Ao entrarmos pela porta principal, só os mais “resistentes” ou distraídos é que não se sentirão “mergulhados” na atmosfera criada pelos sons que chegam, mesmo que de longe, da exposição que se encontra, desde terça-feira e até dia 5 de setembro, exibida na Galeria Oval do Museu de Arte, Arquitetura e Tecnologia (MAAT). Buzinas, sirenes, sussurros, música oriental, vozes em vários idiomas, passos, silêncio repentino ou ruídos que não se descodificam… Os sons misturam-se no espaço escuro e parece que somos transportados para vários lugares do mundo ao mesmo tempo, como se, de repente, fossemos omnipresentes. Essa sensação hiperboliza-se ao caminharmos pela rampa onde se vai revelando aquilo que se encontra “lá em baixo”. E ao que parece, esse foi mesmo um dos objetivos de Alexandre Farto, mais conhecido por Vhils, que com a exposição Prisma, nos coloca nos quotidianos de nove cidades – Cidade do México, Cincinnati, Hong Kong, Lisboa, Los Angeles, Macau, Paris, Pequim e Xangai –, num “num labirinto sem guia”.
Oito anos depois de o Museu da Eletricidade ter anunciado a primeira exposição individual, Dissecção, do street artist num museu português, o MAAT expõe o trabalho onde o artista global se “afirmará”, com um trabalho que resultou das viagens que realizou na última década. “A exposição do Alexandre Farto é, de facto, um regresso mas com outra dimensão, ambição e linguagem. Verão que há de facto uma continuidade poética e temática, mas feita com uma rutura de linguagem. Vhils já tem trabalhado em vídeo e som, mas agora está num estágio monumental”, afirmou Miguel Coutinho, atual diretor geral da fundação EDP. E a verdade é que os grandes ecrãs que dão vida à exposição não deixam ninguém indiferente.
O Prisma A instalação de grande escala, com os registos em câmara lenta projetados nos ecrãs, acabam por transformar a Galeria Oval num grande labirinto humano, repleto de estímulos, rostos, olhares, cores, luzes e sons, dando a sensação que, mais que voyeurs, fazemos parte de cada imagem que nos é “oferecida” por cada tela. O visitante “mergulha” por isso, numa experiência verdadeiramente imersiva que “constrói, manipula e distorce efeitos de espaço, escala e luz”. “Este início [enquanto o visitante ainda se encontra na rampa de acesso ao espaço da exposição] é quase um ‘macro’ que nos permite ver toda esta ‘cidade global’, que depois nos convida a entrar e a nos perdermos no labirinto”, conta o artista que aponta para a sua criação. “A ideia era criar uma confluência de todos os projetos que fiz em várias cidades durante oito anos. Apesar de já ter mostrado alguns destes trabalhos individualmente em vários sítios, foi a primeira vez que consegui ter um espaço onde consigo confrontar todas estas diferentes realidades. Prisma é exatamente isso: a confluência de várias realidades, várias cidades que se combinam, se encontram no espaço”, explica Vhils. A primeira gravação que fez, foi em 2014, em Hong Kong, a última foi em Cincinnati, dias antes da pandemia. “De alguma forma, a ideia foi não só mostrar as diferenças, mas também os pontos de afluência das realidades das cidades onde vivemos. O objetivo é que o público se perca um bocadinho neste labirinto, mas que no final consiga perceber que afinal, esta diferença entre ‘nós e o outro’, não é assim tão grande. Os lugares de celebração e de conflito são um bocadinho iguais em todos os recantos do planeta”, continuou o responsável, acrescentando que foi tudo filmado “a dois mil frames por segundo”, ou seja, cada segundo que se vê está transformado num minuto e meio, “o que também nos permite olhar para a beleza do dia-a-dia que acabamos por perder nas nossas rotinas”. “E que, agora, pós pandemia, nos faz pensar naquilo que mudou nos últimos dois anos”, sublinhou. Segundo Vhils, a ideia do slow motion foi exatamente “inverter a cidade que tem um ritmo muito acelerado”. “Quis desacelerá-la para que consigamos ter uma leitura da beleza do dia-a-dia. São um bocado fotografias em movimento, os chamados ‘frescos contemporâneos’. O trabalho em vídeo pretende enaltecer a beleza que perdemos”, reforçou.
