Os semáforos de saudade da Gertrude


O inteligente do semáforo da EMEL não antecipa congestionamentos: está por agora a promovê-los, em boa parte da cidade, sem que os cidadãos tivessem sido avisados das mudanças.


A Gertrude estava estafada. O arcaboiço já não conseguia responder à complexidade dos nossos dias, muito distantes das existências da década de 80 e das intensidades dos peões, das bicicletas, dos motociclos e dos automóveis de então. Quando chegou de França, a Gertrude já não era nova, já tinha uma década de gestão de semáforos noutras latitudes. O arrastar de indiferença e de atualização durante anos, terá condenado Gertrude a ser parte do problema, quando emergiram nas consciências novas sensibilidades e inimigos para justificar o patamar de mobilidade atingido. Gertrude estava condenada à reforma por invalidez, substituída por uma inteligência qualquer, tocada a algoritmos e sintonizada com as vontades políticas dos programadores. E zás, a Gertrude, o sistema de gestão dos semáforos da cidade de Lisboa há décadas, foi trocada pelo SIM.Lx, por impulso da EMEL, a empresa municipal que do estacionamento passou a tratar também da mobilidade.

Não se sabe se a atual gestão herdou ou impulsionou de forma acéfala esta iniciativa de alegada melhoria dos fluxos, dita inteligente, orientada para a antecipação dos congestionamentos, a prioridade aos veículos de emergência e a circulação dos transportes públicos. Em mais de 15 cruzamentos que um quotidiano laboral sem horas fixas obriga, entre casa e o trabalho, entre Benfica e a Avenida da Liberdade, só um está melhor. O resto é um desastre, porque o trânsito flui muito menos, devido à abertura tardia dos semáforos seguintes. Aliás, perante as sucessivas paredes semafóricas que se vão instalando nos percursos, sem benefícios para outros tipos de mobilidade, suspeitou-se que o ou a responsável pela gestão do trânsito fosse alguém dos criativos municipais do Livre, que querem erradicar as dinâmicas da cidade, impondo à bruta mais reduções e proibições, sem assegurar melhorias nas alternativas. Não, a culpa não é do Livre, de uma inoperância qualquer ou de uma proatividade desfasada da realidade. A responsabilidade é da inteligência artificial e das opções da EMEL. Com tanta consideração pelos cidadãos, só poderia ser mesmo culpa da EMEL, alfobre de falta de senso e arrogância nas interações sociais.

Bem sei que o tema soará para o país, alheio a esta realidade, ao sentimento de regozijo com as notícias de congestionamentos de trânsito do IC19 ou da A5 quando ouvidas nas rádios a partir de uma qualquer estrada do Interior do país, sem obstáculos e com toda a longitude ao alcance da viagem. O que é certo é que a eventual geração de expectativas positivas de mudanças na gestão do território de Lisboa justifica a evidência de todas as falhas. O trânsito está um caos, para o qual contribuem as retomas das dinâmicas turísticas, os semáforos inteligentes da EMEL (conjugação improvável) e as insistentes suspensões da oferta de transporte público por plenários, paralisações e greves que, estranhamente, escapam ao virtuosismo anunciado da municipalização dos transportes. Enquanto houve solução de governo da República partilhada à esquerda, a coisa fluiu, agora é um vergastar de reivindicações, exigências e outras modelações dos serviços públicos municipalizados de transportes a que querem aceder os cidadãos, muitos portadores de passes mensais ou de expectativas de acesso gratuito dos transportes, em alternativa ao recurso aos veículos próprios.

É indiscutível que maior proximidade às realidades pode potenciar o esforço de mobilização de vontades e recursos para a construção de solução, num quadro em que todos sabemos existirem passivos acumulados, novas realidades emergentes e desafios de sustentabilidade para o futuro. Não sendo possível resolver tudo, expectativa também subjacente à municipalizações de grandes operadores de oferta de transporte, o mínimo é haver uma convergência de compromisso que não lese os destinatários centrais do esforço de mobilidade disponibilizado pelo Estado: os cidadãos e as suas necessidades de mobilidade. Mas, não. Paulatinamente, reinstalou-se o quadro de referência pré-municipalização, por interesses que só podem ter a ver com o incumprimento com expectativas de gestão, a emergência de ponderosos interesses sindicais ou os humores partidários em perda de reconhecimento eleitoral.

