Erro Extremo é um livro de força revisora surgido em duas tranches: depois de um primeiro volume, aparecido em começos de 2017, surge o segundo com os textos que Miguel Tamen escreveu regularmente para o jornal Observador entre Julho de 2016 e Julho de 2017. O título indicia que este não é um produto típico do meio académico, onde o erro não costuma ser publicitado nem alcançar honras de capa. A convicção de que é possível falar para muita gente é o erro a que alude o título, ampliado por um segundo erro com muita rodagem: autores e leitores “imaginarem que os outros estão sempre interessados nas suas opiniões”.
Um dos seus méritos é a afronta ao expectável e às formas preguiçosas do pensar, a começar pela forma de pensar o ensaio, um género sem dimensão oficial. Explicações comuns são substituídas por explicações incomuns num passo para fora do que se tem por adquirido, ângulos mortos são trazidos à vida, falsas evidências são desmontadas, ideias feitas são desfeitas. Enfiarmo-nos nos sapatos dos outros é uma delas.
Quantas vezes aconselhado como exercício desejável, é uma prática de sincronização que Miguel Tamen absolutamente desaconselha num destes ensaios: “é nocivo e desadequado”; a cada um os seus próprios sapatos, conclui. Os textos deste volume vêm mostrar-nos que há ainda muito a rever, quer nas nossas perceções comuns, quer na imagem vulgar do intelectual: um tipo rodeado de uma suma importância que pode bem não ter, de um saber que até pode vir acrescentado de uns palmos a mais, como se, estrategicamente, o intelectual enfiasse uns sapatos de sola grossa para se alçar acima do comum dos mortais. Ao verbo ‘alçar’ preferirá Tamen o verbo ‘nivelar’. E por isso atividades díspares, como tocar corneta ou fazer filosofia, são postas no mesmo patamar onde faz aparecer médicos, corretores, astrólogos e talhantes. Mas são as escadas (e o descê-las), e não os patamares, que merecem o seu exame em “Espírito de escada”: “Ao descer a escada imaginamos a glória que não tivemos; ou a que teríamos tido se por acaso as nossas melhores ideias nos aparecessem sempre que deviam. […] verdades que ao serem aplicadas na hora certa reduziriam os outros ao silêncio e à admiração”.
Muito embora não poucos lhe queiram colar a imagem do intelectual enfatuado, essa imagem parece calçar mal ao professor e atual diretor da Faculdade de Letras de Lisboa. Não que ele nos surja diante de equipamento raso, nada disso: a ironia e a predisposição humorística matizam muita erudição, levam-nos a sofisticados patamares de reflexão, são um estímulo para os neurónios. Não que não trate de questões de alto coturno, como “o problema das elites”, a oratória pública portuguesa ou as nossas obras completas (as que não escrevemos rivalizam, no entender do professor, com as que ficaram escritas, com larga possibilidade de glória para as primeiras). Mas nota-se que Miguel Tamen gosta de pôr o pé onde o intelectual não ousa ir. É vê-lo meter-se pela casa do Big Brother, pela prisão, pelos tribunais, as lojas do cidadão. Ou a circular pelas ruas e avenidas do Monopólio – numa gestão controlada desse capital irónico que investe contra os bons sentimentos com os quais se diz não se fazer boa literatura, e até a bater sola pelas feiras medievais, essa trivial atividade do Portugal contemporâneo. Só estas ocupam-lhe um texto inteiro. Oportunidade para aparecer o inclemente repórter: “Temos assim na maior parte dos casos homens de meia-idade a fazer de homens da Idade Média. É possível que por essa razão algumas capacidades mais especificamente medievais (como ferrar um burro ou cegar os inimigos derrotados) estejam enferrujadas. […] Encoraja-se festas de crianças em cabras e interações com presuntos bravos; apõe-se genericamente parches de alcatrão; organiza-se torneios de andaços”.
