1. Os partidos que chumbaram o orçamento sabiam que a consequência direta seria a dissolução do parlamento e a convocação de eleições. Marcelo tinha-os prevenido claramente. Também sabiam que a pandemia não tinha desaparecido e que o tempo ia arrefecer, aumentando a contaminação. É verdade que não podiam prever a Omicron, mas a multiplicação da variante anterior seria sempre complicada, apesar da vacinação intensiva. Na altura, já era certa a necessidade de reforços vacinais regulares. Por causa da ânsia de todos em atirar o governo abaixo e de Costa em aproveitar uma suposta onda positiva, estamos agora confrontados com eleições e a hipótese de estas terem uma taxa brutal de abstenção por causa da pandemia, das restrições, dos isolamentos impostos, do frio, do medo, do desinteresse e da incapacidade de se garantir condições razoáveis de votação antecipada ou eletrónica. A isto soma-se a probabilidade (expressa em sondagens) de a ida às urnas não dar azo a uma solução estável. Este somatório mostra a pouca consistência dos políticos portugueses. Estamos confrontados com a hipótese de termos um resultado eleitoral que não represente a vontade da população. Nesta altura, adiar as legislativas não é método nem é possível porque não podemos cair num tempo de ilegitimidade do governo. Além disso, uma pandemia não pode suspender a democracia e, agora, não é legalmente possível mudar a lei eleitoral, uma vez que as eleições estão marcadas e o Parlamento dissolvido. Se não fosse preguiçosa e mais dada a escrever patetices no Twitter, a classe política deveria ter procedido a uma revisão cirúrgica da Constituição, permitindo o voto eletrónico. O Presidente Marcelo abriu a porta a essa revisão, mas PS e PSD ignoraram-no. 2022 é mais um ano imprevisível. Mas havia mínimos a fazer para evitar que a democracia possa transformar-se numa farsa. Os remendos que estão em curso são improvisados e suscetíveis de contestação. Não se pode comparar estas legislativas com as presidenciais (antecipadamente decididas) do ano passado ou as autárquicas com bom tempo e em regressão pandémica. Para agravar, a nossa Comissão Nacional de Eleições não é propriamente um modelo de eficácia. Vai ser preciso ter muita fé na democracia para pôr os pés a caminho das urnas. Com tantas condicionantes, as legislativas mais parecem uma roleta russa do que um exercício democrático.
2. Os frente-a-frente televisivos são decisivos, uma vez que a campanha de rua é limitada nestas legislativas O líder mais eficaz, até agora, tem sido André Ventura, que já esteve em dois debates. Tem tudo facilitado porque no Chega só ele conta. Os outros são adornos. Os seus fãs ficaram ao rubro porque destrunfou e achincalhou Catarina Martins. Esta jogou na moderação, apesar de ser mais extremista que Ventura (o BE até já teve em listas suas ex-membros das FP-25). Segunda-feira, Ventura voltou a atuar e nem sequer se deu ao trabalho de mudar de argumentos. Usou os mesmos face a um Rui Rio impreparado e sem ritmo. Rio só encostou Ventura uma vez. Foi quando disse que o PSD poderá formar governo e depois terá de ser o Chega a decidir da sua sobrevivência. Se derrubar, ajudará, evidentemente, o PS. Apesar de recusar liminarmente a ideia de uma coligação com Ventura, percebe-se que Rio não fecha portas a uma futura negociação parlamentar, o que é tão legítimo como o PS negociar com o PCP ou o BE. Contas feitas, o líder do PSD perdeu uma oportunidade e o debate. Quem não viu pode, porém, ter ficado com a ideia contrária. Os comentadores (especialmente Marques Lopes da SIC) encarregaram-se de negar a evidência. É absurda a ideia de, a seguir a um debate, estar-se horas a gramar a análise política e semiótica do confronto, ocupando dez vezes mais tempo do que a contenda. Os portugueses não precisam e não ligam muito a explicadores. É por isso que, regularmente, as eleições trazem grandes surpresas.
