Anfield recebe hoje o Inter de Milão com o à vontade próprio de quem sabe que a sua equipa já foi a Milão, a San Siro, vencer por 2-0. E, assim sendo, só uma estrambótica relação de acontecimentos permitirá aos italianos passarem aos quartos-de-final da Liga dos Campeões. É o momento certo de recordar a primeira vez que as duas equipas estiveram frente a frente para as taças europeias, numa das meias-finais da Taça dos Campeões Europeus de 1964-65, uma prova que ficaria para a história pelas piores razões.
Comandados por Bill Shankly, os rapazes de Merseyside viveram, em união com os seus adeptos, uma noite de glória a 4 de Maio de 1965. Contra a inevitável tática defensiva de Helenio Herrera, o vendaval de futebol ofensivo dos ingleses deu resultado bem cedo no jogo, logo aos 4 minutos, por via de um golo de Roger Hunt, o avançado-centro que viria a ser o herói da final do Campeonato do Mundo do ano seguinte, em Wembley. Desilusão aos 10 minutos quando o craque do Inter, Sandro Mazzola, conseguiu o empate. Mas, nessa noite, ninguém, nem mesmo o cattenaccio mais embirrento, poderia suster o Liverpool que marcou mais dois golos, através de Ian Callagham (34m) e Ian St. John (75m). Um resultado com peso suficiente para encarar com confiança o jogo da segunda mão e deixar os britânicos a sonhar com a estreia de uma equipa da Grande Ilha Para Lá da Mancha na final da Taça dos Campeões, até aí dominada por completo pelos clubes latinos.
Helenio Herrera, o homem dos jogos psicológicos, fez do jogo de Milão uma guerra. E a imprensa italiana deixou-se acirrar pelo palavrório de um treinador cujos atos de muito baixo nível o tempo acabou por limpar como se fossem esfregados a nitrato de prata. “Vêm aí os assassinos ingleses!”; “Os selvagens de Liverpool!”; “Este Liverpool só joga à custa de doping!”: para amostra não está mal.
A guerra Shankly era um fulano impassível: “Pouco me importa o que eles dizem. Nós vamos a Itália para disputar um jogo de futebol e apenas isso”. Como se enganou o velho mestre. Mais de 76 mil fanáticos milaneses invadiram San Siro. Ao fim de apenas nove minutos, já o Inter tinha igualado a eliminatória (ainda não valiam os golos fora). Bill nem queria acreditar no que estava a acontecer à sua equipa. Não era apenas o ambiente de enorme hostilidade. Ambos os golos – de Mario Corso, aos 8 minutos, e de Peiró, ao 9 – foram excitadamente contestados. No primeiro, os ingleses rodearam o árbitro espanhol, Jose María Ortiz, reclamando que a bola chutada por Corso diretamente à baliza não poderia ser validada já que tinha sido assinalado um livre indireto e não batera em ninguém pelo caminho. Ortiz fez ouvidos de mercador. Apontou para o centro do terreno e não quis saber de mais nada.
Os protestos subiram de tom quando, 60 segundos depois, Peiró estorvou uma saída de bola do guarda-redes Tommy Lawrence, e aproveitou o desequilíbrio deste para chutar para a baliza vazia. No final do encontro, Shankly abanava a cabeça desolado e inconformado: “On the continent, referees normally protect goalkeepers, particularly in Italy, but not tonight…”
A meia-hora do fim, o grande Giacinto Fachetti, fez o 3-0. Agora sim, o Liverpool estava eliminado. Mas ainda havia tempo para ir à procura do golo salvador. E ele chegou, por Ian St. John. Mas Ortiz estava lá para o anular, vá lá saber-se porquê: Ian diria, confuso: “I don’t know what the infringement was supposed to have been”. E, enquanto a imprensa inglesa lançava brados de “Cheaters!”, Shankly comentava: “Na verdade, os italianos não ganharam o jogo – o árbitro é que ganhou por eles. Só me surpreende não ter saído de campo em ombros”. A vergonhosa proteção ao Inter revelou-se de imediato quando a UEFA decidiu que a final teria lugar em San Siro. Aí foi o Benfica a fazer o papel de vítima.