ao de não ter especialidade. Já tínhamos sinais que levavam a pensar isto.

O que aconteceu durante a pandemia foi indicativo: quando se tiram os médicos de família da sua atividade normal para dar apoio a tudo e mais um par de botas – deixando de ver os seus utentes para fazer dezenas ou centenas de chamadas por dia; assumir a vacinação conjuntamente com os seus enfermeiros, sem o apoio de quase mais ninguém; dar apoio aos surtos todos nos lares, porque nunca se pensou em resolver os problemas dos lares; a atender dezenas e centenas de doentes nos ADR (áreas dedicadas a doentes respiratórios) – o que se disse basicamente foi “o vosso trabalho pode ser suspenso durante um ano, dois, três, seja o que for, que não vai ter consequências”.

E voltando ao tal preconceito. Temos uma crise grave nas urgências obstétricas. Nunca ninguém se lembrou de pôr um colega de outra especialidade a fazer partos. Passa na cabeça de alguém? Não passa. 

A indiferenciação pode esvaziar os serviços dos centros de saúde? Há centros de saúde onde os médicos que substituem médicos de família em consultas programadas não fazem citologias, o rastreio do cancro do colo do útero. É preciso ir fazer ao privado.

É o risco de ter não especialistas a assegurar cuidados que têm especificidades. Que me dissessem que vamos pôr não especialistas a ver doença aguda, a renovar receituário de doença crónica, atestados, era uma coisa. Outra coisa é pôr colegas a assegurar a vigilância de saúde não tendo essa formação. Se não fosse precisa, não existia.

Veja-se a polémica com o então ministro Manuel Heitor, quando disse que os médicos de família não precisam da mesma formação, e a reação que houve lá fora. Lá fora os médicos de família portugueses são reconhecidos e bem vindos, não metem médicos sem especialidade a fazer esse trabalho. E volto ao mesmo: se não houvesse médicos de família era uma coisa, mas há.

O novo estatuto do SNS renova a ideia de um pacto de permanência, que chegou a ser discutido como um regime em que os médicos, para não ficarem a trabalhar no SNS nos primeiros anos após concluir a especialidade, teriam de alguma forma de compensar o Estado pelo investimento. Faz-lhe sentido?

Nenhum. Os colegas recém-especialistas ao longo do internato estiveram a trabalhar com um horário mínimo de 40 horas e que todos sabemos que são muito mais. As urgências e consultas hospitalares vivem muito à custa dos internos. É tremendamente injusto dizer que estes colegas devem alguma coisa ao Estado. Devem tanto como deve um gestor, um engenheiro, um professor, um jornalista, um enfermeiro.

Não é a obrigar as pessoas a permanecer à força que vamos resolver os problemas, vamos adiá-los para o fim dessa obrigatoriedade. Resolvemos o problema durante cinco anos e empurra-se para daqui a um ministro ou dois.

Tem-se falado muito das marcas da pandemia. Sendo os cuidados primários um barómetro do estado de saúde da população, o que o preocupa mais neste momento?

O que nos preocupa é que estamos ainda a recuperar a nossa atividade assistencial, ainda não o conseguimos fazer totalmente. Há doentes que estiveram muito tempo sem ir ao médico, que estiveram muito tempo sem controlar as suas patologias crónicas, que estiveram muito tempo às vezes até sem renovar receituário. E depois temos outros grupos que não são propriamente doentes, mas em que a vigilância simplesmente se perdeu. Se não vi uma criança no primeiro ano de vida em 2021, não é agora que o vou fazer, já não está no primeiro ano de vida. Se não consegui ver aquela grávida naquele período, não é agora que o vou fazer.

Os rastreios oncológicos, as atividades preventivas, tudo teve impacto que em parte não é recuperável. Dir-me-ão que mesmo na pandemia eram atividades prioritárias e houve ordens para as manter: foram mantidas dentro do possível, mas sem ovos não se fazem omeletes. Se os médicos não estavam lá, tudo isso ficou para trás.

E temos que ser claros e afirmativos: ficou para trás porque nos desviaram para outros locais e desviaram-nos durante quase dois anos, nalgumas tarefas até mais de dois anos. Não se procurou uma solução alternativa. Curiosamente, na altura, ninguém pensou em médicos não especialistas para fazer essas tarefas. Ninguém pensou em colocar médicos não especialistas nos centros de vacinação. Ninguém pensou em colocar médicos não especialistas a fazer Trace Covid.

Tem uma explicação?