Mas é nos textos que dedica ao “Mistério da educação” ou no ensaio “As vantagens dos incêndios” que as duas metades de um coração impermeável a engodos sentimentais e profissionais mais se unem. Erro Extremo II não é um livro para almas sensíveis, que aqui bem podem lastimar o estilo, chorar as voltas dadas ao fado Rosa Enjeitada, molhar os sapatos. Não que Tamen seja indiferente à expressão das emoções, à qual dedica de resto um ensaio homónimo, mas o seu tom faceto, friamente analítico, mais contribui para carregar onde dói.
Indiferente àquela máxima de Apeles que recomenda que o sapateiro não suba acima da chinela, lança-se o autor em zonas disciplinares demarcadas, arriscando incorrer nas iras dos seus “colegas de espécie”, sempre muito zelosos da sua leira sapiencial. É o caso do direito fiscal, penal ou de alguns ramos da linguística. Mas também da onomástica, da farmacologia ou da química, sendo que estes campos podem até surgir ligados no fenómeno dos nomes compridos das diretoras técnicas das farmácias, abordado no ensaio “As afinidades eletivas”.
Ligar é, aliás, uma das especialidades de Miguel Tamen, como se fizesse aparecer uma enciclopédia de analogias cujo propósito fosse interromper a nossa familiar relação com o mundo. Se num primeiro momento é o inusitado da associação o que mais visivelmente emerge – como se não desse a bota com a perdigota -, logo as coisas se esclarecem e encaixam como sapato em pé de Cinderela. A escola surge ligada aos impostos: “Como os impostos a escola não tem de ser o que é”; o aspeto das declarações dos músicos portugueses, sempre com muito mundo, vai de par com o dos noticiários regionais: “muito comprido e afetuoso”; a cozinha de fusão acompanha com romancistas, curadores e outros agentes culturais, pela razão que “não vêm de lado nenhum e se encontram em todo o lado”. É um livro onde todo o tipo de gente se encontra e se perde: agentes internacionais, figuras miúdas do quotidiano, mordomos, cantoras de ópera, marafonas e pobres de espírito, desportistas. “Crianças para adotar em abstrato” fazem também a sua aparição. E há títulos que acompanham a ironia. “Bibi” é um deles.
Miguel Tamen circula entre campos, procede por saltos só na aparência largos, desliza facilmente do canteiro público para a casa da Mariquinhas, do papelinho dos remédios para a tese de doutoramento, convertido numa espécie de Fred Astaire literário, coreografando o seu argumento, abonando as passadas da sua análise, exercitando a arte da palavra própria. Sem clamores, sem arrazoados nem novenas, preteridos em favor da formulação lapidar. Sem vassalagem de pomadas. É grande a flexibilidade de movimentos quando se serve a ironia em vez do explicadinho, grande a liberdade que se ganha quando podemos escarnecer, execrar, demolir e até risonhamente insultar em vez de seriamente ajuizar. E depois Tamen nunca põe o pé em ramo verde: os argumentos são sólidos, bem apoiados em princípios e teorias (algumas de estranho nome) e dispensam tanto a nomeação como a citação explícita, seguindo talvez aqui o conselho de Alexandre O’Neill: “Não te ataques com os atacadores dos outros”. E não que se nos apague o argumento, realçado pela ironia e o humor, mas este quase chega a perder a pertinência. A interposição, os suplementos já valem por si.
Fácil é concluir que Tamen rejeita o calçado pesado dos seus “colegas de espécie”, incompatível com a liberdade de expressão. Como deixou dito logo à entrada de Erro Extremo I, num texto justamente intitulado “Liberdade de expressão”, o professor pode até fazer o esforço de calçar aquele par de botas de borracha arrumadas num canto, mas apenas “num daqueles raros dias de dilúvio”. “Por estes dias normais, porém, quando saio à rua, os meus passos de gazela contrastam singularmente com o andar pesado dos meus antigos colegas de espécie”. São os funcionários da opinião. E em matéria de opinião é válido o que disse Mayakovski quando comparou a poesia com o rio Volga: toda a gente deixa lá uma galocha.