Ao longo das oitenta e quatro páginas de Irradiante, o Negro, o velho está aprisionado num quarto de hospital. A morte está quase, surge-nos incompleta. Doente, despossuído pelas máquinas do seu próprio corpo. O velho ouve com acutilância os sons. Neste livro, ouvem-se ainda mais os sons, ou a memória de velhos sons é mais premente (regressam e esvaem-se, foram mesmo assim?).
No hospital, reduzido a tão pouco, a atenção torna-se ainda mais sensível aos sons: sons pesados, as entradas e saídas. Sozinho reconhece na pele o que é o abandono e mentalmente vê, revê e vocifera: “arranquem-me esta merda, estes fios que me transformam num títere”. No meio disto, como uma faca apontada, a ironia: “gota a gota afasta-se a morte (…) enquanto o saco de plástico se esvazia. A mulher vestida de verde olha-o. e não percebe: o que disse – ouve-se o pano a limpar a mesa. E o brilho alastra com um depósito. – o pó de todos os mortos que passaram por este quarto:
E começa a cantar
Lá vai uma
Lá vão duas
Três pombinhas a voar
A mulher sai”.
Esta obra dá a ver o real absoluto, insuportável. Por estranho que pareça, o ser tudo assim, desrealiza a narrativa e sua receção. Sempre foi assim a escrita do autor, sobrepondo tempos e espaços. A dado momento já confunde. À beira do corpo completo. Concluído. Mas ainda não. O corpo que se vai deixando desmanchar e quase reconstituir. E, por estranho que pareça, quase é uma palavra da infância, do que ainda é ou está incompleto. O velho desmorre. Pedaço a pedaço como as partes do corpo do bode morto pela matilha de cães.
Peça a peça, passo a passo… É importante notar esta construção sintática que o autor usa reiteradamente desde o princípio: pedaço a pedaço. Porém a morte absoluta implica que o corpo esteja estático, inteiro. A cor em si que o cega pela desmesura da luz. Como a faixa pintada nas árvores que ladeiam a estrada cheia de gamboeiras, que apodrecem todas, uma a uma caem as gamboas.
O seu corpo é um cibercorpo (palavra que arrepiaria o autor). O seu é uma interface instrumental. Está nos cuidados intensivos que o memorizam (monitorizam) e através de impulsos acompanham e controlam.
O velho sente a dobra do lençol, a suas mãos deslizam livremente na dobra do lençol; pormenor que se repete e devém um símbolo do ainda humano e não profanado pelas máquinas. Sensação comum que o leitor reconhece. No quarto tecnologizado, sob o controle da enfermeira, atenta, é um punctum de humanidade, um resto que resta e adia o fim. A dobra do lençol. Também nós leitores a tocamos e levamos à face. Como se ela fizesse diferir a conclusão da viagem. A dobra do lençol é um pormenor, leva os leitores às lágrimas como só os pormenores o sabem fazer.
Há um excerto que diz tudo sem concluir nada: “reconstituímos o passado para não nos perdermos. Não perder esses campos cujos pormenores aumentaram até à demência ou ao pesadelo, não um crescimento mas a duplicação obsessiva de uma presença. Um vírus. Ao ver a fotografia do bode descobri que ele sempre estivera no meu passado, escondido nele, crescendo desse esconderijo com uma nitidez que eu desconhecia, dando ao presente uma raiz perturbando quem sou, a morte a que escapei, a corrida que me aproximava, não de isto ou de aquilo, mas de cada minuto deste tempo: tudo o que invento, a charneca, o curral, o bode, a gamboeira, é a inevitabilidade da minha vida, a consistência irremediável do que nunca existiu”.
Estas e muitas outras coisas povoam e explodem na mente do velho. Antes de encerrar uma imagem ou memória, algo nelas pode vacilar , transmigrar e diluir-se ou ocupar por inteiro a cena: de quem é o bode? que bode? Pergunta-lhe o avô? Ele há tantos. Mais tarde o velho recordará, quando a enfermeira entra no quarto para lhe vai tirar a febre. E o bode? pergunta. Ela ri-se. Que bode? “vislumbra-se nesse animal o que há de arcaico em todos os nomes: uma escrita primitiva pensará a criança quando anos depois, hoje, já velho se recordar”.