Não sei, é perguntar à senhora ministra porque é que não foi pensado isso nessa altura quando persistentemente se alertava para a falta que os médicos de família estavam a fazer nas suas unidades. Lá está, a ideia de que o nosso trabalho não é assim tão importante. Se não for feito, alguém fará e também se ninguém o fizer, na realidade não vem mal. E agora vemos os colegas hospitalares a dizerem que temos situações, por exemplo oncológicas, a chegarem mais tardiamente ao hospital.

Temos mais necessidade de referenciar doentes crónicos que descompensaram e agora são mais difíceis de controlar e temos um afastamento dos doentes quando uma das vantagens da medicina familiar é uma relação de confiança, que contribui para a prevenção. Há uma hesitação no acesso. E portanto com estes problemas todos, temos medidas que vão exatamente no sentido oposto.

É no mínimo estranho e triste. Enfim, se há pouco me perguntava sobre o que sentem os médicos, deixa-nos revoltados por nem sequer ouvirem aquilo que temos para dizer. Nunca ninguém sugeriu que a solução seria ir buscar não especialistas. Alguém achou agora que seria boa ideia. Está claramente equivocado.

Falou do afastamento. Sente que as pessoas se deslocaram para o privado ou será mais comum, nessa hesitação, não irem a lado nenhum?

Vai depender um bocadinho das regiões e da capacidade económica dos utentes que temos nas nossas listas. Na esmagadora maioria dos sítios não há uma oferta privada assim tão significativa e a maioria da população também não consegue aceder à mesma. 

Portanto, a discussão público vs privado é das grandes cidades.

Sim, das áreas metropolitanas, que têm uma oferta privada maior. Mesmo onde eu trabalho, em Évora, mesmo que as pessoas tenham seguro de saúde, a oferta privada não tem o impacto que tem em Lisboa e no Porto e, portanto, o acesso é sempre mais difícil. O que vemos muito são pessoas que simplesmente ficaram afastadas dos cuidados de saúde e ainda hoje vêm ter connosco a dizer que já não nos viam desde o início da pandemia. Ou porque não são dos grupos de maior vigilância, não são crianças, não são grávidas, não são diabéticos ou hipertensos. Até podem não ter assim grandes patologias crónicas, mas o certo é que foram ficando mais perdidos no meio do sistema e também não sabiam muito bem como é que podiam recorrer.

Tem visto casos que o têm impressionado?

Acho que nos tem acontecido a todos. Também não podemos dizer que é algo generalizado, porque nunca estivemos completamente de portas fechadas e houve sempre uma preocupação de manter algum contacto, mas há sempre situações que escapam, pelas mais variadas razões. Mas sim, aparecem situações que nos surpreendem, que antes também já apareciam às vezes, atrasos no diagnóstico, medicação trocada, descontrolo de doenças crónicas em níveis que antes não víamos.

Não há ainda um estudo feito que consiga mensurar isto – e era importante ser feito, porque é tudo muito empírico – mas aparecer-me alguém hoje a dizer que já não me conseguia ver desde o início da pandemia significa que alguma coisa de errado aqui se passou. Não é suposto alguém que até tenha alguma medicação, que até tenha alguma doença crónica, estar três anos ou dois anos e meio sem ter consulta. Portanto, algo falhou aqui. Sabemos que os médicos de família estiveram ocupados com outras tarefas, mas a verdade é que nunca tivemos ninguém que viesse a público dizer “não, mas o seu médico de família já está lá, confie, vá lá”.

Uma campanha por exemplo?

Sim. Fomos capazes de dizer, e bem, fique em casa, lave as mãos. E depois fomos incapazes de dizer o contrário:

“Procure os seus cuidados, eles estão lá, eles trabalham bem”. Isso nunca temos. Dizemos sempre tudo ao contrário, mostra-se sempre o lado negativo e agora ainda estamos a dizer às pessoas que vão lá ter médicos indiferenciados à espera delas.

É de Évora?

Não, sou de Lisboa. Vim para cá fazer o internato e estou cá desde 2008.

Ficou numa vaga carenciada?

Não, curiosamente a minha vaga era carenciada e recusei o protocolo. Por questões familiares e profissionais, as coisas acabaram por se proporcionar para ficar cá, mas vim para Évora sem qualquer ligação à cidade e gostei dos colegas, da cidade e do trabalho. E é engraçado, porque fomos muitos a vir para interior e a falta de médicos hoje é muito maior em Lisboa e Vale do Tejo e no Algarve. Quando se diz que os médicos não querem o interior não é bem assim.

Mas na altura em que escolheu havia oportunidades em Lisboa?