3. Na sua mensagem de Ano Novo, o Presidente deixou prudentemente tudo em aberto. Falou de legitimidade renovada, de pluralismo de opiniões, de esperanças, de confiança e de virar de página. Serviu um antibiótico de largo espetro. Ou seja, Marcelo não está seguro de que haja, hoje, um sentimento substancialmente diferente do de há dois anos, quando se elegeu o Parlamento anterior. Se ficar tudo igual, não será bom para ele. Poderá ser criticado por ter usado inutilmente a bomba atómica política e, sobretudo, terá de pôr a mão na massa para evitar um impasse e arranjar formas de governabilidade. Para justificar a dissolução, Marcelo precisa de uma alteração do quadro entre a direita e a esquerda por via da aproximação das votações no PS e no PSD e do crescimento de partidos como o Chega, o IL, o PAN e o apagamento do Bloco e do PCP, que as falíveis sondagens apontam. Destas eventuais mudanças, podem resultar um sem-número de cenários, mas poucos parecem estáveis. E sabe-se que tudo o que for instável é mau para Portugal, que perde cada vez mais competitividade em relação a todos os outros membros da União Europeia e não só.
4. Carlos Moedas marca passo e não é só por causa do peso bloqueador da poderosa oposição política camarária. Verifica-se que usa pouco as suas prerrogativas de presidente. Nas nomeações internas há escolhas fraquinhas. Nas empresas municipais também. A mexida em baixa no IRS dos lisboetas será curta. A promessa solene de transportes gratuitos para menores de 24 anos e maiores de 65 está emperrada. Estuda-se a execução. A cidade não mexe estruturalmente. O que avança resulta de inércia da gestão Medina. A polícia municipal é uma inutilidade e a EMEL um pesadelo, como antes. Os trabalhos de casa não vinham feitos e as eleições apanharam Moedas desprevenido, ficando semiparalisado. A vereação com pelouros não é um modelo de competência. A que não os tem conspira. A reconhecida capacidade do comissário europeu e do interlocutor da troika perde-se nos meandros da burocrática política municipal. Nas autarquias a primeira impressão também conta muito. Moedas vai a tempo de dar a volta. Mas tem de “presidencializar” o mandato. Pode parecer uma crítica, mas é um conselho. A ida à CMTV é a prova de que percebeu o problema. Mas entrevistas não são atos. São mais anúncios.
5. A vaquinha voadora da modernização administrativa que um dia Costa apresentou ao país já não está entre nós. Caiu a pique e despenhou-se estrondosamente. Coitado do bicho! A modernização foi uma miragem, tirando no que às finanças diz respeito e só para cobrar. Nas coisas mais simples há falhas. Há dias, uma cidadã estava de férias no Algarve. Recebeu uma notificação a convocá-la para a vacinação da terceira dose. Morando na zona de Lisboa, pensou que poderia evitar uma deslocação de 600 km de ida e volta, mais o preço do combustível e das portagens. Foi até Albufeira, onde funciona um centro em regime de porta aberta. Santa ingenuidade! À entrada foi logo barrada por um funcionário (daqueles moços simpáticos que também fazem uns biscates nas discotecas). Não houve nada a fazer. Explicação: “não é da zona deste centro de saúde, não há vacina”. E lá teve de se meter a caminho. Há 50 anos a única diferença é que não havia autoestrada. Para que servem os meios informáticos com gastos de milhões? Mais incompetência do que isto só mesmo a notícia de que há hospitais públicos que viram os preços da eletricidade aumentar até quatro vezes porque o serviço de saúde que centraliza os contratos não tratou o assunto a tempo, apesar de a EDP ter feito contactos a alertar. No mínimo, são precisos quatro meses para resolver o caso. Não faz mal, os que produzem pagam!
Escreve à quarta-feira