O bode é pedra de toque. Podemos naturalmente apontar-lhe alguma simbologia. Simbolicamente o bode como força genésica e vital. Por oposição ao carneiro, o bode é noturno e lunar mesmo num dia cheio de sol, é um animal trágico pois deu ao seu nome a forma de arte: tragédia significa ‘canto do bode’ (Jean Chevalier e Alain Gheerbrant, Dicionário dos Símbolos). Na Bíblia há o bode expiatório, sacrificial (Levítico.16, 5-10). O bode de Rui Nunes é tudo isto. E pouco disto.
O bode como imagem que minuciosamente o velho retém, soube esperar. O bode, longinquamente, esperou. Até que o homem que morre o possa descrever, se bem que a dada a altura diga que se descreves, descrês. Também as formas que alguém que desmorre lembra, morrem e só se podem esculpir com palavras (como a obra do lençol?).
O bode como o velho em criança corre, mas está amarrado. Corre e volta para trás, recomeça a marrar contra o muro.
Enquanto o livro permanecer inacabado. “Também a criança continua a correr, corre, chamam por ela e ela corre, foge, pára recua ou esconde-se e volta a correr mas a viagem é sempre incompleta. A mãe chama-o, ele ouve mas não responde, a mãe sabe que ele fica a saber que está perto. Vai até um campo de sepulturas em granito escavadas na rocha, talvez celtas, onde mal cabia e de onde só via o azul de céu, custou a sair, apertava, arranharia as pernas todas. O seu corpo parado, preso naquele molde, desenhável, a pedra entranhava-se-lhe na carne, ‘não como a morte, mas como uma espécie de tempo envelhecido, incerto’ E começava a ouvir os cornos do bode contra a parede do curral.”
As figuras ou cenas fortes viajam dentro da mente do velho, vão e vêm, interseccionam-se, contagiam-se através de algum detalhe de uma que se liga por contiguidade à outra, sobrepõem-se e sucedem-se, chegam a dissolver-se, “o bode inventou a minha infância”, o bode que nunca existiu ligou tudo.
Algumas das obsessões de Rui Nunes irrompem de modo transversal e reiterado livro a livro, aqui: o incêndio de Moscovo (Tólstoi, Guerra e Paz), a história dos judeus, a incompletude da sua história, o holocausto, o extermínio e os campos. Rui Nunes concluiu a visita a muitos, mas parece haver mais de duzentos. Solibor é explicitamente nomeado, Birkenau, alguns signos dispersos ao longo do texto, emblemas da mecânica da noite: o apeadeiro, o cais, as vias férreas, as malas, as casernas Mauthasen é um deles.
“O muro era de granito, como todas as construções de Mauthausen, o campo era uma pedreira de granito. Aí os presos que ainda podiam carregavam blocos de granito de 50kg pela Escada da Morte, e se sobreviventes desciam e voltavam a subir e a descer caso não tivessem sido lançados por exaustão pela ravina abaixo. O bode ia e voltava a correr, marrava no muro, até não poder mais e ser abocanhado por uma matilha de cães abandonados e famintos que literalmente o despedaçaram.”
A recorrência do muro: há uma página inteira com a palavra muro escrita a negrito. No muro se alinhavam os prisioneiros para o fuzilamento. Se a presença recorrente dos campos como ícone é verdadeira, não menos verdadeira é a alusão dos carros visitantes a quererem estacionar para ver, atrapalhando a fluidez do trânsito.
Há muitas vezes em Rui Nunes imagens que são pontos de fuga para outras imagens. Assim como no mesmo livro episódios com algo comum se reinventam. Também algumas obsessões do autor insistem (com)fundem-se. Mais do que um interesse ou relação antiga com o judaísmo, há em Rui Nunes um vínculo silencioso. Ao visitarem um campo, (Solibor?) evitando as pedras soltas pelo chão para não se desequilibrarem, alguém que descia disse: Shalon. Shalon, foi a resposta de quem subia. Como se fosse óbvia uma mesma pertença.
Relembremos a construção sintática: “passo a passo”. Então nunca algum passo é conclusivo, apenas preparando o seguinte. A viagem não se completa. Adivinha a terra prometida, o azul do céu ao longe, um vislumbre feliz. Essa incompletude, como a fímbria ou vislumbre apenas da Terra Prometida. Fica suspensa a chegada, mas mantida a espera, viagem sem chegar, a viagem que devém escrita. Palavra escrita na página branca. Jabès escreve: “A viagem é a crença na palavra esta é a transcendência possível: o negro que irradia no livro. E assim termina este livro: “o pouco que faltava para a chegada, e que ele nunca percorreria, tornara-a uma viagem feliz e isso só se pode traduzir no poema” (Livro das Questões).