Sim. Escolhi Évora por achar que teria mais qualidade de vida a nível pessoal do que em Lisboa.

E foi assim? 

Continuo a achar que sim. Do ponto de vista familiar, demoro cinco minutos a levar os meus filhos à escola e cinco minutos a chegar à minha USF, se for a pé demoro 15 minutos. Tenho muito calor, mas não tenho trânsito. É uma realidade completamente diferente. Mas isto é uma opção de cada um. Pode haver colegas que achem que Lisboa é muito mais atrativa.

O problema é que na situação atual, Lisboa torna-se muito pouco atrativa, porque são muitos utentes sem médico, unidades sem profissionais suficientes, desestruturadas por isso mesmo, que não têm capacidade de resposta para todas as situações, o que leva a equipas em stresse e burnout constante, agravada pelas condições de vida. Uma pessoa, mesmo que queira estar em Lisboa, não quer trabalhar assim. Portanto a única solução é mudar e melhorar as condições.

E, a montante, temos que abrir vagas de forma diferente, flexibilizar o modo como estes colegas podem ir para uma unidade destas. Deviam ser oito médicos, faltam seis, estão dois e só abrem duas vagas. Assim não vai lá. Os que vão até desistem.

As vagas deviam poder ser ocupadas durante todo o ano e não só nos concursos anuais?

Sim, penso que o caminho é esse, porque é as vagas não estão permanentemente abertas? Se a legislação não permite, mude-se a legislação.

O que descobriu sobre o SNS quando saiu da capital?

Fiz o curso em Santa Maria e o internato do ano comum também em Santa Maria. Vir para Évora trouxe-me a realidade de perceber o que são grandes distâncias geográficas. Tenho a meu cargo uma grande extensão rural que me dizem que é já ali, mas são 17 ou 18 km.

Área em que em Lisboa temos cinco ou seis hospitais.

Sim, nós temos um hospital e para ir ao Hospital de Beja é uma hora.

É fácil os seus utentes terem consultas no hospital ou sente demasiadas barreiras?

Se existirem em Évora, os doentes vão para Évora. Depende um pouco de especialidade para especialidade, como noutros pontos de país. O problema é quando têm de ir para Lisboa ou Setúbal, que implica deslocações, que são complicadas quando falamos de pessoas de idade. Os bombeiros também não têm recursos suficientes, não conseguem transportar toda a gente.

São aquelas voltas pelas capelinhas todas em que se sai de manhã e volta à noite.

Sim. E depois temos especialidades no nosso hospital que também por haver poucos médicos, por dificuldades de fixação semelhantes às dos médicos de família, estão muito carenciadas e não conseguem dar resposta em tempo adequada.

Há muitas situações em que os doentes têm de vir para Lisboa ou outro sítio quando deviam ter essa resposta lá? Ou seja, não falo de um transplante cardíaco, mas algo que seja uma necessidade frequente e está longe.

Sim, claramente. Tenho de mandar doentes para reumatologia em Lisboa, não há reumatologistas em Évora, quando é algo muito frequente. Para cirurgia vascular temos agora um colega, tivemos outro por um período curto, depois deixámos de ter e agora vamos ver por quanto tempo. Em gastroentereologia há um grande défice por várias razões. Urologia idem idem aspas aspas. E Évora é um hospital central. Portanto são as dificuldades que se sentem em todo o SNS e que se repercutem de forma desigual nos utentes.

Não estou a dizer que a culpa é do hospital, o problema é sempre a incapacidade que temos de captar e reter médicos para o SNS. Por isso acho que seria importante a tutela chegar aos colegas que agora não vão escolher ficar no SNS e perguntar-lhes diretamente porquê. Em vez de insistir nas mesmas soluções à espera de resultados diferentes ou em novas soluções erradas, se calhar iam surpreender-se com as respostas.

Falava há pouco do burnout. Tem muitos relatos?

É impossível quantificar mas chegam-nos relatos de pessoas desiludidas, de pessoas que estão cansadas. Temos colegas de baixa prolongada. E se formos falar com estes colegas que não escolhem a especialidade, é curioso e triste mas acredito que uma das razões que vão invocar é essa: estão exaustos e não conseguem continuar a trabalhar desta forma. Alguns nem para o privado vão. Deixam de ser médicos. Se fomos perguntar, muitos se calhar vão responder: porque estamos exaustos e vamos fazer uma pausa para fazer uma coisa completamente diferente.

Exaustos nos primeiros anos de carreira.

Sim e isso ainda é mais preocupante.