Comércio, pessoas que deambulam nas ruas, sem abrigos, pontes, ruelas vazias ou quase vazias, cafés… A grande instalação envolve o público em ambientes mundanos que “roubam identidades e que escrutinam a individualidade”. A proposta é que os visitantes, ao mesmo tempo que “se entregam”, consigam distanciar-se, fazendo um “exercício de contemplação, introspeção e reflexão sobre um passado recente”. O som foi todo captado em cada cidade. Ou seja, cada ecrã tem o som do próprio lugar. “Relembro que foi um trabalho de oito anos, ou seja, estão aqui horas de filmagens de cada uma das cidades que depois são transformadas e trabalhadas. Tal como o som que nos remete para dentro de cada uma dessas atmosferas, mas também nos oferece momentos em que nos retira delas e passa-nos para apenas telespetadores. Há este balanço que nos leva e tira dos lugares”, elucidou ao i.
Interferências Da escuridão invadida pelas cores dos ecrãs gigantes, passamos para uma outra sala que, nos “afasta” da viagem anterior, abrindo-nos caminho para uma outra “ainda mais próxima”. Interferências: Culturas Urbanas Emergentes, exposição presente na Galeria Principal do MAAT – inaugurada também na passada terça-feira e com curadoria de Alexandre Farto, António Brito Guterres e Carla Cardoso – apresenta uma série de novos projetos de quase 50 artistas de inúmeras disciplinas, em particular da street art e da arte urbana, “com diversas narrativas constitutivas da cidade de Lisboa, que desconstroem as várias forças, histórias e corpos que compõem o seu território”. Organizada em núcleos, o projeto aborda vários temas que estruturam o desenho da metrópole e geram diálogos entre esse mesmo “palco” e os seus criadores. “A exposição Interferências, em termos nacionais, é pioneira! O olhar sobre uma área da criação, que não é que seja ignorada ou que não saibamos que ela existe, mas que ainda não tem lugar.
Tem a sua galeria, claro, a própria rua, mas que ainda não havia feito a sua entrada em museus. Por isso, eu diria, que pela segunda vez (a primeira foi em 2014 com o Vhils), o velho museu da eletricidade e atual MAAT, abrem, uma linha de trabalho, com um determinado número de artistas que deve estar e tem de estar na narrativa da história, porque a história de arte é feita de muitos caminhos e divergência”, defendeu Miguel Coutinho. Ou seja, procurando dar visibilidade a outras dimensões da cidade, a exposição presente na Sala Estúdio e que se divide em núcleos – Preâmbulo, Contra a Mudez das Paredes, Coerção, Resistência e Identidade, Desenho da Cidade, Direito ao Imaginário e por fim Padrão – coloca em diálogo obras de artistas contemporâneos que usam as ruas como “contexto de expressão e experimentação e obras de coleções institucionais e privadas”, destacando e dando espaço a “narrativas alternativas que visam interpelar o público, convidando-o a refletir sobre que cidade, espaços urbanos e instituições artísticas e culturais podem ser construídas juntando novas vozes a esse processo”. “Esta exposição fala um bocadinho da construção da cidade de Lisboa desde 74 até hoje. Portanto, a construção da capital em democracia.
Obviamente que faz analogias com o que se passou internacionalmente, mas é fundamentalmente a área metropolitana. Ela tem várias premissas, uma delas é uma certa cronologia em núcleos temáticos, mas encontrando-se sempre um diálogo entre obras conhecidas que estão em coleções e fazem parte da história, em contraste e diálogo com obras que encomendámos de novos artistas”, explica António Brito Guterres à entrada da sala que nos recebe com uma antologia dos Unidigrazz, coletivo de Mem Martins, e que serve de preâmbulo das sensações e curiosidades da própria exposição, remetendo-nos “para um outro lugar, um outro país que convive em paralelo com o mediático”.
“Nós quisemos fazer uma exposição sobre culturas urbanas e a forma como estas contribuíram para o desenho da cidade de Lisboa, desta nova metrópole”, frisou, por sua vez, Carla Cardoso, também curadora do projeto. “É importante referir que esta terá também uma série de extensões ao longo destes 5 meses e que tem também outras extensões que os próprios artistas fizeram para a loja, que são também parte destas interferências”, acrescentou, referindo-se a projeções, workshops, conversas, performances, visitas informais e ainda postais e cartazes para a venda na loja do próprio museu. “Esperamos que isto seja apenas um início da entrada desta cultura urbana nestes espaços institucionais”, frisou ainda a responsável.
