Vítor Pereira, aquele que foi considerado por muitos o melhor árbitro do seu tempo e chegou a passar pela presidência da arbitragem portuguesa, é hoje em dia o homem forte dos árbitros na Rússia. O último lugar onde veio a pousar na sua existência de globe-trotter…
Como surgiu este convite para a Rússia?
O convite surgiu na sequência de projetos anteriores noutras latitudes, nos quais tive oportunidade de desenvolver diferentes propostas de intervenção e programas de educação e desenvolvimento e onde, porventura, fomos bem-sucedidos.
Qual a tua motivação?
A motivação é diretamente proporcional à grandeza do país e à magnitude do projeto que me foi proposto.
Já tiveste esta missão noutros países. Como correu?
Durante os cerca de 10 anos em Portugal, reformulámos toda a regulamentação e modelo de carreira, concebemos e implementámos o modelo da profissionalização da arbitragem, criámos o Fórum (de reflexão) da arbitragem em comunhão com as 22 associações distritais e regionais, implementámos a Academia de Arbitragem, concebemos o inovador e integrado Plano Nacional de Formação para Árbitros e Observadores com três níveis de intervenção e conteúdos orientados para as necessidades da cada nível ao longo da carreira, para além de outros programas menos visíveis. Penso que deixámos um legado robusto, interessante e fecundo.
No Brasil, no âmbito do comité independente de observação e avaliação que liderei, desenvolvemos um inovador sistema tecnológico quantitativo de avaliação do desempenho das equipas de arbitragem, baseado num moderno software concebido pela nossa equipa de trabalho e superiormente desenvolvido tailor made para a realidade da competição brasileira, em particular o “Brasileirão”.
A par desse projeto fantástico, fomos responsáveis pela classificação final dos árbitros e assistentes de topo, de que resultou um bónus financeiro assinalável para os três primeiros trios do ranking. Na Grécia, na qualidade de responsável máximo pelo comité de arbitragem e seu departamento, em conjunto com as minhas equipas, construímos o conselho de arbitragem, reestruturámos o departamento de arbitragem tornando-o mais eficaz e funcional, reformulámos as categorias que estavam hiper dimensionadas aproveitando para renovar o quadro de árbitros nacionais, iniciámos de raiz o processo do VAR no primeiro ano e fizemos a sua implementação e gestão nos dois anos seguintes, reformulámos o processo formativo e de evolução na carreira numa ligação estreita e direta da academia que, entretanto, também criámos, com todas as 53 associações regionais, sincronizando e uniformizando os conteúdos de formação que semanalmente lhes enviávamos.
Estes projetos foram sendo efetuados em paralelo com a gestão diária e semanal das competições nacionais, sempre envolvidos num enquadramento adverso e num ambiente hostil e agressivo para toda a arbitragem e, em particular, para os árbitros gregos que são uns verdadeiros heróis.
Na República Checa, o que me foi pedido nos curtos cinco meses de projeto até à realização das eleições federativas foi que assegurasse o normal decorrer da competição profissional através da nomeação dos árbitros e assistentes, acalmasse o clima de desconfiança que assolava a federação e alguns dos seus agentes e garantisse tranquilidade aos árbitros de modo a que pudessem desenvolver a sua atividade dentro das suas capacidades.
Ainda assim, para além destes objetivos, deixámos um conjunto de propostas regulamentares que visavam modernizar alguns conceitos adequando-os à realidade. Todos projetos extraordinariamente enriquecedores e plenos de entusiasmo, onde conheci e trabalhei com pessoas, dirigentes, profissionais e técnicos extraordinários.
Vejo bem que sim, tal o teu entusiasmo. Explica basicamente as tuas funções atuais.
Na Rússia, basicamente as minhas funções serão as mesmas que fui tendo nas missões anteriores, naturalmente adequando os momentos, as circunstâncias, os objetivos e os processos a cenários competitivos distintos, realidades geográficas, culturais, históricas e económicas diversas. Mas é um projeto muito aliciante e com assinalável potencial.
Não sentes dificuldades por causa da língua?
Atualmente, no âmbito da UEFA, o inglês é a língua oficial, pelo que todos os árbitros internacionais têm de dominar a língua. Já em termos sociais, no dia-a-dia, de facto por vezes temos de contornar dificuldades… nada que a habilidade dos portugueses não consiga ultrapassar.
