Morreu Peter Lamborn Wilson, o último pirata

Morreu Peter Lamborn Wilson, o último pirata


Foi uma das figuras decisivas da contracultura das últimas décadas, e assinou, como Hakim Bey, um texto crucial para definir uma estratégia de resistência ao totalitarismo mediático. 


“Existem algumas pessoas que não precisam de quinze segundos no Jornal da Noite para validarem a sua existência.” Uma delas foi certamente o autor desta frase, Peter Lamborn Wilson, ou Hakim Bey, como era mais conhecido. A notícia da sua morte no passado dia 22 de Maio, aos 77 anos, praticamente não teve eco nos órgãos mediáticos, o que certamente não lhe causaria o menor constrangimento, nem terá espantado os seus tantos leitores e admiradores. Celebrado enquanto profeta urbano que soube entender a importância decisiva do encontro face a face como uma “acção contra as forças que nos oprimem por meio do isolamento, da solidão, pelo transe dos media”, Wilson foi um poeta anarquista, historiador e explorador psicadélicos, um arguto crítico e desmistificador das mentiras culturais do nosso tempo, e também um estudioso e místico sufi.

Nascido em 1945, em Maryland, no estado de Baltimore, nos EUA, Peter Lamborn Wilson morreu de ataque cardíaco no seu apartamento em Saugerties, uma pequena povoação com cerca de 20 mil habitantes no estado de Nova Iorque. De acordo com alguns amigos, sofria de uma série de problemas de saúde há vários anos. Tendo passado longos períodos da sua vida na Índia, no Paquistão e no Irão, país onde teve a oportunidade de aprofundar o pensamento sufi, viveu uma existência nómada, escrevendo uma série de ensaios com o firme intuito de instigar práticas culturais alternativas. E os seus escritos, não apenas inspiraram muitos, com contribuíram para a criação de novas comunas e formas alternativas de habitação que envolveram uma forma de militância criativa em vários pontos do mundo desde o início dos anos 1990 até às recentes manifestações desencadeadas pelo chocante assassinato de George Floyd num acto de espectacular brutalidade policial. Em “Zona Autónoma Temporária”, um breve e crucial manifesto em que, de forma lúcida e arrasadora, assinala os efeitos de alienação a que estamos sujeitos neste era submetida ao feitiço mediático, livro que assina com o pseudónimo Hakim Bey, assinala todos os aspectos da vivência no regime tecnológico que, tendo prometido aproximar-nos, se interpuseram de tal modo que, às tantas, nos enredam num labirinto de mediações frustrantes em que o desejo de enlace, de chegar ao outro, se torna um objectivo cada vez mais elusivo. “Percebemos por fim que não conseguimos ‘estender o braço e tocar alguém’ que não esteja presente na carne”, assinala Bey, na tradução portuguesa de Jorge P. Pires, que saiu em 2000, com o selo da Frenesi. “Nós, que vivemos no presente, estaremos condenados a nunca experimentar a autonomia, a nunca ficar por um momento num pedaço de terra governado apenas pela liberdade?”, interroga-se Wilson, naquele texto originalmente publicado em 1991. No seu entender, “aquilo que mais faltava ao século XX, e aquilo de que este mais precisava, era de tacto, ou seja, de um contacto directo, sinalizando como todos esses meios tecnológicos ao nosso dispor, não só nos dispersam, como funcionam como uma terrível inclinação para o consumo, e que surgem constantemente como soluções para preencher os nossos tantos vazios sejam eles mentais, morais, emocionais, sentimentais, sexuais, etc. Wilson viu como o mundo estava a canalizar toda a sua sensualidade reprimida para a publicidade, ao mesmo tempo que se dividia em multidões adversas, que se desafiam e engalfinham num perpétuo jogo virtual de oposições insanáveis, uma vez que correspondem a uma forma de disforia moderna, pela incapacidade de deter uma imagem do mundo que corresponde a experiências concretas e partilháveis. “Na verdade ninguém experimenta nada – todos foram reduzidos ao estatuto de fantasmas – imagens mediáticas que se despedem e vogam, libertas de todo o contacto com a vida quotidiana efectiva – sexo pelo telefone – ciber-sexo. Transcendência última do corpo: ciber-gnose.” Neste contexto de guerra civil em que tudo deriva de uma crise forçada pelo excesso de informação, de tal modo que as próprias consciências declinam em aberrantes programas informáticos que estão permanentemente a crashar, este influente autor da contra-cultura notou que “a maior parte das gentes modernas parece ser incapaz de crer na realidade de algo que nunca viu na televisão – por conseguinte, escapar ao televisionamento é já quase ser invisível”. E foi precisamente nessa margem e segundo princípios de organização secreta que Wilson procurou definir as condições para uma autonomia no tempo, e não no espaço, cunhando o termo “Zona Autónoma Temporária” para se referir a comunidades que despontariam numa espécie de curto-circuito face ao regime mediático num desejo de restabelecer os laços de convívio, deixando para trás a ideia do progresso e da produção que nos tornou meros assistentes da realização do capitalismo e das suas redes de informação. Wilson entendia que estas brechas no esquema totalitário dos media poderiam aceder a experiências que, por não serem vistas, exibidas, publicitadas, pudessem reter a sua realidade, defender a sua “raiz na vida quotidiana e, portanto, na possibilidade de maravilhamento”. Em certo sentido, ele parecia ter renunciado ao desejo de uma revolução que pudesse mudar o curso da História, o destino da humanidade, antes admitindo que é só restava criar condições de resistência, estabelecer células de insubordinação, “núcleos de aliados mutuamente escolhidos, trabalhando (brincando) para ocupar cada vez mais tempo e espaço fora de todos os controlos e estruturas mediadas”. Assim, e por oposição ao mediatismo, ele preconizou um movimento do “Imediatismo”, que é algo como uma tentativa de escavar em segredo, por todos os meios ao nosso alcance, um túnel para nos evadirmos, ainda que seja só por um breve momento, essa realização da fuga da prisão, essa possibilidade de fugir à vigilância e gozar de um momento de plenitude transgressiva.