É claro que tem sido feito um esforço de aproximação à realidade das necessidades concretas e da ambição de construção de alternativas de mobilidade, com as carreiras de bairro e a integração da oferta de transporte metropolitano rodoviário, mas se persistir a suspensão sustentada da previsibilidade de acesso às mobilidades disponíveis, boa parte do trabalho será torpedeado por impulsos alheios ao interesse geral.

Voltando ao sucedâneo de inteligência artificial da Gertrude, dizem que pode ser retificado de três em três meses, o que já não seria mau. Basta estar no terreno, viver as dinâmicas, em vez viver em círculos utópicos sem nexo com a vida concreta. O inteligente do semáforo da EMEL não antecipa congestionamentos, está por agora, a promovê-los, em boa parte da cidade, sem que os cidadãos tivessem sido avisados das mudanças e dos novos ritmos com que estão a ser confrontados. É possível mudar, mas a atestar pelo histórico de maleabilidade e ajustamento da EMEL, em rota de aproximação com os Santos Populares, só mesmo Santo António nos pode valer. Que saudades da Gertrude!

NOTAS FINAIS
O DESBOCADO PRESIDENCIAL. Não lembra a ninguém que um Presidente da República, por defeito, feitio ou senilidade, divulgue publicamente uma viagem de alto risco de segurança do primeiro-ministro à Ucrânia. Não se trata de nenhum mal-estar, é pura irresponsabilidade política.

NEM PARA VAR. A miséria da qualificação da arbitragem nacional, acomodada na indiferença nacional, está espelhada na ausência total de árbitros portugueses para o Mundial de 2022. Em campo como no vídeo-árbitro, não há espécime que passe o crivo da FIFA. Se existissem critérios uniformes e boa aplicação das regras, não haveria este deserto de reconhecimento internacional. Está assim mais perto de haver verdade desportiva no evento.

AQUECIMENTO GERAL. Não são só as temperaturas que estão em rota de ascensão, os contágios, os protestos e o turbilhão de condicionantes e de pressão para fazer, para concretizar o PRR e as outras oportunidades estão a criar um caldo de efervescência, apesar da estabilidade política conferida pela maioria absoluta.

Escreve à segunda-feira

Os semáforos de saudade da Gertrude


O inteligente do semáforo da EMEL não antecipa congestionamentos: está por agora a promovê-los, em boa parte da cidade, sem que os cidadãos tivessem sido avisados das mudanças.


A Gertrude estava estafada. O arcaboiço já não conseguia responder à complexidade dos nossos dias, muito distantes das existências da década de 80 e das intensidades dos peões, das bicicletas, dos motociclos e dos automóveis de então. Quando chegou de França, a Gertrude já não era nova, já tinha uma década de gestão de semáforos noutras latitudes. O arrastar de indiferença e de atualização durante anos, terá condenado Gertrude a ser parte do problema, quando emergiram nas consciências novas sensibilidades e inimigos para justificar o patamar de mobilidade atingido. Gertrude estava condenada à reforma por invalidez, substituída por uma inteligência qualquer, tocada a algoritmos e sintonizada com as vontades políticas dos programadores. E zás, a Gertrude, o sistema de gestão dos semáforos da cidade de Lisboa há décadas, foi trocada pelo SIM.Lx, por impulso da EMEL, a empresa municipal que do estacionamento passou a tratar também da mobilidade.

Não se sabe se a atual gestão herdou ou impulsionou de forma acéfala esta iniciativa de alegada melhoria dos fluxos, dita inteligente, orientada para a antecipação dos congestionamentos, a prioridade aos veículos de emergência e a circulação dos transportes públicos. Em mais de 15 cruzamentos que um quotidiano laboral sem horas fixas obriga, entre casa e o trabalho, entre Benfica e a Avenida da Liberdade, só um está melhor. O resto é um desastre, porque o trânsito flui muito menos, devido à abertura tardia dos semáforos seguintes. Aliás, perante as sucessivas paredes semafóricas que se vão instalando nos percursos, sem benefícios para outros tipos de mobilidade, suspeitou-se que o ou a responsável pela gestão do trânsito fosse alguém dos criativos municipais do Livre, que querem erradicar as dinâmicas da cidade, impondo à bruta mais reduções e proibições, sem assegurar melhorias nas alternativas. Não, a culpa não é do Livre, de uma inoperância qualquer ou de uma proatividade desfasada da realidade. A responsabilidade é da inteligência artificial e das opções da EMEL. Com tanta consideração pelos cidadãos, só poderia ser mesmo culpa da EMEL, alfobre de falta de senso e arrogância nas interações sociais.