O Governo já reconheceu défices de organização e este verão tem estado muito focado nas urgências obstétricas, algo bastante específico. Parece-lhe que há uma avaliação adequada das dificuldades no SNS?

Se existe essa avaliação, não passa para fora. Mesmo pegando nesta crise de obstetrícia que foi tão falada, repare-se que a determinada altura o que era dito é que era um problema sazonal ou do fim de semana porque havia dois feriados e depois estava resolvido. Não está nada resolvido. Temos uma app que nos responde se as urgências estão abertas e quais são os horários… Alturas de férias colocam maiores dificuldade?

Pois claro que colocam, as pessoas têm direito a férias, mas a certa altura parecia que a ideia era que os profissionais tinham ido todos de férias ao mesmo tempo. Isso não é verdade. Se devíamos ter uma equipa de oito, só há quatro e dois tiram férias, deviam ser oito e só estão dois a trabalhar. O problema não são as férias. Falamos da obstetrícia mas a pediatria vive situações semelhantes em muitos locais.

No Hospital de Faro, por exemplo.

Em Évora, no Garcia de Orta, em tantos sítios. A Medicina Interna está com dificuldades imensas a fazer escalas, com os profissionais a fazer centenas de horas extra. A cirurgia geral, a ortopedia… Isto não são situações pontuais e fechar os olhos, esconder a cabeça na areia, dizer que está resolvido não vai funcionar. É a mesma coisa que se passa connosco: abrem-se mais vagas e eles hão de escolher. Isto não se vai resolver por si só. E em vez de estarmos a tentar planear para a frente e resolver as crises que nos vão surgir, antecipando, vamos tentando gerir crise a crise e mal. E nisso esta questão dos médicos indiferenciados é paradigmática: não temos capacidade de os fixar, seguimos em frente e a solução é ir buscar outros.

Está à espera de muita gente na rua no sábado?

Estou à espera dos colegas que acharem que faz sentido juntarem-se à nossa indignação e ao nosso protesto e que entendam que com isso podemos tentar mudar alguma coisa e mostrar à tutela que o caminho é outro. Existem outras soluções e estas não são certamente aquelas que melhor servem sobretudo os nossos utentes e a todos nós enquanto utentes. Nunca exigimos à senhora ministra ou qualquer outro ministro que os problemas se resolvessem de hoje para amanhã. Não é isso que queremos, mas temos de dar esse sinal. Espero que também com colegas de outras especialidades, com utentes, com representantes de outras instituições, possamos mostrar o nosso descontentamento e que há uma linha vermelha que não pode ser ultrapassada e que não aceitamos este retrocesso. E também por nós, mas volto a insistir, pelos cuidados com que prestamos.

Geralmente são os sindicatos a convocar concentrações na saúde. 

Gostava que o Ministério encarasse isto não apenas como um aspeto corporativo, que é aquilo de que muitas vezes nos acusa e acusa a ordem e os sindicatos, mas como uma questão técnica ou científica. Ser uma associação a tomar esta iniciativa tem este cunho que de outra maneira não poderia ter, porque esta não é uma função sindical. Como não é nossa função convocar greves.

E fala-se disso de novo.

Uma greve médica tem sempre um impacto complicado nos utentes, mas o que é facto é que essa arma existe e certamente os sindicatos saberão utilizá-la quando entenderem. Acho que a figura da greve não pode ser banalizada, mas o que se nota hoje entre colegas não só os médicos de família, mas todas as especialidades, é que há um enorme descontentamento e um sentimento de não valorização e de não respeito pelo que é o trabalho médico, que é a pior coisa que se pode fazer. E sabemos que há situações também complicadas noutros grupos profissionais, por isso que se olhe para todos.

Entrarem médicos a ganhar o dobro será incómodo para os outros médicos e ainda mais para enfermeiros que ganham muito menos ao longo de décadas de trabalho.

Obviamente. As outras profissões da saúde falarão por si, mas o problema na saúde não é só médico. Em muitas unidades faltam enfermeiros e assistentes administrativos. Acho que o pior que pode acontecer é envolvermo-nos em guerras entre grupos, não resolve nada.

Este nosso protesto não é contra ninguém, é contra uma desvalorização da profissão que pode ter o efeito exatamente contrário ao que se pretende daqui a uns tempos, que é termos ainda menos médicos de família e uma menor formação. E aí voltamos aos anos 60. Ninguém quer isso certamente.

E estou em crer que esse protesto servirá para que a tutela perceba que é preciso tomar outro caminho e que estamos cá para ajudar a construir as melhores soluções que sirvam o interesse dos profissionais mas também dos utentes.