Esta urgência de escapar aos controlos políticos e sociais é fácil de ser caricaturada como uma relação paranoica com o mundo ao nosso redor, mas a análise dos sistemas de repressão hoje em efeito permitiu a Wilson colocar-se com um elo na cadeia de pensamento que conduz de Nietzsche a Benjamin, a Bataille, a Barthes, a Foucault e a Baudrillard. Em “Rua de Sentido Único”, Benjamin já assinalava esse estranho paradoxo que levava as pessoas, quando agem, a só pensarem no interesse pessoal mais mesquinho, sendo que, ao mesmo tempo, hoje, o seu comportamento é mais do que nunca determinado pelos instintos das massas, ao passo que os instintos das massas se tornaram, mais do que nunca, desorientados e alheios à vida. No entender deste ensaísta alemão, enquanto o instinto obscuro do animal – como narram inúmeras anedotas – encontra saída para o perigo iminente que parece ainda invisível, esta sociedade, cada membro da qual tem exclusivamente em vista o seu próprio mesquinho bem-estar, sucumbe com uma insensibilidade bestial, mas sem o saber insensível do animal, como uma massa cega, a todos os perigos, mesmo os mais evidentes, e a diferença entre os objectivos individuais torna-se irrelevante perante a identidade das forças determinantes.” Num outro momento, no mesmo ensaio, Benjamin notava que “o desabrochar de todo o movimento humano, nasça ele de impulsos espirituais ou mesmo naturais, pode contar com a resistência desmesurada do meio circundante”. E prosseguia, dando um exemplo claro: “A crise da habitação e a regulação do trânsito estão em acção para destruir por completo o símbolo elementar da liberdade europeia, que, em certas formas, caracterizava mesmo a Idade Média, a livre circulação. E se a coerção medieval atava as pessoas a grupos naturais, elas estão agora acorrentadas a uma comunidade antinatural.”

Wilson desenvolve esta compreensão de um regime armadilhado com vista a sufocar as liberdades individuais e colectivas: “Quais são os prazeres não mediados que NÃO são ilegais? Hoje em dia até os churrascos ao ar livre violam as normas sobre fumos poluentes. Os prazeres mais simples colocam-nos em conflito com alguma lei; e quando o prazer acaba por comportar demasiado stress, só resta a tv – e o prazer da vingança, da traição por delegação, a emoção doentia do mexerico.” De resto, mesmo se o seu juízo o levava a formular uma crítica bastante profunda e até radical da sociedade moderna, mesmo quando procura inspirar um “terrorismo poético”, não parece encontrar na violência qualquer propósito revolucionário, mantendo-se fiel antes a uma recusa drástica da intervenção do Capital e das suas formas de mediação, propondo antes que intervenções que causem um efeito de espanto e inquietação longe dos palcos e espaços destinados à programação artística e cultural, absorvidos por essas estruturas convencionais que, em certo sentido, neutralizam o efeito disruptivo da verdadeira arte. “A reacção do público ou o choque estético produzido pelo Terrorismo Poético deveria no mínimo ser tão forte quanto a emoção do terror – uma poderosa aversão, uma excitação sexual, um temor supersticioso, uma súbita descoberta intuitiva, uma angústia dadaesca”… Eis alguns exemplos que Wilson considera puderem conduzir a essa renovação do nosso gozo perceptivo e do desejo de mudar, senão o mundo, as nossas vidas: “Danças estranhas em caixas de multibanco abertas toda a noite. Fogos-de-artíficio não autorizados. Arte da terra, coisas terrenas juncando parques públicos como se fossem bizarros artefactos extraterrestres. Assaltai casas mas, em vez de roubar, deixai nelas objectos de Terrorismo Poético (…) Escolhei alguém ao acaso para convencer que acaba de herdar uma fortune enorme, inútil e espantosa- digamos 5000 quilómetros quadrados da Antárctida, ou um velho elefante de circo, ou um orfanato em Bombaim, ou uma colecção de manuscritos alquímicos. Compreenderá mais tarde que, durante alguns momentos, acreditou em algo de extraordinário, e, em resultado disso, acabará talvez por procurar um modo mais intenso de existência.”