Bem sei que o tema soará para o país, alheio a esta realidade, ao sentimento de regozijo com as notícias de congestionamentos de trânsito do IC19 ou da A5 quando ouvidas nas rádios a partir de uma qualquer estrada do Interior do país, sem obstáculos e com toda a longitude ao alcance da viagem. O que é certo é que a eventual geração de expectativas positivas de mudanças na gestão do território de Lisboa justifica a evidência de todas as falhas. O trânsito está um caos, para o qual contribuem as retomas das dinâmicas turísticas, os semáforos inteligentes da EMEL (conjugação improvável) e as insistentes suspensões da oferta de transporte público por plenários, paralisações e greves que, estranhamente, escapam ao virtuosismo anunciado da municipalização dos transportes. Enquanto houve solução de governo da República partilhada à esquerda, a coisa fluiu, agora é um vergastar de reivindicações, exigências e outras modelações dos serviços públicos municipalizados de transportes a que querem aceder os cidadãos, muitos portadores de passes mensais ou de expectativas de acesso gratuito dos transportes, em alternativa ao recurso aos veículos próprios.

É indiscutível que maior proximidade às realidades pode potenciar o esforço de mobilização de vontades e recursos para a construção de solução, num quadro em que todos sabemos existirem passivos acumulados, novas realidades emergentes e desafios de sustentabilidade para o futuro. Não sendo possível resolver tudo, expectativa também subjacente à municipalizações de grandes operadores de oferta de transporte, o mínimo é haver uma convergência de compromisso que não lese os destinatários centrais do esforço de mobilidade disponibilizado pelo Estado: os cidadãos e as suas necessidades de mobilidade. Mas, não. Paulatinamente, reinstalou-se o quadro de referência pré-municipalização, por interesses que só podem ter a ver com o incumprimento com expectativas de gestão, a emergência de ponderosos interesses sindicais ou os humores partidários em perda de reconhecimento eleitoral.

É claro que tem sido feito um esforço de aproximação à realidade das necessidades concretas e da ambição de construção de alternativas de mobilidade, com as carreiras de bairro e a integração da oferta de transporte metropolitano rodoviário, mas se persistir a suspensão sustentada da previsibilidade de acesso às mobilidades disponíveis, boa parte do trabalho será torpedeado por impulsos alheios ao interesse geral.

Voltando ao sucedâneo de inteligência artificial da Gertrude, dizem que pode ser retificado de três em três meses, o que já não seria mau. Basta estar no terreno, viver as dinâmicas, em vez viver em círculos utópicos sem nexo com a vida concreta. O inteligente do semáforo da EMEL não antecipa congestionamentos, está por agora, a promovê-los, em boa parte da cidade, sem que os cidadãos tivessem sido avisados das mudanças e dos novos ritmos com que estão a ser confrontados. É possível mudar, mas a atestar pelo histórico de maleabilidade e ajustamento da EMEL, em rota de aproximação com os Santos Populares, só mesmo Santo António nos pode valer. Que saudades da Gertrude!

NOTAS FINAIS
O DESBOCADO PRESIDENCIAL. Não lembra a ninguém que um Presidente da República, por defeito, feitio ou senilidade, divulgue publicamente uma viagem de alto risco de segurança do primeiro-ministro à Ucrânia. Não se trata de nenhum mal-estar, é pura irresponsabilidade política.

NEM PARA VAR. A miséria da qualificação da arbitragem nacional, acomodada na indiferença nacional, está espelhada na ausência total de árbitros portugueses para o Mundial de 2022. Em campo como no vídeo-árbitro, não há espécime que passe o crivo da FIFA. Se existissem critérios uniformes e boa aplicação das regras, não haveria este deserto de reconhecimento internacional. Está assim mais perto de haver verdade desportiva no evento.

AQUECIMENTO GERAL. Não são só as temperaturas que estão em rota de ascensão, os contágios, os protestos e o turbilhão de condicionantes e de pressão para fazer, para concretizar o PRR e as outras oportunidades estão a criar um caldo de efervescência, apesar da estabilidade política conferida pela maioria absoluta.

Escreve à segunda-feira