Além disso, João Pinharanda, atual presidente do museu MAAT, revelou que já há algum tempo que, juntamente com Alexandre, buscava “uma forma de dialogar artistas do mainstream, com os artistas marginalizados, aqueles que estão nos museus, os que têm os favores da crítica de arte, os que têm de ficar em galerias que não são celebradas, etc”. Chegou então à conclusão que uma das formas de o conseguir, seria, voltar a realizar o Painel do Mercado do Povo, uma intervenção mural coletiva, realizada no dia 10 de junho de 1974, promovida pelo Movimento Democrático dos Artistas Plásticos. “Vamos fazê-lo no âmbito de Comunidades, no dia 10 de junho de 2022 – ano em que se assinalam 48 anos do fim da ditadura de 48 anos. 48 artistas do panorama atual, vindos de diferentes contextos artísticos, vão recriar esse painel, juntamente com os 12 artistas sobreviventes dessa mesma altura”, adiantou o responsável. Este projeto no MAAT pretende inserir-se nas Comemorações dos 50 anos do 25 de Abril, que se iniciam em 2022. João Pinharanda, contou que a artista abstrata Marta Soares, responsável pelo projeto Pinturas Arrancadas à Noite chegará antes de todos os outros convidados, para aplicar, tal como costuma fazer nos seus trabalhos, “uma armadilha” numa determinada zona, que daqui a quatro ou cinco anos, irá ser arrancada.
Neste espaço, ao contrário da Galeria Oval, a luz e o branco têm um grande destaque. Espalhadas e organizadas pelos núcleos, encontram-se os trabalhos dos artistas que vão desde fotografias, à escultura, ao desenho, à pintura, aos vídeos, ao graffiti e mesmo à reprodução de uma sala de estar. Os visitantes são, por isso, convidados a entrar nas memórias e “universos” daqueles que criaram as obras, aproximando-se de realidades que lhes podem parecer extremamente distantes, mas que foram essenciais para a história desta cidade. É talvez “uma viagem ao passado que termina no presente”. Começando nas “implicações do 25 de Abril de 1974 nos processos de criação”, Interferências termina no Padrão dos Descobrimentos. “Em união, neste centro, temos uma proposta de muitas discussões que podiam ser tidas sobre o desenho da cidade e a ideia dos monumentos”, explica a curadora. “Escolhemos o padrão porque tem sido, de facto, ao longo da história da democracia, alvo de muitas discussões. Quando os artistas são integrados na discussão deste espaço público, não podem também surgir uma série de ideias e de discursos sobre o desenho desse mesmo espaço?”, interrogou. “É necessário acrescentar que isto é uma tentativa de contar uma história da cidade que vem de ‘ausências’”, frisou ainda António Brito Guterres.
Naturezas Visuais Além da Prisma e da Interferências, na terça feira, foi também inaugurada na sala Project Room, a exposição Naturezas Visuais: A Política e a Cultura do Ambientalismo nos Séculos XX e XXI, um resultado de “mais de dois anos de investigação em ciência Climática, práticas criativas e ecopolítica”. Na verdade, Naturezas Visuais é a continuação da jornada iniciada em 2021 com a instalação Sentir o Planeta, que se baseia em dados científicos. “Esta exposição segue o percurso do trabalho de investigação climática que foi levado a cabo na direção anterior, ou seja, não corta com essa orientação”, explicou Miguel Coutinho.
Em Naturezas Visuais, segundo o museu, é apresentada “uma visão das conquistas e fracassos da humanidade na sua resposta ao caos climático imposto à Terra”. Com direção artística de Beatrice Leanza, ao contrário das outras duas, esta é uma exposição “interativa”. Os visitantes são confrontados com bancadas repletas de cadeiras onde se podem sentar e ter acesso a um ecrã onde são explicadas as temáticas.
Encomendado à arquiteta brasileira Carla Juaçaba, o desenho do espaço em que esta investigação é apresentada inspira-se em A Conferência dos Pássaros, uma parábola sufi escrita no século XII pelo poeta persa Farid al-Din Attar “que constitui uma alegoria moral sobre a soberania e a busca da verdade através do sacrifício partilhado”. Segundo a arquiteta, “o projeto da exposição é uma sala de conferências, na qual somos pássaros que discutem uma nova ordem entre natureza e homem e entre ciência e democracia, ao mesmo tempo que redefinimos a ideia de progresso”. Os visitantes podem navegar pelos conteúdos multimédia que incluem imagens, vídeos, textos e registos áudio, seguindo os três principais capítulos temáticos distribuídos cronologicamente pelos 45 lugares da assembleia desenhada por Juaçaba – produção artística e eventos culturais, inovações tecnológicas e descobertas científicas, movimentos sociais e reflexões sobre governação global.
A exposição inclui ainda uma Biblioteca do Clima – zona de leitura integrada na instalação onde uma vasta lista de referência de livros e publicações pertinentes sobre os diversos assuntos abordados é disponibilizada em catálogo digital e, parcialmente, em formato físico.
Para o diretor geral da Fundação EDP, com estas três exposições, espera-se que haja o “alargamento de públicos”. Por sua vez, João Pinharanda dá ênfase ao facto do MAAT ser um museu “aberto a todas as opiniões, sensibilidades e realidades artísticas”.