Como caracterizarias a qualidade da arbitragem russa?
Ainda só tenho dois meses de atividade aqui, por consequência ainda é prematuro fazer uma caracterização rigorosa dessa natureza.
Melhor do que a nossa?
Como disse estou apenas a chegar pelo que é prematuro fazer uma avaliação comparativa precisa e fidedigna. No entanto, sou de opinião que o nível genérico da arbitragem de cada país é consentânea com o nível do seu futebol.
Entendo e constato que não há futebol de topo sem arbitragem de topo. De igual modo, não é possível termos uma arbitragem de alto nível num país cujo nível do seu futebol seja apenas mediano. Nesta linha de pensamento, o nível da arbitragem russa e portuguesa acompanham os níveis e rankings dos países respetivos.
Achas que tens as portas fechadas em Portugal?
Acho que não. Mantenho boa relação com todos os dirigentes atuais com quem sempre procurei que o respeito mútuo fosse indestrutível. Ainda recentemente tive o privilégio de ver o meu mais recente livro – Programa de Talentos e Mentores – uma proposta de intervenção nas federações desportivas – fosse editado com o patrocínio da FPF, fazendo parte da sua coleção.
Saíste de cá de mal com o poder do futebol nacional?
Não. Saí após dez anos de intensa atividade, total dedicação e ininterrupta paixão e quando entendi que os objetivos programáticos a que me propus aquando da candidatura e que consubstanciavam projetos estruturantes estavam todos implementados e razoavelmente consolidados para se projetaram com sucesso no futuro.
Que cargo ambicionarias ter aqui?
Acho que tive todos os cargos possíveis. Fui árbitro durante 23 épocas , atingindo o mais alto nível da carreira, fui presidente no núcleo de árbitros Américo Barradas (agora núcleo de Lisboa), da Mesa da Assembleia geral da APAF, da Comissão de Arbitragem da Liga Portuguesa de Futebol Profissional (agora Liga Portugal) e, em sua representação, fui durante cerca de três anos presidente do comité de arbitragem das European Professional Football Leagues (na altura com 29 ligas profissionais inscritas), presidente do Conselho de Arbitragem da Federação Portuguesa de Futebol. Durante todo este percurso tenho sido ainda observador, instrutor, formador, mentor.
Portanto, percorri toda a gama de funções possível. Assim, a minha única ambição e desejo é que os projetos que ajudei a criar e desenvolver, em conjunto com muitos dirigentes, amigos e companheiros de atividade, continuem a contribuir para o constante desenvolvimento e projeção da arbitragem portuguesa.
Teres sempre tido o à vontade de te assumires como adepto do Sporting criou-te problemas?
Admito que nalguns setores sim, mas deu-me uma grande tranquilidade e paz de espírito.
Não era fácil ser árbitro no teu tempo pois não?
Não era, de facto, fácil. A organização era mais frágil e muito menos profissional, o enquadramento era mais desviante, os apoios eram escassos, as condições oferecidas eram menores, enfim, éramos assim todos um pouco self made referees, por assim dizer.
Foste muito pressionado?
Os árbitros em geral, e os de topo em especial, têm a experiência e os “saberes” suficientes para lidar com todo o tipo de pressão. Pelo meu lado, sempre procurei que as pressões que sempre existem, antes como agora, não me fizessem desviar dos meus princípios e valores nem afetar os meus desempenhos.
Havia jogadores especialmente difíceis?
Sempre procurei manter uma relação de proximidade com todos os jogadores, em particular com aqueles que tinham a propensão pessoal ou instrução tática para nos dificultar a vida.
Qual foi o pior jogo da tua carreira?
O pior jogo da minha carreira foi simultaneamente o mais alegre e o mais triste. A final da Taça de Portugal entre Benfica e Sporting, no Jamor, onde infelizmente um adepto do futebol faleceu em circunstâncias trágicas.
E que imagem mais bonita guardas dela?
Guardo imensas, felizmente! Quatro jogos em duas fases finais de dois campeonatos do Mundo, um Europeu, três finais da UEFA, uma meia-final da Champions League entre o Barcelona, de Figo, e o Valencia com 103.000 espetadores a assistir… enfim. Imensas.